quinta-feira, 31 de dezembro de 2009
DOIS HOMENS DE TRÁS-OS-MONTES, Miguel Torga e Paulo Quintela, por Cristóvão de Aguiar.
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quarta-feira, 25 de novembro de 2009
25 de Novembro de 1975, in Relação de Bordo, 1964-1988, de Cristóvão de Aguiar.
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terça-feira, 7 de julho de 2009
A "Maria dos Caracóis", deu-se ao trabalho de copiar esta magnífica passagem do Relação de Bordo I (1964-1988) de Cristóvão de Aguiar.
Coimbra, 24 de Agosto de 1988 -
O telefone emudeceu. O carteiro não toca sequer uma vez. O vento não pára. Os remédios não remedeiam. A dor de cabeça não esmorece. O Sol esqueceu-se do ofício e meteu folga. O silêncio não se constrói nem me destrói. A música não apazigua. Os jornais gritam que não querem ser lidos. A esperança não esperneia. O calor tem frio. O frio tem fome. A fome tem sede. A sede está farta. As ideias embranqueceram. As palavras enlouqueceram num hospício de bolor esverdeado. O livro está atravessado no útero e não pede para nascer. Os amigos estão morrendo. A guerra nasce das entranhas do ouro negro. Os filhos não se deixam filhar. As filhas idem aspas, mas aspando. A poesia virou carraça em pêlo de cadelinha. A literatura teve mais sorte e caiu numa panelinha. A chuva esqueceu-se de se molhar. O corpo é um copo sem espírito de bebida. Os olhos suicidaram-se. A boca caiu na lixeira. As horas não oram. Os minutos não minutam nem deixam minutar a minuta de um sonho. O Sol sujou-se. O céu caiu de susto. O pesadelo não se assustou. O sonho sustou-se. Os olhos cabeceiam de sono. As mãos pediram memória a juro porque não pagam juros de mora. As pernas colunizaram-se sobre os pés. Os pés pediram tréguas e não sapateiam. A sapateia dançarilha no chão do longe. O longe é uma parte da partilha ainda espartilhada.
A saudade é uma Ilha rodeada de ti. A Ilha veio pernoitar em tua cama e lá se deixou noivar. Os mortos não se cansam de viver nem os vivos de apodrecer. A morte anda a cavalo nos ponteiros do relógio. O relógio faz que anda, mas, no íntimo, galopa. Os dias resfolgam nos cavalos da noite. A noite debate-se no crepúsculo caído. As nuvens entupiram os caminhos da viagem. A viagem perdeu o navio e deixou-se ficar no cais. O comboio não pára no apeadeiro que me coubeO bilhete que tirei tem uma data falsa. Todas as datas são falsas sobretudo as dos aniversários. Aniversariar é o modo conjuntivo desconjugado num tempo indefinido. Continuo esperando diante do espelho que a minha imagem espelhada se metamorfoseie na tua para nela me aposentar. O amor não se cansa. Assim seja!
Cristóvão de Aguiar in “Relação de Bordo” (volume 1)
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quarta-feira, 21 de janeiro de 2009
Barack Obama,"indomável força de vontade", por Cristóvão de Aguiar, in Jornal de Letras, 14 de Janeiro de 2009.

Only in America! Só na América poderão acontecer certos milagres. Tanto para o bem, como para o mal. Obama e Bush, respectivamente. Há quarenta anos era assassinado Martin Luther King. Toda a vida lutou pelos direitos de seus irmãos negros. Foi-se tornando uma voz incómoda, insuportável para os racistas. E mataram-no. O mesmo tinha já acontecido a Abraham Lincoln, que aboliu a escravatura. Balearam-no num teatro. E a outros três presidentes também, afora outras figuras de relevo da política americana, como Robert Kennedy. Volvido todo esse tempo, historicamente breve, é eleito um afro-americano, por larga maioria e com grande delírio, para a Presidência – Barack Obama. Ninguém se atreveria a acreditar nesse sonho no dia 4 de Abril de 1968, data em que Martin Luther King é assassinado por um racista em Memphis. Obama ia a caminho dos sete anos de idade.
I have a dream. Eu tenho um sonho! O mítico e profético discurso proferido, em Agosto de 1953, com a estátua de Lincoln em fundo, o Presidente que tem servido de modelo a Obama. Que força desabalada lhe permitiu transpor tantos empecilhos, a principiar pela cor da sua pele, e chegar aonde ninguém da sua estirpe jamais chegara? O segredo de tanto êxito deve morar na sua indomável força de vontade, na sua inteligência, na sua personalidade intensa, no seu apego às raízes de que nunca se envergonhou.
A sua candidatura causou arrebatamento. Ele vinha religar o sonho americano, que os Pais Fundadores arquitectaram. O seu discurso novo, persuasivo e despido de vestes inúteis, seduziu os seus patrícios e grande parte do mundo cristão. Vêem nele o sonho encarnado, uma luz de esperança de que a vida melhore, de que a economia americana (e por simpatia a do resto do mundo) se erga do atoleiro em que se afundou. Se o conseguir, tornar-se-á um herói que a História consagrará, uma personagem de romance, e quem sabe se a sua vida não inspirará um filme!
Torna-se necessário, no entanto, não cavalgar sem freio pelos céus da fantasia. A realidade mundial e doméstica que o espera é dura. Conflitos que se reacendem no Médio Oriente; outros na iminência de surgir; a retirada do Iraque; a guerra do Afeganistão; o perigo do Irão; o fecho de Guantánamo; o bloqueio a Cuba… São tarefas gigantescas com que Obama terá de lidar com muita perspicácia. Qualidades não lhe faltam. Com ele, cumpriu-se a profecia de Martin Luther King. E isto dá muitas esperanças de que o sonho não fique pelo caminho.
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terça-feira, 8 de julho de 2008
Figueira da Foz, O MAR, Relação de Bordo 1964-1988, de Cristóvão de Aguiar.
Figueira da Foz, 22 de Novembro de 1970.
O mar. O eterno búzio da minha infância, segredando-me não sei o quê de esquecidas lembranças. Em frente dele, sinto-me aliviado. Acodem-me aventuras sonhadas noutros lugares e tempos, em que viver cabia dentro do sonho. Até o mar me tiraram.
Figueira da Foz, 27 de Fevereiro de 1977.
Primeiro fim-de-semana passado no campismo. Gostámos todos. A Natureza é milagreira. À noite, os sons vindos do mar encantaram-me. Durante tantos anos habituado a adormecer ao som embalador daquele monstro, soube-me bem revivê-lo.
Cristóvão de Aguiar, in Relação de Bordo (1964-1988).
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terça-feira, 22 de abril de 2008
Coimbra, 25 de Abril de 1974, in Relação de Bordo I (1964-1988), de Cristóvão de Aguiar.


Coimbra, 25 de Abril de 1974.
Se está bom tempo como hoje vou a pé logo de manhã levar o meu filho Artur ao infantário da Universidade, que fica um pouco acima do Penedo da Saudade, mesmo ao princípio da Avenida Dias da Silva. Quero ensiná-lo, e ao mais velho também, a ser andarilho, e de pequeno é que se torce o vime. Levo-o pela mão, tentando durante o percurso responder o melhor que sei a todas as perguntas que me costuma fazer e que redobram sempre que chegamos ao prédio onde está instalado o Farol das Ilhas, Solar de estudantes universitários madeirenses, que tem à varanda uma enorme vaca de gesso e papelão, quase ou mesmo em tamanho natural. E o Artur quer por uma força saber por que está sempre ali, ao frio, se não tem caminha para se deitar, se dá leite de manhã e por que não fala como as outras da Ilha, que dizem, muuu, muuu, porquê, porquê... Ainda tem cinco anos e meio, mas já viu muitas vacas ao natural, o que vai sendo uma raridade em crianças nadas e criadas nos meios urbanos. E também conhece a melodia do Hino Nacional, porque esta manhã ao subirmos a Rua Teixeira de Carvalho, um pouco mais acima da varanda-manjedoura da vaquinha, que por vezes e através da minha voz disfarçada faz muuu, muuu, a ver se lhe aquieto a língua perguntadora—chamou-me a atenção para o facto, pois ouvíamo-lo, alto e bom som, jorrando de uma janela aberta, naturalmente das bem acesas goelas de um rádio que parecia querer transmiti-lo para a cidade e seus arredores. Logo o meu filho quis saber por que razão tocava o hino, se havia festa no infantário. E então, na minha inocência, inventei-lhe uma história em que metia um ministro e alguns bombeiros, numa inauguração de um chafariz e de um urinol com casa de banho privativa, onde o senhor ministro fez cocó para inaugurar a sanita e que, além disso, o Presidente Tomás havia estado na véspera ou antevéspera em Coimbra, e não estava mentindo, para ver se tudo se encontrava bem inaugurado, por isso é que havia hino, et cetera e tal. Com certeza que ficou satisfeito com a minha explicação, porque não me perguntou mais nada. Logo depois, ao virar da esquina para a Dias da Silva, entreguei-o no infantário e segui o meu trajecto para a Universidade, sem maldar de nada. Vim pelo caminho entretido comigo mesmo, como é meu costume: viajando pela Ilha que trago comigo, enquanto me consolava a tragar os primeiros cigarros da manhã no jardim em frente do Liceu, muito antes de tocar a sineta do senhor Tavares ( deixei de fumar há três meses e cinco dias, por isso estou sempre sonhando com umas tragaças bem puxadas), que eu chegava de véspera à cidade, a cavalo na camionete da carreira, a primeira que passava às sete da manhã na freguesia. Meu pai tinha medo que a dos estudantes, quase uma hora mais tarde, às vinte para as oito, chegasse atrasada à cidade e eu faltasse à primeira aula, e ele tinha horror a pessoas faltosas. Só quando cheguei ao Edifício das Matemáticas é que aterrei na realidade, porque dei conta de que havia qualquer coisa de novo no ar, muita gente junta cá fora, num quase alevante e o edifício encerrado. O senhor Pelicano, que de certo me viu com cara de quem andava a leste, adiantou-se do magote e veio para mim de braços abertos e anunciou-me a boa nova de uma revolução em Lisboa, mas ainda se não sabia ao certo de que lado é que vinha, se dos ultras, se da esquerda. Desconfiei que nada de bom seria, porque ainda nem há um mês se dera a revolta das Caldas, que fora prontamente abafada. Nessa expectativa e com uma ténue esperança bichanando-me, abalei logo dali, quase a correr, em direcção ao Emissor Regional de Coimbra, onde cá fora se havia aglomerado um ror de curiosos ávidos de notícias como eu.

Encontrei o Nogueira e Silva, meu camarada em Mafra e na Guiné, que me garantiu que o movimento era de esquerda ( sempre bebeu do fino!), só o que se não sabia ao certo era se vingava ou não, mas, segundo lhe tinha constado, havia fortes e fundadas esperanças de êxito. Pedi logo um cigarro para celebrar e apaziguar os nervos, que emoções fortes sem nicotina sabem a pouco. Já muito depois do meio-dia, quando, em Lisboa já estava tudo bem encaminhado e detidos os dois mais altos responsáveis, foi lido, aos microfones do Emissor Regional, para começar a haver humor na revolução nascente, um comunicado oriundo do Governador Civel, jurando fidelidade da cidade de Coimbra e do seu Povo ordeiro ao Governo legítimo da Nação, estando garantida a paz e a ordem pública em todo o distrito.

Este dia foi tão rico em emoções e contra-emoções, que, somadas e bem condutadas, dariam pela certa para muitos meses de vida bem vivida. O maço de cigarros que acabei por ir comprar é que não chegou para o resto do dia! Lá se me quebrou a jura que fizera comigo mesmo. Seja tudo por amor da revolução e por ( des) alma do regime que foi derrubado.
IN RELAÇÃO DE BORDO I (1964-1988), de CRISTÓVÃO DE AGUIAR, Págs. 120 a 122.
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quinta-feira, 13 de março de 2008
Coimbra, 23 de Abril de 1975. Cristóvão de Aguiar, in Relação de Bordo (1964-1988), página 164.
Coimbra, 23 de Abril de 1975.
" Há poucos dias, durante a homilia da missa dominical na igreja de uma freguesia rural das cercanias, o padre falou aos seus paroquianos sobre as próximas eleições para a Assembleia Constituinte. Lançou mão da parábola para melhor se fazer compreender e disse-lhes:
-"Meus caros irmãos em Cristo: suponhamos que um de vós é dono de uma vaca leiteira; se ganhar o socialismo, fica o irmão com a vaca, mas tem que dar o leite a esse partido; se ganhar o comunismo, fica sem a vaca e sem o leite..." "
Cristóvão de Aguiar, in Relação de Bordo (1964-1988), página 164, Grande Prémio de Literatura Biográfica APE/CMP - 2000 (ESGOTADO)
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Coimbra, 13 de Março de 1975. In Relação de Bordo (1964-1988) de Cristóvão de Aguiar.
Coimbra, 13 de Março de 1975" A Imprensa Regional tem funcionado como um sismógrafo que, em vez de registar os abalos, tivesse o condão de os prever. Tem, na verdade, acusado com uma acuidade de vidente, as mais leves variações deste tempo político cada vez mais sísmico. Sempre que qualquer coisa esquisita anda no ar, logo as colunas de certos jornais se contorcem, imitando certos animais que lançam uivos agoirentos antes da tempestade se esborralhar sobre a terra. Será que essa imprensa prevê os acontecimentos mais relevantes, dando-se ao luxo de não seguir a reboque deles? Creio que não. Fareja-os apenas, porque alguns lhes são familiares. E ninguém melhor conhece as reacções da família do que os membros da dita. Mas não há dúvida de que certos melros de bico amarelo dessa imprensa têm de vez em quando acessos orquestrados que fazem reflectir, porque prenunciadores de borrasca eminente."

Cristóvão de Aguiar, in Relação de Bordo (1964-1988), páginas 162/163, Grande Prémio de Literatura Biográfica APE/CMP - 2000 (ESGOTADO)
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quarta-feira, 12 de março de 2008
Coimbra, 12 de Março de 1975. In Relação de Bordo (1964-1988) de Cristóvão de Aguiar.
Coimbra, 12 de Março de 1975
" Durante a noite foi um tal nacionalizar. Algumas estavam mesmo a ser pedidas, mas, no total, acho que foi uma resposta demasiado extremista, porque precipitada, à intentona de ontem, mas, se calhar, não havia alternativa, devido ao estado a que isto chegou."
Cristóvão de Aguiar, in Relação de Bordo (1964-1988), página 162, Grande Prémio de Literatura Biográfica APE/CMP - 2000 (ESGOTADO)
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terça-feira, 11 de março de 2008
Coimbra, 11 de Março de 1975. In Relação de Bordo (1964-1988) de Cristóvão de Aguiar.
Coimbra, 11 de Março de 1975-
" Desta vez não foi inventona, não senhor. Houve um morto e tudo, o soldado Luís, que pertencia ao Ralis mas a tragédia podia ter sido maior - estivemos à beira da guerra civil, com militares contra militares e uma onda de boatos de meter medo. Depois de tudo, foi a fuga do General Spínola para fora do País. Falhou-lhe o golpe e ala que se faz tarde. Desde que abandonou a Presidência da República, no final de Setembro passado, não parou de conspirar. Era dos que via comunistas por todo o lado, até na sopa. Qual será agora a cena do próximo capítulo? "
Cristóvão de Aguiar, in Relação de Bordo (1964-1988), página 162, Grande Prémio de Literatura Biográfica APE/CMP - 2000 (ESGOTADO)
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segunda-feira, 14 de janeiro de 2008
COIMBRA, CRISTÓVÃO DE AGUIAR E A REAL REPÚBLICA CORSÁRIOS DAS ILHAS.
CLICAR NO TÍTULO PARA VER PÁGINA CORSÁRIA.

A Real República Corsários das Ilhas foi fundada em 1960 por iniciativa de estudantes provenientes do arquipélago dos Açores. Nos seus 41 anos de viagens a «nau corsária» já albergou marinhagem que se mostrou distinta.
A título de exemplo, cite-se o nome de Carlos Candal; o actual eurodeputado socialista era, em 1962, durante a grave crise que assolou a universidade, presidente da Associação Académica de Coimbra.
Ainda, durante a crise académica de 1972, destaca-se Carlos Fraião; este antigo corsário foi membro do Comité Central do Partido Comunista Português.
Também Germano de Sousa, Bastonário da Ordem dos Médicos e Cristóvão de Aguiar, escritor, viveram nesta República.

Por falar neste escritor, o zé manuel deixou um comentário na anterior versão desta página que reescreve um passo do Relação de Bordo (1964-1988), livro do referido Cristóvão de Aguiar, em que lança um olhar sobre as suas experiências nesta casa quando por cá passou nos anos 60:
"Coimbra, 1 de Janeiro de 1964 -
Na Real República Corsários das Ilhas, a cuja tripulação venho pertencendo desde 1961 (em Outubro ascendi a 2º telegrafista), a passagem de ano foi, para mim, pavorosamente triste! De resto, nunca fui de grandes expansões nessas horas que a tradição instituiu como marcos de viragem não se sabe bem de quê. Alheio ao natural estardalhaço dos meus camaradas co-repúblicos, bem comidos e muito mais bem bebidos, encafuei-me no meu cantinho a ruminar. É que 1964 vai ser o ano em que vou dizer adeus à vida de estudante (para sempre?) e ela agora que me estava correndo tão bem: no terceiro ano sem nenhuma cadeira atrasada, mas é sempre assim). Isto porque já no próximo dia vinte e sete do corrente, numa segunda-feira logo de manhã, vou iniciar em Mafra o Curso de Oficiais Milicianos, com destino marcado para a guerra colonial. Consta da guia de marcha que recebi há dias, não esse destino, mas outro que vai de certeza desembocar naquele. Por isso, logo ao bater da primeira badalada da meia-noite no relógio da torre da Universidade, senti que me estava afundando em terreno pouco firme e lodoso. Cheguei da Ilha em finais de Setembro com uma mala na mão e sem dinheiro com que mandar cantar um cego, quanto mais para continuar os estudos. Havia justamente perdido a bolsa da Junta Geral do Distrito Autónomo de Ponta Delgada, novecentos escudos mensais, mas que me davam, resvés, para me ir sustentando em Coimbra. E perdi-a, não porque chumbasse, mas por não ter atingido a nota final de catorze valores, classificação exigida a partir do segundo ano até o final do curso para a manutenção da referida bolsa. Podia ter pedido dinheiro emprestado, a juro de dez por cento, como é costume lá na minha freguesia, mas meu Pai zangou-se comigo devido a um namoro reatado que ele não queria, derriço que, uma semana após a minha chegada a Coimbra, se desmanchou na secura de meia dúzia de linhas de uma carta, que me acompanha, na carteira, dobrada em quatro, as dobras delidas e enferrujadas… Por tal motivo, negou-se a ser minha fiança. Perdi a cabeça e pedi que me antecipassem a incorporação! Veja-se o paradoxo: em tempo de guerra ser meio voluntário, eu que, se tivesse coragem e juízo, devia mas era desertar daqui para fora. Na Ilha não queria ficar. Minha tia Lurdes e o Ti José da Costa deram-me coragem e o dinheiro para a passagem de barco e ainda mais algum para me ir tenteando. Cheguei à República e logo pus os meus companheiros ao par da minha situação. Houve reunião de casa à noite e ficou decidido, por unanimidade, que eu ficaria lá na mesma com todas as prerrogativas de um Corsário e só pagaria as minhas despesas, que seriam apontadas pelo Comissário de Bordo da Nau Corsária, quando recebesse os primeiros ordenados de aspirante. Eram apenas quatro meses que ficaria a dever, de Outubro a Janeiro, que orçariam em cerca de três contos de réis. Depois, quando viesse de Mafra passar os fins-de-semana, andaria à lebre, como se diz em linguagem académica. Suspirei de alívio e comovi-me com tamanho companheirismo de que poucos como os ilhéus, fora das Ilhas, são capazes."
Por não conseguir perceber bem os motivos que levam um gajo a querer meter-se na guerra… terei que reconhecer que às vezes só se dá pelo erro depois de se ter dado o passo inexorável da tomada de decisão e consequente prisão às amarras que daí decorrem… nos tempos actuais, em boa consciência, eu, o corsário que escreve estas linhas, teria que manifestar, a um colega que se me aparecesse com o mesmo dilema existencial que fosse pedir telha e comida ao Exército para o qual fosse servir… Mas, exceptuando este detalhe que se prende com a valoração do mundo e com a justeza, ou não das coisas, o texto retrata aquilo que os Corsários têm melhor sabido fazer, não deixar um irmão na mó de baixo.
Termino citando a frase de Antero de Quental aposta numa das paredes da sala de refeições da Casa:
“Mais vale experimentá-lo que julgá-lo, mas julgue-o quem não puder experimentá-lo”
COMENTÁRIOS RELEVANTES:
1) Anónimo disse:
Na crise de 62 o Candal já não era o presidente da Associação Académica de Coimbra.
O Presidente era o Francisco Paiva ( Medicina), da República ao lado dos Corsários, Os Galifões.
17 de Janeiro de 2008 2:33
2)Anónimo disse:
A frase do fim do texto não é de Antero de Quental, mas, sim, dos Ludíadas, de Luís de Camões.
18 de Janeiro de 2008 16:16
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quinta-feira, 20 de dezembro de 2007
Soito-Sabugal, 24 de Dezembro de 1970
"
[...] Mas fiquei compensado. Deus quis mostrar-me, a mim, que sou descrente, que se há solidão entre os homens há verdadeira comunhão na Natureza. E logo pela manhãnzinha, que estes milagres querem-se na pura claridade da hora do nascer, Ele paramentou-se e distribuiu a comunhão. Nem um ateu poderia deixar de estremecer. E era um regalo para os sentidos observar as árvores, de joelhos, e os montes, e os campos, recebendo o maná branco que descia lento do cálice do céu. Depois foi a sinfonia branca do silêncio. "
Cristóvão de Aguiar, Relação de Bordo, 1964-1988, pág. 106.
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Secção: Relação de Bordo I, Soito Sabugal, Textos avulsos
quarta-feira, 19 de dezembro de 2007
Soito-Sabugal, 28 de Dezembro de 1970, Relação de Bordo, 1964-1988. Esgotado
" Aqui vou de abalada com os olhos roídos de neve e o remorso de não querer ficar.
Ficou o Loto com as suas aventuras de contrabando, a pedir uma tela ou um livro. Deixei-o falar à vontade. E foi tal a violência da descrição, que me pus com ele a rastejar ao som dos primeiros tiros dos carabineiros. Fiquei molhado até às virilhas na travessia do Côa, enquanto os cavalos tingiam a neve de sangue.
Estação da Guarda, mesmo dia, um pouco mais tarde-
Este frio mata as almas - diz uma mulherzinha aqui ao meu lado, enquanto bate com os pés no cimento do apeadeiro. As pessoas que vejo dão-me a impressão de corpos sem alma. Esta enorme lâmina que cai verticalmente de um céu alucinado corta tudo rente, até o comboio que está parado na linha em frente e se destina a Hendaia e parte dentro de momentos. O comboio é longo, escuro e triste. Nem homens nem mulheres se dependuram nas janelas. É um comboio ao contrário. O chefe da estação apita, mas não tem culpa. A lâmina dá mais uma guinada e apanha os olhos daquela mulher que chora. Da carruagem acena uma mão tímida, sem coragem. No apeadeiro, a mão e o lenço da mulher responden, sem coragem também."
Cristóvão de Aguiar in Relação de Bordo 1964-1988, pags 108 e 109.
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domingo, 16 de dezembro de 2007
Soito - Sabugal, 24 de Dezembro de 1970.
"Chegaram alguns emigrantes de França. Curtidos das neves e dos frios da estranja, vieram aquecer-se à lareira do torrão. Trouxeram os seus automóveis potentes - gritos de protesto à servidão de séculos. Apesar do frio, as ruas estão cheias de vozes e de cores. Duas línguas confraternizam nesta tarde raiana. No cruzeiro, homens possantes e terrosos armam, com tocos de castanheiro, a fogueira da confraternização. São os mordomos do Menino. Há mais calor humano neste altar de tocos do que nos litúrgicos repiques dos sinos, convidando o povo para a Missa do Galo. Tanto que me enternece todo este paganismo pré-histórico, em que uma lareira acesa significa uma lareira realmente acesa, à qual todos se podem aquecer."
Cristóvão de Aguiar, in Relação de Bordo, 1964-1988, página 105.
A imagem foi retirada do blogue Capeia Arraiana.
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Sítio da Nazaré, 20 de Dezembro de 1970. In Relação de Bordo 1964 - 1988


"Deste púlpito de rocha, a imaginação pára de trabalhar. Fica atónita em face de tamanha grandeza. Ao voltar as costas, porém, apanhei num relance toda a dimensão trágica das gentes destas praias. Uma velha embuçada num xaile negro, encostada a um muro caiado de um branco de noiva, comungava o sol da tarde que declinava. Exactamente por cima da sua cabeça, a sombra projectada do cruzeiro completava o quadro fantasmagórico - a mulher ficou ali crucificada naquela cruz de sombra."
Cristóvão de Aguiar, páginas 103 in fine e 104.
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quarta-feira, 10 de outubro de 2007
Um episódio respigado do livro Com Paulo Quintela À Mesa da Tertúlia, de Cristóvão de Aguiar

O Largo do Leão! Assim denominado por via do leão de bronze que fazia parte integrante do monumento a Luís de Camões, outrora no largo defronte da casa do poeta Eugénio de Castro e agora relegado para um recanto ajardinado, no seguimento da mata do Jardim Botânico, mesmo à ilharga da empena do antigo CADC, hoje Instituto de Justiça e Paz. O leão de bronze não possui testículos. A ausência de tão importante apêndice anatómico constituiu para muitas gerações de estudantes motivo de chacota e de mote de gozo aos caloiros. Quando no princípio dos anos quarenta o camartelo iniciou a destruição da Alta, o monumento a Luís de Camões foi removido. O leão de bronze foi para o Pátio da Inquisição e anos depois para o átrio exterior da entrada da Associação Académica, no Palácio dos Grilos. No início da década de sessenta, após o novo edifício da AAC ter sido inaugurado, o leão de bronze foi trasladado para um recanto do jardim onde permaneceu até à reabilitação do monumento a Luís de Camões no local onde hoje se encontra.
Embora o local escolhido peque pela sua extrema humildade se comparado com a grandiosidade balofa do monumento erguido, nos Arcos do Jardim, ao Papa João Paulo II, é de louvar a lembrança das autoridades, creio que municipais. Só que as suas congéneres académicas deveriam ter decerto uma palavra a dizer. E esta seria a de que o monumento a Luís de Camões poderia muito bem ter sido reerguido no antigo local e reconstituído como dantes. Faltam os dois versos dos Lusíadas esculpidos em bronze no pedestal da estátua, sem os quais não se compreende a castração do animal esculpido em bronze:
Melhor merecê-los sem os ter
Que possuí-los sem os merecer.
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Eis um exemplo paradigmático de um texto de "Literatura Lusa-Ateniense".
Esta tipificação é destinada à melhor compreensão por parte de todos os adeptos da, digamos assim, "Teoria da Segmentação Territorial da Literatura Portuguesa"... :)))
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Secção: Paulo Quintela, Textos avulsos
TANTO MAR
do qual este poema começou a nascer.
Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.
Manuel Alegre
Pico 27.07.2006

