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quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

DOIS HOMENS DE TRÁS-OS-MONTES, Miguel Torga e Paulo Quintela, por Cristóvão de Aguiar.


"Aqui, na cidade de Bragança, coração de Trás-os-Montes, grave delito seria não recordar dois grandes vultos da cultura portuguesa do século XX, Paulo Quintela e Miguel Torga. Outros haveria que realçar como o Abade de Baçal, historiador, etnógrafo, arqueólogo, autor das Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, cujo V volume é o célebre livro, Os Judeus no Distrito de Bragança… E João Araújo Correia, médico na cidade da Régua e um dos grandes Mestres da Língua Portuguesa, que mereceu de Aquilino, outro brilhante cultor da Língua, estas expressivas e legítimas palavras: «Mestre de nós todos há cinquenta anos a lavrar nesta terra ingrata e ímproba seara branca do papel almaço, e somos velhos, gloriosos ou ingloriosos, pouco importa; mestre dos que vieram no intermezzo da arte literáriacom três dimensões para a arte literária sem gramática, sem sintaxe, sem bom senso, sem pés nem cabeça; e mestre para aqueles que terão de libertar-se da acrobacia insustentável e queiram construir obra séria e duradoura». Isto só para mencionar os que desapareceram.
Sem desprimor para os dois vultos transmontanos atrás mencionados, e que de per si mereciam uma conferência inteira, ou mais, só irei debruçar-me, e espero não me despenhar da altura a que ambos se guindaram, sobre a obra e personalidade de outras duas individualidades transmontanas, mais chegadas à minha afeição, com quem durante anos convivi em Coimbra e de quem recebi grandes lições de vida, cultura, humanidade e humanidades: Paulo Quintela, filho desta cidade, onde nasceu em 1905, e Miguel Torga, natural de São Martinho de Anta, o seu lugar de onde e o seu centro do mundo, como tantas vezes escreveu nos seus livros… Paulo Quintela foi um germanista de renome internacional e um dos melhores tradutores das línguas germânicas para a Língua Portuguesa. Dir-se-ia, sem pingo de exagero, que nacionalizou esses poetas e escritores estrangeiros, principalmente alemães, para a Literatura Portuguesa, dela ficando a fazer parte: Rilke, Hölderlin, Goethe, Nietzsche, Hauptmann, Nelly Sachs e tantos outros, incluindo muitos poemas ingleses de Fernando Pessoa, a pedido de Georg Rudolf Lindt, crítico alemão, lusitanista, estudioso e tradutor de Pessoa. E foram esses poetas maiores da Literatura Universal, sobretudo Rilke, que influenciaram alguns poetas portugueses, dos quais destaco Eugénio de Andrade e o próprio Miguel Torga. Como se isto não bastasse, Paulo Quintela, um apaixonado pelo teatro e por Gil Vicente, havia de ressuscitar a sua obra dramatúrgica para as tábuas do palco, até então sepultada na poeira dos compêndios. Excetuavam-se algumas tímidas, fugazes e nem sempre logradas tentativas do Teatro Nacional Dona Maria, que, nos meados dos anos trinta do século XX, o pôs em cena. E terá sido um espetáculo, com excertos da obra de Mestre Gil, uma silva vicentina, representado por essa companhia, em uma noite de Verão, no Pátio da Universidade de Coimbra, que o catapultou para pôr de imediato a obra vicentina em
cima do palco. Escreveu ensaios sobre a obra do maior homem de teatro português, e deu a conhecer aos leitores portugueses as Líricas Castelhanas, de Gil Vicente, publicadas em livro, em meados dos anos sessenta, no Cancioneiro Vértice. Porém, Quintela não se quedou por Gil Vicente: encenou outros grandes dramaturgos; os trágicos gregos: a Medeia, de Eurípedes; a Antígona, de Sófocles; o Prometeu Agrilhoado, de Ésquilo; O Grande Teatro do Mundo, de Calderón de La Barca; Retablillo de don Cristóbal e A Sapateira Prodigiosa, de Frederico García Lorca. Nesta última peça, foi o próprio Quintela quem representou o papel de sapateiro, o principal, porque o ator que o devia interpretar ter comunicado, na véspera da estreia, que não podia comparecer – valia Quintela saber de cor todos os papéis das peças que
encenava; O Tartufo, de Molière, além de alguns portugueses contemporâneos, como Miguel Torga; José Régio e Raul Brandão… Graças ao TEUC (Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra), fundado em 1938, e que se estreou com a Farsa de Inês Pereira, foi possível a Paulo Quintela, seu diretor artístico durante mais de trinta anos, dar a conhecer não só Gil Vicente como todos os dramaturgos atrás referidos, fazendo do TEUC uma verdadeira escola de teatro por onde passaram gerações e gerações de estudantes, que, após a formatura, continuaram a lição do Mestre, organizando grupos de teatro nas locais onde foram exercer a sua profissão.
Como dizia, foi nesta cidade de Bragança que nasceu, em Dezembro de 1905, Paulo Manuel, oitavo rebento de uma prole de dez, sendo o pai pedreiro e a mãe padeira. Aqui se criou, iniciou e concluiu os estudos elementares e liceais, que o haviam de guindar à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde se matriculou no ano letivo de 1922 /1923, ainda com a idade de dezasseis anos. Aluno brilhante, concluiu o curso de Filologia Germânica com distinção, e foi bolseiro da Fundação Humboldt, o que lhe proporcionou viver, estudar e ensinar, em Berlim, durante seis anos. Com a subida de Hitler ao poder, regressou a Coimbra e à sua Faculdade, passando a exercer, durante mais de quarenta anos, o magistério nas Literaturas e Culturas Germânicas. Aqui jaz, no cemitério do “Alto do Sapato”, desde o dia 10 de Março de 1987.
Delito grave seria também deixar em silêncio o nome de Miguel Torga, um dos mais grados escritores de sempre da Literatura Portuguesa e, durante grande parte do percurso da existência, íntimo amigo de Paulo Quintela e seu companheiro de lides e aventuras literárias. Procurarei, nesta minha despretensiosa comunicação, deslindar o que os uniu e depois os separou para sempre, tentando o milagre, sempre possível, de um reatamento de relações post mortem…
Entre ambos existia uma amizade enraizada num acerado amor que consagravam a Trás-os-Montes, o «Reino Maravilhoso», de onde ambos eram oriundos. «Que belo é ter um amigo! Ontem eram ideias contra ideias. Hoje é este fraterno abraço a afirmar que acima das ideias estão os homens. Um sol tépido a iluminar a paisagem de paz  onde esse abraço se deu, forte e repousado. Que belo e natural é ter um amigo!» ─ escreveu Torga, no dia 4 de Fevereiro de 1935, no primeiro volume do Diário, referindo-se a Quintela, que conhecera um ano antes na cama de um hospital em Coimbra.
No Segundo Congresso Transmontano, realizado nas Pedras Salgadas, em Setembro de 1941, ambos participaram com duas conferências. A de Miguel Torga intitulava-se «Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes)»; a de Paulo Quintela, «Um Poeta de Trásos- Montes», Miguel Torga. E era o Poeta: «Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador. Tudo parado e mudo. Apenas se move e se faz ouvir o
coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente rasga a crosta do silêncio uma voz de franqueza desembainhada: «─ Para cá do Marão, mandam o que cá estão!» Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós? Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena: ─ Entre! ─ A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso.»
Por seu turno, Paulo Quintela: «Mas não se nasce impunemente em Trás-os-Montes, no Alentejo ou à beira-mar. Quer dizer que a paisagem, se não é o único fator determinante, é contudo primordial elemento de formação e informação. Se a poesia é no fundo expressão ─ expressão mágica ─ das coisas e dos seres, da Vida, é evidente que essa expressão há de ser em certa medida condicionada pela maneira como esses seres e coisas se nos revelam e nos solicitam, pela luz que os banha, pelo horizonte em que estão implantados, pelo ângulo por que se contemplam. O homem da planície terá uma vivência das coisas e dos homens muito diversa da do montanhês. Horizontes vastos e planos, monótonos, em que as figuras se perdem ou ficam reduzidas a contornos imprecisos, convidam a erguer os olhos e a contemplar o céu. Daqui
─ falo, evidentemente, em termos amplos que admitem toda a sorte de exceção que não abalará aliás a firmeza do princípio ─ (o próprio poeta de que me ocupo poderá por vezes parecer exceção...) ─ daqui, digo, a propensão contemplativa e a necessidade de fuga e libertação mística do homem nado e criado em ambiente destes. Daqui o caráter místico da grande literatura da estepe russa, por exemplo. Mas subamos agora uma montanha. As coisas na encosta que vamos escalando são-nos mais chegadas, mais íntimas, mais nossas, pelo esforço que pusemos em alcançá-las; a luz quebra e reflete de outra maneira nas lombas que nos rodeiam e nos limitam o horizonte; a subida é árdua, mas gostosa; o arcaboiço arfa, bate o coração encostado à fraga ou à árvore, e o arquejar do peito e a pancada do coração do homem da montanha faz-se hálito e pulsar da própria terra-mãe. Chega-se ao cimo. Mas não foi para contemplar o céu que nos aproximámos dele. Sobe-se a um monte para olhar cá para baixo, para dominar a terra que se alarga, se nos revela e nos convida. Foi no alto dum monte que o diabo patenteou a Cristo a sua maior tentação: «De novo o subiu o diabo a um monte muito alto: e lhe mostrou todos os Reinos do Mundo, e a glória deles, e lhe disse: Tudo isto te darei, se prostrado me adorares...» Deus em Cristo resistiu à tentação. Os homens sucumbem à veemência do desejo de posse do Mundo e da sua Beleza. Miguel Torga é, dos poetas portugueses modernos, o que está mais intimamente ligado à sua paisagem, que é a paisagem de Trás-os-Montes.»
Convoco agora o Poeta Manuel Alegre para, com a sua palavra poética, vir em meu auxílio. Na III Parte do seu livro, Coimbra Nunca Vista, intitulada «Abecedário de Coimbra», o poeta de Abril, grande amigo e admirador de ambos, empreende uma apolínea peregrinação afetiva através de individualidades que, em dado momento histórico-cultural, cunharam o caráter da cidade mítica. Nesse «Abecedário», figuram, entre outros, dois poemas dedicados às duas fragas graníticas transmontanas, um com o título de «Miguel Torga No Largo da Portagem»; o outro intitulado «Paulo Quintela». O dedicado ao autor de A Criação do Mundo do reza assim:
Todos os dias o poeta vem ao centro / sobe ao seu consultório e embarca para /dentro. / Diante da folha branca vai de viagem / navega sobre o tempo e nunca para / Há nele o canto de raiz e o verso vagabundo / da sua janela chega à outra margem / e dá a volta ao mundo / no Largo da Portagem.
Sobre Quintela escreve:
Nada sabíamos da língua portuguesa / e então sílaba a sílaba ele ensinou-nos / a música secreta das vogais / a cor das consoantes a ondulação o ritmo / o marulhar das frases e o seu / sabor a sal. / E também como pisar um palco / como falar como calar e sobretudo/ como sair de cena e entrar / no grande teatro deste / mundo. / Porque tudo era proibido e ele nos disse / que tudo pode ser ousado / desde que se aprenda a entrar a tempo / a colocar a voz e a não perder / a alma.
Nestas prodigiosas sínteses poéticas, de uma tão luminosa fundura a que só os príncipes da poesia têm o condão de descer ou de subir, encontra-se delineado um verdadeiro, muito completo e complexo programa de vida estética, intelectual e cívica, que tanto Paulo Quintela como Miguel Torga foram cumprindo enquanto por cá andaram. Nas facetas que no poema se realçam, tornou-se Quintela grande mestre e a sua obra de intelectual e o seu exemplo de cidadão empenhado deram disso testemunho. A poesia e a prosa de autores de «franças e araganças», que, através de traduções exemplares e recriadoras, naturalizou sem qualquer sotaque para português e que ficaram desde logo pertença da Literatura Portuguesa; se tivessem os seus autores cá nascido, seria decerto como ele as traduziu que escreveriam na nossa língua; o teatro vicentino que estudou e amou como ninguém desde os bancos do Liceu de Bragança difundiu e o elevou, depois, para o seu sítio condigno e certo: as tábuas do palco; o cidadão livre que sempre ousou ser, numa pátria contaminada por grandes medos miudinhos por tantas outras toxinas que lhe conspurcaram a atmosfera, não
raro tornando-se, armada ou armadilhada de um pesadume propenso e propício a que certas criaturas se bandeassem, fraquejassem e se perdessem, alma incluída, no céu da sua conversão…
No poema sobre Torga, Manuel Alegre, em palavras sucintas e certeiras, como é timbre dos grandes Poetas, delineia e recria, minuciosamente, o quotidiano do Poeta de Orfeu Rebelde. Era do seu consultório, no Largo da Portagem, que o Poeta, depois de regressar da noite, quase sempre insone, de macerado trabalho poético, em sua casa, zarpava todos os dias para viagens que só ele sabia deslindar. Transcrevo o
poema de abertura do 1.º Diário, 3 de Janeiro de 1932, (Torga iniciava e rematava sempre os seus Diários com um poema), que reflete esse trabalho noturno, noctívago, a que se entregava com a devoção de um crente da poesia que nunca deixou de ser:
Deixem passar quem vai na sua estrada. /Deixem passar / Quem vai cheio de luar. /Deixem passar e não lhe digam nada. // Deixem, que vai apenas / Beber água do Sonho a qualquer fonte; / Ou colher açucenas // A um jardim ali defronte. // Vem da terra de todos onde mora / E onde volta depois de amanhecer. / Deixem-no pois passar, agora // Que vai cheio de noite e solidão. / Que vai ser / Uma estrela no chão.
Vale também a pena transcrever um texto do Diário XII, de Fevereiro de 1977, em que o autor de Orfeu Rebelde revela, genialmente, a maneira como nasce um poema:
Foi durante a noite que escrevi o poema. Acordei inquieto, estremunhado, fiquei numa sonolência lúcida e, aos borbotões, os versos, na imprevisibilidade do minério arrancado às trevas da mina, começaram a surgir à tona do silêncio, alguns já estremados, puros, outros ainda agarrados ao cascalho. Depois, a razão clarificadora acudiu à inspiração tumultuosa, britou, peneirou, lavou, ordenou, e as pepitas ficaram articuladas de tal maneira que acabaram por formar um todo coeso, harmonioso e autónomo. Um texto na sua plenitude existencial, inexpugnável como um dia de sol.
Excitado pela evidência do milagre, que eu próprio mal podia compreender, não consegui mais pegar no sono. Pus-me a recitar cada estrofe, primeiro numa espécie de terror sagrado, a experimentar a segurança do ritmo, a verificar a verdade das rimas, a avaliar a flagrância das imagens. Por fim, confiado, a abaná-las rijamente, e a concluir, desvanecido, que tinha as raízes seguras. E assim tenho passado o dia com elas no ouvido, numa exaltação secreta, estranhamente otimista, menos vulnerável aos empurrões da multidão, feliz sem o dar a entender. É um regozijo íntimo, fundo, como se me encontrasse bafejado por uma graça que não tivesse merecido, nem pedido, nem recebido de ninguém. (8/2/1977, Diário XII)
Paulo Quintela foi o primeiro homem de teatro português que pôs em cena Miguel Torga. Em 1947, o TEUC representava Terra Firme no velho Teatro Avenida, e doze anos mais tarde, no mesmo local, o CITAC, que convidou expressamente Quintela para encenar uma peça de Miguel Torga, representava o poema dramático O Mar, integrado no seu I Ciclo de Teatro. A partir daí os destinos destes dois homens altivos, como duas vertentes de um Marão de carne e osso, separam-se para o resto da vida. E foi pena. Nunca soube deslindar as razões por que se deu tal rutura, nem talvez as houvesse bem definidas. Seriam fortes razões do coração, atrevo-me até a dizer de um grande amor ferido. No fundo, admiravam-se mutuamente, e outra coisa não seria de esperar de homens de tamanha envergadura. Eu próprio posso disso dar testemunho.
Paulo Quintela continua no seu labor de traduzir autores alemães, ingleses e franceses como Brecht, Nelly Sachs, Hauptmann, Nietzsche, Goethe, Kant, Ben Johnson, Molière e prossegue no TEUC durante cerca de mais dez anos, encenando Gil Vicente, Molière, autores gregos, como Eurípedes e Sófocles, e modernos como Garcia Lorca e José Régio. Miguel Torga havia ainda de publicar dois livros de poesia, Câmara Ardente e Poemas Ibéricos, três de prosa, o quinto e o sexto dias da Criação do Mundo e nove volumes do Diário. Paulo Quintela é o primeiro a sair de cena. No dia 9 de Março de 1987. Na véspera, domingo à noite, estivera a ver um programa televisivo intitulado Eu, Miguel Torga, documentário sobre o autor da Criação do Mundo. Acabado o programa, foi-se deitar e não mais acordou. Premonitório, não acham? Eu tinha estado com ele na sexta-feira anterior. E havia prometido levar-lhe na sexta seguinte o Diário XIV, acabado de sair, do qual lhe falara com entusiasmo durante a nossa última conversa de sexta-feira, 6 de Março de 1987. À despedida, no alto da escada, ainda me preveniu: «Não te esqueças de me trazer o diário do Torga...»
Miguel Torga viria a morrer cerca de oito anos mais tarde, em 17 de Janeiro de 1995.
No seu penúltimo diário, o XV, pode ler-se, na entrada com data de 9 de Março de 1987, dia da morte de Paulo Quintela: «A morte é uma grande reconciliadora. Não há desavença que lhe resista. O seu grande manto de equanimidade cobre todas as paixões da mesma vanidade. Só é pena que, depois dela, tudo seja irremediável.»
Depois de tudo, fico com a sensação de vazio absoluto, de que tudo ou quase tudo ficou por dizer. Paulo Quintela e Miguel Torga são grandes de mais para caberem nas páginas de qualquer escrito, e eu demasiado pequeno para os fazer caber numa simples e despretensiosa comunicação como esta com que vos tenho vindo a massacrar o bicho do ouvido e da paciência. Repare-se, porém, no milagre da poesia, capaz de sínteses fulgurantes: ficaram ambos retratados, em corpo e alma, no poema de Manuel Alegre. São assim os Poetas."
Bragança, 1 de Outubro de 2009

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

25 de Novembro de 1975, in Relação de Bordo, 1964-1988, de Cristóvão de Aguiar.


Coimbra, 25 de Novembro de 1975

"Era de esperar este desfecho. Andámos a brincar às revoluções durante muito tempo e quem brinca com o fogo. Neste momento o panorama apresenta-se feio e muito confuso, pelo menos há um forte desânimo nas hostes de esquerda. Os reaccionários exultam e esfregam as mãos de contentes e desabafam: "Até que enfim que vai haver ordem e disciplina, no caos em que isto se tornou." Para começar, e não variar, pede-se já a ilegalização pura e simples do Partido Comunista, mas Melo Antunes, principal responsável pelo Grupo dos Nove e seu ideólogo, esfriou o entusiasmo desses ultramontanos da política portuguesa, ao declarar na televisão, para grande desgosto de muitos, que o Partido Comunista não vai ser ilegalizado, pelo contrário, vai ser tão necessário como os outros para a continuação da democracia portuguesa. Há todavia quem assegure que este vinte e cinco vai ser o princípio do fim do outro que em Abril aconteceu."

Cristóvão de Aguiar.

terça-feira, 7 de julho de 2009

A "Maria dos Caracóis", deu-se ao trabalho de copiar esta magnífica passagem do Relação de Bordo I (1964-1988) de Cristóvão de Aguiar.

Coimbra, 24 de Agosto de 1988 -
O telefone emude­ceu. O carteiro não toca se­quer uma vez. O vento não pára. Os remédios não reme­dei­am. A dor de cabeça não esmo­rece. O Sol esqueceu-se do ofício e meteu folga. O silêncio não se constrói nem me destrói. A música não apazigua. Os jornais gri­tam que não querem ser li­dos. A espe­rança não esperneia. O calor tem frio. O frio tem fome. A fome tem sede. A sede está farta. As ideias embran­que­ceram. As pa­lavras en­louqueceram num hospí­cio de bolor esverdeado. O livro está atravessado no útero e não pede para nascer. Os amigos estão mor­rendo. A guerra nasce das entra­nhas do ouro ne­gro. Os filhos não se deixam filhar. As filhas idem aspas, mas as­pando. A poesia vi­rou car­raça em pêlo de cadelinha. A li­teratura teve mais sorte e caiu numa pane­linha. A chuva es­queceu-se de se molhar. O corpo é um copo sem espírito de be­bida. Os olhos suici­da­ram-se. A boca caiu na li­xeira. As horas não oram. Os minu­tos não minutam nem deixam minutar a minuta de um sonho. O Sol sujou-se. O céu caiu de susto. O pe­sa­delo não se assustou. O sonho sustou-se. Os olhos cabe­ceiam de sono. As mãos pe­di­ram memória a juro porque não pagam juros de mora. As pernas colunizaram-se sobre os pés. Os pés pediram tré­guas e não sa­pateiam. A sapateia dançarilha no chão do longe. O longe é uma parte da partilha ainda es­parti­lhada.A saudade é uma Ilha rodeada de ti. A Ilha veio pernoitar em tua cama e lá se deixou noivar. Os mortos não se cansam de vi­ver nem os vivos de apo­drecer. A morte anda a cavalo nos pon­tei­ros do relógio. O relógio faz que anda, mas, no íntimo, galopa. Os dias resfol­gam nos cavalos da noite. A noite de­bate-se no cre­púsculo caído. As nuvens entupiram os caminhos da viagem. A viagem per­deu o navio e dei­xou-se fi­car no cais. O comboio não pára no apeadeiro que me coubeO bi­lhe­te que tirei tem uma data falsa. Todas as datas são falsas sobretudo as dos ani­ver­sários. Ani­ver­sariar é o modo conjuntivo desconju­gado num tempo in­definido. Conti­nuo es­perando di­ante do espelho que a minha ima­gem espe­lhada se metamor­foseie na tua para nela me aposentar. O amor não se cansa. Assim seja!

Cristóvão de Aguiar in “Relação de Bordo” (volume 1)

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Barack Obama,"indomável força de vontade", por Cristóvão de Aguiar, in Jornal de Letras, 14 de Janeiro de 2009.

Only in America! Só na América poderão acontecer certos milagres. Tanto para o bem, como para o mal. Obama e Bush, respectivamente. Há quarenta anos era assassinado Martin Luther King. Toda a vida lutou pelos direitos de seus irmãos negros. Foi-se tornando uma voz incó­moda, insuportável para os racis­tas. E mataram-no. O mesmo tinha já acon­tecido a Abraham Lincoln, que aboliu a escravatura. Balearam-no num teatro. E a outros três presi­dentes também, afora outras figuras de relevo da política ame­ricana, como Robert Kennedy. Volvido todo esse tempo, historicamente breve, é eleito um afro-ameri­cano, por larga maioria e com grande delí­rio, para a Presidência – Barack Obama. Nin­guém se atreveria a acredi­tar nesse sonho no dia 4 de Abril de 1968, data em que Martin Luther King é assassi­nado por um racista em Memphis. Obama ia a caminho dos sete anos de idade.
I have a dream. Eu tenho um sonho! O mítico e profético discurso profe­rido, em Agosto de 1953, com a estátua de Lincoln em fundo, o Pre­si­dente que tem servido de modelo a Obama. Que força desabalada lhe permitiu transpor tantos empecilhos, a principiar pela cor da sua pele, e chegar aonde ninguém da sua estirpe jamais chegara? O segredo de tanto êxito deve morar na sua indomável força de vontade, na sua inteligên­cia, na sua personalidade intensa, no seu apego às raízes de que nunca se enver­gonhou.
A sua candidatura causou arrebatamento. Ele vinha religar o sonho ame­ricano, que os Pais Funda­dores arquitectaram. O seu discurso novo, per­suasivo e despido de vestes inúteis, seduziu os seus patrícios e grande parte do mundo cristão. Vêem nele o sonho encarnado, uma luz de espe­rança de que a vida melhore, de que a economia americana (e por sim­patia a do resto do mundo) se erga do atoleiro em que se afundou. Se o conseguir, tornar-se-á um herói que a História consagrará, uma persona­gem de romance, e quem sabe se a sua vida não inspirará um filme!
Torna-se necessário, no entanto, não cavalgar sem freio pelos céus da fantasia. A realidade mundial e doméstica que o espera é dura. Conflitos que se reacendem no Médio Oriente; outros na iminência de surgir; a retirada do Iraque; a guerra do Afeganistão; o perigo do Irão; o fecho de Guantánamo; o bloqueio a Cuba… São tarefas gigantescas com que Obama terá de lidar com muita perspicácia. Qualidades não lhe faltam. Com ele, cumpriu-se a profecia de Martin Luther King. E isto dá muitas esperanças de que o sonho não fique pelo caminho.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Figueira da Foz, O MAR, Relação de Bordo 1964-1988, de Cristóvão de Aguiar.

Figueira da Foz, 22 de Novembro de 1970.
O mar. O eterno búzio da minha infância, segredando-me não sei o quê de esquecidas lembranças. Em frente dele, sinto-me aliviado. Acodem-me aventuras sonhadas noutros lugares e tempos, em que viver cabia dentro do sonho. Até o mar me tiraram.

Figueira da Foz, 27 de Fevereiro de 1977.
Primeiro fim-de-semana passado no campismo. Gostámos todos. A Natureza é milagreira. À noite, os sons vindos do mar encantaram-me. Durante tantos anos habituado a adormecer ao som embalador daquele monstro, soube-me bem revivê-lo.

Cristóvão de Aguiar, in Relação de Bordo (1964-1988).

terça-feira, 22 de abril de 2008

Coimbra, 25 de Abril de 1974, in Relação de Bordo I (1964-1988), de Cristóvão de Aguiar.








Coimbra, 25 de Abril de 1974.

Se está bom tempo como hoje vou a pé logo de manhã levar o meu filho Artur ao infantário da Universidade, que fica um pouco acima do Penedo da Saudade, mesmo ao princípio da Avenida Dias da Silva. Quero ensiná-lo, e ao mais velho também, a ser andarilho, e de pequeno é que se torce o vime. Levo-o pela mão, tentando durante o percurso responder o melhor que sei a todas as perguntas que me costuma fazer e que redobram sempre que chegamos ao prédio onde está instalado o Farol das Ilhas, Solar de estudantes universitários madeirenses, que tem à varanda uma enorme vaca de gesso e papelão, quase ou mesmo em tamanho natural. E o Artur quer por uma força saber por que está sempre ali, ao frio, se não tem caminha para se deitar, se dá leite de manhã e por que não fala como as outras da Ilha, que dizem, muuu, muuu, porquê, porquê... Ainda tem cinco anos e meio, mas já viu muitas vacas ao natural, o que vai sendo uma raridade em crianças nadas e criadas nos meios urbanos. E também conhece a melodia do Hino Nacional, porque esta manhã ao subirmos a Rua Teixeira de Carvalho, um pouco mais acima da varanda-manjedoura da vaquinha, que por vezes e através da minha voz disfarçada faz muuu, muuu, a ver se lhe aquieto a língua perguntadora—chamou-me a atenção para o facto, pois ouvíamo-lo, alto e bom som, jorrando de uma janela aberta, naturalmente das bem acesas goelas de um rádio que parecia querer transmiti-lo para a cidade e seus arredores. Logo o meu filho quis saber por que razão tocava o hino, se havia festa no infantário. E então, na minha inocência, inventei-lhe uma história em que metia um ministro e alguns bombeiros, numa inauguração de um chafariz e de um urinol com casa de banho privativa, onde o senhor ministro fez cocó para inaugurar a sanita e que, além disso, o Presidente Tomás havia estado na véspera ou antevéspera em Coimbra, e não estava mentindo, para ver se tudo se encontrava bem inaugurado, por isso é que havia hino, et cetera e tal. Com certeza que ficou satisfeito com a minha explicação, porque não me perguntou mais nada. Logo depois, ao virar da esquina para a Dias da Silva, entreguei-o no infantário e segui o meu trajecto para a Universidade, sem maldar de nada. Vim pelo caminho entretido comigo mesmo, como é meu costume: viajando pela Ilha que trago comigo, enquanto me consolava a tragar os primeiros cigarros da manhã no jardim em frente do Liceu, muito antes de tocar a sineta do senhor Tavares ( deixei de fumar há três meses e cinco dias, por isso estou sempre sonhando com umas tragaças bem puxadas), que eu chegava de véspera à cidade, a cavalo na camionete da carreira, a primeira que passava às sete da manhã na freguesia. Meu pai tinha medo que a dos estudantes, quase uma hora mais tarde, às vinte para as oito, chegasse atrasada à cidade e eu faltasse à primeira aula, e ele tinha horror a pessoas faltosas. Só quando cheguei ao Edifício das Matemáticas é que aterrei na realidade, porque dei conta de que havia qualquer coisa de novo no ar, muita gente junta cá fora, num quase alevante e o edifício encerrado. O senhor Pelicano, que de certo me viu com cara de quem andava a leste, adiantou-se do magote e veio para mim de braços abertos e anunciou-me a boa nova de uma revolução em Lisboa, mas ainda se não sabia ao certo de que lado é que vinha, se dos ultras, se da esquerda. Desconfiei que nada de bom seria, porque ainda nem há um mês se dera a revolta das Caldas, que fora prontamente abafada. Nessa expectativa e com uma ténue esperança bichanando-me, abalei logo dali, quase a correr, em direcção ao Emissor Regional de Coimbra, onde cá fora se havia aglomerado um ror de curiosos ávidos de notícias como eu.
Encontrei o Nogueira e Silva, meu camarada em Mafra e na Guiné, que me garantiu que o movimento era de esquerda ( sempre bebeu do fino!), só o que se não sabia ao certo era se vingava ou não, mas, segundo lhe tinha constado, havia fortes e fundadas esperanças de êxito. Pedi logo um cigarro para celebrar e apaziguar os nervos, que emoções fortes sem nicotina sabem a pouco. Já muito depois do meio-dia, quando, em Lisboa já estava tudo bem encaminhado e detidos os dois mais altos responsáveis, foi lido, aos microfones do Emissor Regional, para começar a haver humor na revolução nascente, um comunicado oriundo do Governador Civel, jurando fidelidade da cidade de Coimbra e do seu Povo ordeiro ao Governo legítimo da Nação, estando garantida a paz e a ordem pública em todo o distrito.
Este dia foi tão rico em emoções e contra-emoções, que, somadas e bem condutadas, dariam pela certa para muitos meses de vida bem vivida. O maço de cigarros que acabei por ir comprar é que não chegou para o resto do dia! Lá se me quebrou a jura que fizera comigo mesmo. Seja tudo por amor da revolução e por ( des) alma do regime que foi derrubado.

IN RELAÇÃO DE BORDO I (1964-1988), de CRISTÓVÃO DE AGUIAR, Págs. 120 a 122.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Coimbra, 23 de Abril de 1975. Cristóvão de Aguiar, in Relação de Bordo (1964-1988), página 164.

Coimbra, 23 de Abril de 1975.
" Há poucos dias, durante a homilia da missa dominical na igreja de uma freguesia rural das cercanias, o padre falou aos seus paroquianos sobre as próximas eleições para a Assembleia Constituinte. Lançou mão da parábola para melhor se fazer compreender e disse-lhes:

-"Meus caros irmãos em Cristo: suponhamos que um de vós é dono de uma vaca leiteira; se ganhar o socialismo, fica o irmão com a vaca, mas tem que dar o leite a esse partido; se ganhar o comunismo, fica sem a vaca e sem o leite..." "

Cristóvão de Aguiar, in Relação de Bordo (1964-1988), página 164, Grande Prémio de Literatura Biográfica APE/CMP - 2000 (ESGOTADO)

Coimbra, 13 de Março de 1975. In Relação de Bordo (1964-1988) de Cristóvão de Aguiar.

Coimbra, 13 de Março de 1975
" A Imprensa Regional tem funcionado como um sismógrafo que, em vez de registar os abalos, tivesse o condão de os prever. Tem, na verdade, acusado com uma acuidade de vidente, as mais leves variações deste tempo político cada vez mais sísmico. Sempre que qualquer coisa esquisita anda no ar, logo as colunas de certos jornais se contorcem, imitando certos animais que lançam uivos agoirentos antes da tempestade se esborralhar sobre a terra. Será que essa imprensa prevê os acontecimentos mais relevantes, dando-se ao luxo de não seguir a reboque deles? Creio que não. Fareja-os apenas, porque alguns lhes são familiares. E ninguém melhor conhece as reacções da família do que os membros da dita. Mas não há dúvida de que certos melros de bico amarelo dessa imprensa têm de vez em quando acessos orquestrados que fazem reflectir, porque prenunciadores de borrasca eminente."


Cristóvão de Aguiar, in Relação de Bordo (1964-1988), páginas 162/163, Grande Prémio de Literatura Biográfica APE/CMP - 2000 (ESGOTADO)

quarta-feira, 12 de março de 2008

Coimbra, 12 de Março de 1975. In Relação de Bordo (1964-1988) de Cristóvão de Aguiar.

Coimbra, 12 de Março de 1975
" Durante a noite foi um tal nacionalizar. Algumas estavam mesmo a ser pedidas, mas, no total, acho que foi uma resposta demasiado extremista, porque precipitada, à intentona de ontem, mas, se calhar, não havia alternativa, devido ao estado a que isto chegou."


Cristóvão de Aguiar, in Relação de Bordo (1964-1988), página 162, Grande Prémio de Literatura Biográfica APE/CMP - 2000 (ESGOTADO)

terça-feira, 11 de março de 2008

Coimbra, 11 de Março de 1975. In Relação de Bordo (1964-1988) de Cristóvão de Aguiar.

Coimbra, 11 de Março de 1975-
" Desta vez não foi inventona, não senhor. Houve um morto e tudo, o soldado Luís, que pertencia ao Ralis mas a tragédia podia ter sido maior - estivemos à beira da guerra civil, com militares contra militares e uma onda de boatos de meter medo. Depois de tudo, foi a fuga do General Spínola para fora do País. Falhou-lhe o golpe e ala que se faz tarde. Desde que abandonou a Presidência da República, no final de Setembro passado, não parou de conspirar. Era dos que via comunistas por todo o lado, até na sopa. Qual será agora a cena do próximo capítulo? "


Cristóvão de Aguiar, in Relação de Bordo (1964-1988), página 162, Grande Prémio de Literatura Biográfica APE/CMP - 2000 (ESGOTADO)

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

COIMBRA, CRISTÓVÃO DE AGUIAR E A REAL REPÚBLICA CORSÁRIOS DAS ILHAS.

CLICAR NO TÍTULO PARA VER PÁGINA CORSÁRIA.

A Real República Corsários das Ilhas foi fundada em 1960 por iniciativa de estudantes provenientes do arquipélago dos Açores. Nos seus 41 anos de viagens a «nau corsária» já albergou marinhagem que se mostrou distinta.


A título de exemplo, cite-se o nome de Carlos Candal; o actual eurodeputado socialista era, em 1962, durante a grave crise que assolou a universidade, presidente da Associação Académica de Coimbra.


Ainda, durante a crise académica de 1972, destaca-se Carlos Fraião; este antigo corsário foi membro do Comité Central do Partido Comunista Português.

Também Germano de Sousa, Bastonário da Ordem dos Médicos e Cristóvão de Aguiar, escritor, viveram nesta República.







Por falar neste escritor, o zé manuel deixou um comentário na anterior versão desta página que reescreve um passo do Relação de Bordo (1964-1988), livro do referido Cristóvão de Aguiar, em que lança um olhar sobre as suas experiências nesta casa quando por cá passou nos anos 60:

"Coimbra, 1 de Janeiro de 1964 -
Na Real República Corsários das Ilhas, a cuja tri­pu­la­ção venho pertencendo desde 1961 (em Outubro ascendi a 2º telegrafista), a pas­sagem de ano foi, para mim, pavorosamente triste! De resto, nunca fui de grandes ex­pansões nessas horas que a tradição instituiu como marcos de viragem não se sabe bem de quê. Alheio ao natu­ral estarda­lhaço dos meus camaradas co-repúblicos, bem comidos e muito mais bem bebidos, encafuei-me no meu cantinho a ru­minar. É que 1964 vai ser o ano em que vou dizer adeus à vida de estudante (para sempre?) e ela agora que me estava cor­rendo tão bem: no terceiro ano sem ne­nhuma cadeira atrasada, mas é sempre as­sim). Isto por­que já no pró­ximo dia vinte e sete do corrente, numa se­gunda-feira logo de manhã, vou iniciar em Mafra o Curso de Oficiais Mili­cianos, com destino mar­cado para a guerra colo­nial. Consta da guia de marcha que recebi há dias, não esse des­tino, mas outro que vai de certeza de­sem­bocar naquele. Por isso, logo ao bater da primeira ba­dalada da meia-noite no reló­gio da torre da Universi­dade, senti que me es­tava afun­dando em terreno pouco firme e lodoso. Cheguei da Ilha em finais de Se­tembro com uma mala na mão e sem dinheiro com que mandar cantar um cego, quanto mais para con­tinuar os estu­dos. Havia justamente perdido a bolsa da Junta Geral do Distrito Autó­nomo de Ponta Delgada, novecentos es­cudos mensais, mas que me davam, resvés, para me ir sustentando em Coimbra. E perdi-a, não porque chum­basse, mas por não ter atin­gido a nota final de catorze valores, classificação exi­gida a partir do segundo ano até o final do curso para a manu­tenção da referida bolsa. Po­dia ter pe­dido di­nheiro emprestado, a juro de dez por cento, como é cos­tume lá na minha fre­guesia, mas meu Pai zan­gou-se comigo de­vido a um namoro reatado que ele não que­ria, derriço que, uma semana após a minha chegada a Coimbra, se des­manchou na se­cura de meia dú­zia de linhas de uma carta, que me acompanha, na car­teira, do­brada em quatro, as dobras delidas e enferrujadas… Por tal motivo, ne­gou-se a ser mi­nha fiança. Perdi a ca­beça e pedi que me antecipassem a incorporação! Veja-se o para­doxo: em tempo de guerra ser meio volun­tário, eu que, se ti­vesse co­ragem e juízo, devia mas era desertar daqui para fora. Na Ilha não queria ficar. Mi­nha tia Lurdes e o Ti José da Costa de­ram-me coragem e o dinheiro para a pas­sa­gem de barco e ainda mais algum para me ir tenteando. Cheguei à Re­pública e logo pus os meus companhei­ros ao par da mi­nha situa­ção. Houve reunião de casa à noite e ficou de­cidido, por unanimidade, que eu fi­caria lá na mesma com todas as prer­rogativas de um Corsário e só pagaria as minhas des­pe­sas, que seriam aponta­das pelo Comissá­rio de Bordo da Nau Corsária, quando recebesse os pri­meiros ordenados de aspi­rante. Eram apenas quatro meses que ficaria a de­ver, de Outu­bro a Janeiro, que or­çariam em cerca de três contos de réis. De­pois, quando viesse de Mafra passar os fins-de-se­mana, andaria à le­bre, como se diz em lin­guagem acadé­mica. Suspirei de alívio e co­movi-me com ta­ma­nho com­panhei­rismo de que poucos como os ilhéus, fora das Ilhas, são capazes."


Por não conseguir perceber bem os motivos que levam um gajo a querer meter-se na guerra… terei que reconhecer que às vezes só se dá pelo erro depois de se ter dado o passo inexorável da tomada de decisão e consequente prisão às amarras que daí decorrem… nos tempos actuais, em boa consciência, eu, o corsário que escreve estas linhas, teria que manifestar, a um colega que se me aparecesse com o mesmo dilema existencial que fosse pedir telha e comida ao Exército para o qual fosse servir… Mas, exceptuando este detalhe que se prende com a valoração do mundo e com a justeza, ou não das coisas, o texto retrata aquilo que os Corsários têm melhor sabido fazer, não deixar um irmão na mó de baixo.
Termino citando a frase de Antero de Quental aposta numa das paredes da sala de refeições da Casa:
“Mais vale experimentá-lo que julgá-lo, mas julgue-o quem não puder experimentá-lo”

COMENTÁRIOS RELEVANTES:
1) Anónimo disse:
Na crise de 62 o Candal já não era o presidente da Associação Académica de Coimbra.
O Presidente era o Francisco Paiva ( Medicina), da República ao lado dos Corsários, Os Galifões.
17 de Janeiro de 2008 2:33

2)Anónimo disse:
A frase do fim do texto não é de Antero de Quental, mas, sim, dos Ludíadas, de Luís de Camões.
18 de Janeiro de 2008 16:16

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Soito-Sabugal, 24 de Dezembro de 1970

"[...] Mas fiquei compensado. Deus quis mostrar-me, a mim, que sou descrente, que se há solidão entre os homens há verdadeira comunhão na Natureza. E logo pela manhãnzinha, que estes milagres querem-se na pura claridade da hora do nascer, Ele paramentou-se e distribuiu a comunhão. Nem um ateu poderia deixar de estremecer. E era um regalo para os sentidos observar as árvores, de joelhos, e os montes, e os campos, recebendo o maná branco que descia lento do cálice do céu. Depois foi a sinfonia branca do silêncio. "

Cristóvão de Aguiar, Relação de Bordo, 1964-1988, pág. 106.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Soito-Sabugal, 28 de Dezembro de 1970, Relação de Bordo, 1964-1988. Esgotado

" Aqui vou de abalada com os olhos roídos de neve e o remorso de não querer ficar.
Ficou o Loto com as suas aventuras de contrabando, a pedir uma tela ou um livro. Deixei-o falar à vontade. E foi tal a violência da descrição, que me pus com ele a rastejar ao som dos primeiros tiros dos carabineiros. Fiquei molhado até às virilhas na travessia do Côa, enquanto os cavalos tingiam a neve de sangue.

Estação da Guarda, mesmo dia, um pouco mais tarde-

Este frio mata as almas - diz uma mulherzinha aqui ao meu lado, enquanto bate com os pés no cimento do apeadeiro. As pessoas que vejo dão-me a impressão de corpos sem alma. Esta enorme lâmina que cai verticalmente de um céu alucinado corta tudo rente, até o comboio que está parado na linha em frente e se destina a Hendaia e parte dentro de momentos. O comboio é longo, escuro e triste. Nem homens nem mulheres se dependuram nas janelas. É um comboio ao contrário. O chefe da estação apita, mas não tem culpa. A lâmina dá mais uma guinada e apanha os olhos daquela mulher que chora. Da carruagem acena uma mão tímida, sem coragem. No apeadeiro, a mão e o lenço da mulher responden, sem coragem também."


Cristóvão de Aguiar in Relação de Bordo 1964-1988, pags 108 e 109.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Soito - Sabugal, 24 de Dezembro de 1970.

"Chegaram alguns emigrantes de França. Curtidos das neves e dos frios da estranja, vieram aquecer-se à lareira do torrão. Trouxeram os seus automóveis potentes - gritos de protesto à servidão de séculos. Apesar do frio, as ruas estão cheias de vozes e de cores. Duas línguas confraternizam nesta tarde raiana. No cruzeiro, homens possantes e terrosos armam, com tocos de castanheiro, a fogueira da confraternização. São os mordomos do Menino. Há mais calor humano neste altar de tocos do que nos litúrgicos repiques dos sinos, convidando o povo para a Missa do Galo. Tanto que me enternece todo este paganismo pré-histórico, em que uma lareira acesa significa uma lareira realmente acesa, à qual todos se podem aquecer."
Cristóvão de Aguiar, in Relação de Bordo, 1964-1988, página 105.










A imagem foi retirada do blogue Capeia Arraiana.

Sítio da Nazaré, 20 de Dezembro de 1970. In Relação de Bordo 1964 - 1988

"Deste púlpito de rocha, a imaginação pára de trabalhar. Fica atónita em face de  tamanha grandeza. Ao voltar as costas, porém, apanhei num relance toda a dimensão trágica das gentes destas praias. Uma velha embuçada num xaile negro, encostada a um muro caiado de um branco de noiva, comungava o sol da tarde que declinava. Exactamente por cima da sua cabeça, a sombra projectada do cruzeiro completava o quadro fantasmagórico - a mulher ficou ali crucificada naquela cruz de sombra."

Cristóvão de Aguiar, páginas 103 in fine e 104.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Um episódio respigado do livro Com Paulo Quintela À Mesa da Tertúlia, de Cristóvão de Aguiar







O Largo do Leão! Assim denominado por via do leão de bronze que fazia parte integrante do monu­mento a Luís de Camões, outrora no largo defronte da casa do poeta Eugé­nio de Cas­tro e agora rele­gado para um recanto ajardinado, no segui­mento da mata do Jar­dim Botânico, mesmo à ilharga da empena do antigo CADC, hoje Insti­tuto de Jus­tiça e Paz. O leão de bronze não possui testícu­los. A ausên­cia de tão impor­tante apên­dice anató­mico constituiu para mui­tas gera­ções de estu­dantes motivo de cha­cota e de mote de gozo aos caloiros. Quando no prin­cí­pio dos anos qua­renta o camar­telo ini­ciou a des­trui­ção da Alta, o monu­mento a Luís de Camões foi removido. O leão de bronze foi para o Pátio da Inqui­si­ção e anos depois para o átrio exte­rior da entrada da Associa­ção Acadé­mica, no Palá­cio dos Gri­los. No iní­cio da década de sessenta, após o novo edi­fí­cio da AAC ter sido inaugu­rado, o leão de bronze foi tras­ladado para um recanto do jar­dim onde permaneceu até à reabilita­ção do monu­mento a Luís de Camões no local onde hoje se encontra.

Embora o local escolhido peque pela sua extrema humildade se comparado com a grandiosidade balofa do monumento erguido, nos Arcos do Jardim, ao Papa João Paulo II, é de louvar a lembrança das autoridades, creio que municipais. Só que as suas congéneres académicas deveriam ter decerto uma palavra a dizer. E esta seria a de que o monumento a Luís de Camões poderia muito bem ter sido reerguido no antigo local e reconstituído como dantes. Faltam os dois versos dos Lusíadas esculpidos em bronze no pedestal da estátua, sem os quais não se compreende a castração do animal esculpido em bronze:

Melhor merecê-los sem os ter
Que possuí-los sem os merecer.


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Eis um exemplo paradigmático de um texto de "Literatura Lusa-Ateniense".

Esta tipificação é destinada à melhor compreensão por parte de todos os adeptos da, digamos assim, "Teoria da Segmentação Territorial da Literatura Portuguesa"... :)))

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Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006