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sábado, 14 de maio de 2011

Catarse ou a escrita mano a mano de Cristóvão e de Francisco de Aguiar, por Victor Rui Dores

“A minha vida não tem idade: tem tempo”

Vitorino Nemésio, Eu Comovido a Oeste

As recordações dos verdes anos avivam-se à medida que vamos ficando mais vividos e menos jovens… A nossa existência é uma perpétua dialéctica: saudades do futuro e sauda¬des do passado

Catarse (Editora Lápis de Memórias, Coimbra, 2011) é um livro sobre a infância e a adolescência insulares enquanto busca de um tempo irremediavelmente perdido. Os autores, irmãos no sangue e nas emoções, protagonistas - narradores, revisitam, pela escrita, tempos, lugares, pessoas e memórias que povoam o seu imaginário. Vivendo em diferentes espaços geográficos, e através de um conjunto de cartas que vão tro-cando, recordam bons tempos que não foram tempos bons. “A vida, em S. Miguel era muito cainha” (pág. 20) porque esses eram os tempos de misérias várias e de repressões variadas de uma sociedade patriarcal – o salazarismo, o subdesenvolvimento, a hipocrisia social, a pobreza, a intolerância, a emigração, a guerra colonial…

A luta contra o esquecimento é a razão primeira da literatura em qualquer uma das suas formas e géneros, sendo que, no caso do livro em apreço, estamos perante um “diálogo epistolar em forma de romance”. Eis uma escrita de inquérito ao subconsciente, através da qual os autores, em diferentes registos e de forma sincera e sentida, travam intensos diálogos e partilham memórias surpreendentes.

Santa Luzia é o microcosmo de referência desta obra, constituindo-se como espaço onde pulsa todo o universo e toda a geografia sentimental e afectiva da ilha de São Miguel, de onde a acção parte viajando para outros lugares: Santa Maria, Terceira, Madeira, Lisboa, Coimbra, Guiné, Américas, Faial, Pico…

Por conseguinte, este livro dá conta de impressões do vivido e do sentido, isto é, das sensações e dos sentimentos que ficaram enraizados nas memórias dos autores. Essas memórias ora são muito positivas (a recordação das figuras tutelares da Mãe, dos Avós e outros familiares, amigos e conhecidos que surgem do fundo dos tempos como uma aparição de ternura no meio das ruínas da vida), ora são terrivelmente negativas (por exemplo, a memória magoada das tiranias do Pai, os ritos e os rituais da iniciação sexual que, nesse tempo de obscurantismo, descambavam invariavelmente para actos de pedofilia, violação e muitas outras formas de violência).

As deambulações dos narradores são fascinantes e lemos este livro como se de um romance se tratasse. Dando conta dos seus “eus” angustiados na sua relação conflituosa com a vida e com os outros, Cristóvão e Francisco, através de viagens interiores e narrativas justapostas, lançam olhares sobre o tempo do fascínio e do sortilégio (porque iniciático) do despertar para a vida, para os amores, para o mundo e para o conhecimento das coisas. E narram reminiscências e histórias das suas vidas com os outros. A prosa de um é sentida na pessoa do outro. E, pela escrita, fazem uma verdadeira catarse. Escreve Francisco, na página 304:

“Desculpa ter estado a escarafunchar coisas do passado, mas estou a passar por uma fase de despejar tudo aquilo que devia ter despejado na altura certa”.

Escreve Cristóvão:

“E que são estas cartas senão um exercício de psicanálise? Desde ontem já recebi três textos teus, qual deles o mais espirituoso! Vou, nas minhas respostas, procurar dar-lhes mais pormenores que os complementarão. Devido à diferença de idade entre nós, e ainda que tenhamos uma grande fatia de passado em comum, possuímos experiências desiguais e diversas histórias para contar, mas as personagens são praticamente as mesmas que conheci nos primeiros vinte anos que permaneci na ilha, só as mais novas me escapam.” (pág. 236)

As memórias sucedem-se com um ritmo perfeito e a descrição das pessoas evocadas – tanto a física como a psicológica – é um primor de minúcia. Desfila um universo de venturas malogradas perante nós. Vivências comuns confluem de página em página para nos recriarem um tempo (praticamente todo o século XX) que nos parece já tão distante mas que a geração dos autores não esquece nem desvaloriza como não glorifica em falsas nostalgias.

Esse foi um tempo de “brandos costumes”, de muitas inquietações e poucas alegrias, de muitas dúvidas e poucas certezas, um tempo marcado por sonhos e desejos, paixões e temores, partidas e chegadas, separações e reencontros.

Mas atenção: estes olhares retroactivos não visam um mero exorcismo da saudade. Os autores respondem a uma verdadeira “prise de conscience”. Por isso, estas páginas são, acima de tudo, lugar de confronto, de denúncia (dos mecanismos dos poderes políticos e religiosos) e de renúncia às máscaras de um quotidiano alienante, até porque os autores foram vítimas desse estado de coisas e sofreram na pele as consequências desse tempo português fascizante.

Catarse constitui uma narrativa coesa e consistente, perfeitamente equilibrada e apoiada em dois eixos narrativos: coloquialidade, prosa enxuta e leveza de estilo por parte de Francisco de Aguiar (texto em itálico). Virtuosismo verbal e manejo robusto da linguagem por parte de Cristóvão de Aguiar (de antologia são as páginas 313 e 314: “Os meus mortos…”). Francisco era até agora escritor adiado. Cristóvão é o autor consagrado da Raiz Comovida, ficcionista de méritos reconhecidos. O primeiro é o comparsa municiador de memórias; o segundo é o criador – arquitecto da narrativa. Ambos se complementam e, numa escrita que mistura memória, diário e discurso literário, falam do problema do destino do homem e do sentido da vida. Em páginas humaníssimas que em nós causam uma imediata adesão afectiva.


Victor Rui Dores

domingo, 13 de junho de 2010

Um Livro por Semana LXXVIII. Relação de bordo, de Cristóvão de Aguiar. Faial Online, por Victor Rui Dores.


Um Livro por Semana LXXVIII

13 de Junho de 2010

Relação de bordo, de Cristóvão de Aguiar

ou a memória vasculhada
“Viajo por dentro de mim e chego sempre à Ilha onde Ela ficou.”

Homem inquieto e irrequieto, escritor telúrico e intempestivo, observador infatigável e dotado de discernimento crítico, Cristóvão de Aguiar escreve com os olhos da memória.

A sua trilogia romanesca Raiz Comovida – A semente e a seiva (1978), Vindima de Fogo (1979) e O fruto e o sonho (1981) – é a prova disso mesmo: ali se dá conta da memória da infância açoriana, no microcosmo da Tronqueira, com gente de grande riqueza psicológica e funda expressão humana, de que são exemplos a avó Luzia, o avô José dos Reis, o Ti José Pascoal entre muitas outras personagens que falam com sotaque micaelense, sendo o(s) livro(s) servido(s) por uma escrita que mergulha fundo no húmus do discurso popular e vernáculo. (Recorde-se a propósito que, em 1987, Raiz Comovida foi publicado pela Editorial Caminho, em edição revista e remodelada num só volume).

Todas as obras de Cristóvão de Aguiar são atravessadas pela memória do vivido e do sentido. Há efectivamente uma memória que escreve este autor, quer na sua poesia – Mãos vazias (1965), O Pão da palavra (1977), Sonetos de Amor Ilhéu (1992) –, quer na ficção narrativa, sendo nesta última que este escritor tem dado melhor conta de si.

Cristóvão de Aguiar é, acima de tudo, um romancista. Para além da já referida Raiz Comovida (sem dúvida a sua obra emblemática), escreveu outros livros, cujos géneros literários ele vai classificando de forma criativa e da seguinte maneira: Ciclone de Setembro (1985), “romance ou o que lhe queiram chamar”; Passageiro em trânsito (edições de 1988 e 1994), “novela em espiral ou o romance de um ponto a que se vai acrescentando sempre mais um conto”; O braço tatuado (1990), “narrativa militar aplicada”; Um grito em chamas (1995), “polifonia romanesca”; e, agora, Relação de bordo (1999), “diário ou nem tanto ou talvez muito mais”.
Há três grandes vectores que atravessam toda a obra de Cristóvão de Aguiar: a memória insular, a emigração e a guerra colonial.

Para melhor conhecer este autor e a sua escrita, convirá aqui avançar com alguns dados biográficos.

Luís Cristóvão Dias de Aguiar nasceu no dia 8 de Setembro de 1940, na freguesia do Pico da Pedra, ilha de S. Miguel, e aí viveu até aos 20 anos de idade. Cresceu num ambiente familiar completo de avós, tios, primos e vizinhos. Deles ouviu histórias que lhe regalavam a imaginação nos serões de Inverno. A oralidade exerceu sobre ele uma influência decisiva: neto e sobrinho de poetas repentistas, o avô era tanoeiro, o pai serralheiro e a mãe era dada às poesias – com todo este “pecúlio afectivo e humano” estava destinado a ser escritor.

Concluídos os estudos liceais em Ponta Delgada, no Liceu Antero de Quental (onde foi aluno de Armando Côrtes-Rodrigues e Ruy Galvão de Carvalho), Cristóvão de Aguiar embarcou para o continente, em Outubro de 1960, “com duas malas cheias de roupa e de muitas ilusões”, conforme nos relata em Relação de bordo.
“A ilha foi comigo e comigo permaneceu até hoje, como companheira fiel. Foi então que a compreendi! A distância traz-nos a nitidez das coisas e das pessoas”. (p.

Estudante em Coimbra, sofre “fortes abalos sísmicos afectivos”, anda transviado pelos caminhos da vida e da literatura e vive a agitação cultural que eclode nos anos 60. Interrompe os estudos por causa da tropa. Faz a recruta em Mafra e, depois, parte para a Guiné, onde viverá, durante quase dois anos, a “patriótica estopada”, isto é, a dolorosa experiência da Guerra Colonial. Dessa guerra e dos retroactivos da sua memória, dão conta os livros Ciclone de Setembro e O braço tatuado.

Regressado da Guiné, fixa residência em Coimbra, em cuja Faculdade de Letras conclui a licenciatura em Germânicas, desenvolvendo depois actividade como professor e tradutor. Pai de três filhos, entrega-se à “lavoura das palavras” e vive a dúvida e a inquietação da escrita. Escreve ele na sua Relação de bordo:
“E quanto mais leio o que escrevi, mais insegurança sinto”. (p. )
Em 1978 dá à estampa Raiz Comovida, que viria a receber, nesse mesmo ano, o Prémio Ricardo Malheiros e a merecer, três anos mais tarde, uma crítica elogiosa do temível e temido João Gaspar Simões, no jornal “Diário de Notícias” (2 de Abril de 1981), que ficou deslumbrado com o “pitoresco léxico” da obra.

Aquele exigente crítico, referindo-se à originalidade linguística e à técnica narrativa de Raiz Comovida, nomeadamente à assimilação de uma linguagem estritamente popular, ambientada no espaço geo-social micaelense, escreve que Cristóvão de Aguiar “é ágil e forte na linguagem” e considera-o “mestre na invenção de ambientes”.
Outros reputados críticos e escritores acolhem Raiz Comovida da melhor forma, entre os quais se destaca Urbano Tavares Rodrigues, Fernando Namora, José Manuel Mendes, João de Melo e Vasco Pereira da Costa.
É chegada agora a altura de lançar alguns olhares ao livro Relação de bordo (Campo das Letras, 1999), dário que Cristóvão de Aguiar escreveu entre os anos de 1964 e 1988. O autor deixa aqui a marca do seu indiscutível talento literário, demonstrando (à semelhança de Samuel Pepys, Jonathan Swift, William Byrd, ou, no caso português, de um Miguel Torga, ou de um Fernando Aires) que a escrita diarística não é um género menor.
Relação de bordo é uma obra importante, por três razões maiores. Em primeiro lugar, porque nos informa sobre as ideias, as opiniões e as reacções de Cristóvão de Aguiar sobre as coisas, os acontecimentos e as pessoas de um tempo e de um lugar. Em segundo lugar, porque espalha alguma luz sobre aspectos relacionados com alguns eventos que marcaram este país, contribuindo, assim, para que fiquemos a fazer uma ideia mais pormenorizada e, por isso mesmo, mais rica e mais perfeita do período em apreço. Em terceiro lugar, porque nos pôe em contacto com o estilo do autor, levando-nos a surpreendê-lo em estado puro e nascente, tal e qual ele surge no movimento despreocupado de quem não pensa na futura publicação.

Por conseguinte, este livro vem contribuir para que o nosso conhecimento de Cristóvão de Aguiar – do homem, do seu estilo e de uma época específica – seja mais amplo e mais completo.

De resto, o diário é um dos meios privilegiados de revelação das personalidades. A obra destinada à publicação e à publicidade rodeia-se de precauções para que não se corra o risco de se dizer mais do que se deseja. No diário (registo íntimo de pensamentos, atitudes, observações e experiências do escritor) é-se mais verdadeiro, no sentido de que se é mais natural e mais sincero.

Em Relação de bordo, autor e narrador são entidades coincidentes. Cristóvão de Aguiar deixa neste diário olhares inesperados e originais sobre os homens, as coisas e os acontecimentos, fazendo um ajuste de contas consigo próprio (por vezes o eu do texto dá lugar a um tu judicioso e imperativo – a voz da sua consciência ?), com os outros e com o mundo. “Escrever é escrever-se”, disse Julia Kristeva. O escritor fala abundantemente de si e dos seus familiares: os que com ele vivem, os que ficaram na Ilha (a qual se lhe “reverteu em pedra alojada na vesícula”) e os que se encontram emigrados.

Aliás, a (numerosa) família de Cristóvão Aguiar possui uma “tradição embarcadiça”, movimentando-se por espaços dos Açores, do Continente português e das Américas. Ao lermos este diário, estamos condenados a entrar na intimidade não só do autor, mas também dos seus familiares – de tal maneira eles se expôem e nos são expostos. Isto faz com que o autor circule num apetecível triângulo amoroso: a Ilha, Coimbra e a América. Vivendo na sua encantada e romântica Coimbra, ele recorda a Ilha namorada (e a “namorada da Ilha”) e escuta as vozes da avó Luz, do avô Anselmo, da mãe (que lhe escreve bonitas cartas) do pai (com quem mantém uma relação nada pacífica), do irmão Francisco e de muitas tias e primas. No dia 9 de Julho de 1979, referindo-se á sua herança sócio-cultural, escreve:

“O romance Raiz Comovida (…) não nasceu do pé para a mão: teve uma longa gestação, praticamente desde que saí da Ilha e comecei a compreendê-la com mais profundidade. Não é em vão que se nasce numa Ilha e se vive nela até aos vinte anos, para depois a deixar para sempre, na pele de um emigrante que sou, filho e neto de embarcadiços. Entre a parca bagagem de estudante, vinha também a minha Ilha, que, a pouco e pouco, se foi entornando para dentro de mim, transfigurando-se. Tinha sido nela que dera os primeiros passos, com muitas topadas (no verdadeiro sentido do termo), fora nela que aprendera, por dentro, o gosto amargo dos dias sujeitos e sem futuro, onde apenas floria a flor da esperança numa mítica América, paraíso atado na bolsa da imaginação e agarrado ao desejo, sempre à mão para qualquer eventualidade.

No início da década de sessenta, Coimbra teve em mim o efeito de um tremor de terra dos mais elevados da escala de Richter. Foi um deslumbramento e uma bebedeira constantes, que me deixaram os miolos em calda de pimenta. O ilhéu-bicho-de-conta que era (e ainda sou) passou num repente a viver num mundo explosivo de sensações novas, que, de tão intensas e variadas, mal conseguiam assento no rústico universo que me deixaram em herança” (… p. )

Relação de bordo vale também pelos ecos que nos dá da génese dos livros do seu autor, à medida que vão sendo escritos. Ei-lo a questionar o seu próprio acto de escrita (que lhe causa angústia), a registar o “feed back” dos seus romances junto dos críticos e dos leitores. De resto, ele deixa-nos, neste diário, um perfil que se casa perfeitamente com o que se surpreende nos seus romances.

Por outro lado, este livro é um animado filme mostrando cenas da vida vivida entre 1964 e 1988. Surpreendemos o autor (com o seu “feitio eriçado”) enredado em frustrações, amores mal sucedidos e súbitas paixões impossíveis… Aluno da Faculdade de Letras de Coimbra, vive atormentado com os estudos e alimenta a vaga ideia de vir a ser escritor. O seu primeiro livro de poesia, Mãos Vazias, não é bem recebido pela crítica… A tropa chama-o. Feita a recruta, parte para a Guiné. Temendo a morte em combate, pede à mulher que venha ter com ele – para lhe fazer um filho e, assim, deixar descendência… E é na qualidade de combatente da Guerra Colonial que escreve páginas magistrais dando conta dos angustiados e angustiantes dias de guerra:
“… E eis-me aqui, diante de mim, nu, andrajoso, suplicante, a alma enregelada e crucificada na cruz destes dias sem nome. Nos olhos, uma fornalha de fúria e uma fome antiga não sei em que víscera, essa fome de séculos que é já grito milenário de todas as bocas em mim. Eis-me, pois, aqui, disparando bombas de palavras ao concentrado silêncio da noite. Eis-me aqui, tentando pescar estrelas no poço aberto do firmamento. Eis-me aqui, indefeso e nu, interrogando não sei que morto que vive numa parte de mim… Em frente de mim, nu e com o frio de todos os pólos, interrogo-me como se fosse réu e juiz ao mesmo tempo. E as palavras que ouço vêm da minha voz antiga, saída do mais fundo de mim, carregada de pedras e de cardos, que grita e se contorce, morre e ressuscita, e continuo, indefeso e nu, aqui em frente de mim…” (p. )

Este autor é mais prosador que poeta. No entanto, em Relação de bordo, exprime-se, aqui e ali, em poesia: de realçar os admiráveis sonetos O visionário e Alma dolente, bem como esse notável poema que dá pelo nome de Sentimento de um ilhéu encalhado na praia.

Numa prosa nervosa e viva, Cristóvão de Aguiar comenta livremente e sem rebuços acontecimentos que marcaram os anos 60: dá conta da morte de Nikita Krutschov, manifesta-se contra as guerras do Vietname e do Ultramar; testemunha o impacto causado pela publicação do livro Praça da Canção, de Manuel Alegre; critica a apreensão, levada a cabo pela PIDE, da Antologia da Poesia Erótica e Satírica, de Natália Correia; entusiasma-se com o primeiro homem a caminhar sobre a lua; assiste, com sentido crítico e irónico, à queda de Salazar; desconfia de Marcelo Caetano; denuncia o regime, os vícios e os ridículos da sociedade.
Depois vem o 25 de Abril de 1974, em que a revolução e a poesia andaram de mãos dadas na rua… Cristóvão de Aguiar descreve, com grande perspicácia, o impacto dessa revolução por todo o país, o derrube do antigo regime, a rendição da PIDE, os primeiros vagidos da democracia, a celebração do 1º de Maio…Atento e vigilante, reage criticamente à imprensa reaccionária (a do Continente, a das ilhas e a da diáspora), denuncia os movimentos separatistas dos Açores e da Madeira e lança golpes certeiros à “insular bazófia”… Aos microfones do Emissor Regional de Coimbra, vai relatando cenas da vida social, política e familiar. Ainda e sempre, vai reagindo, pela escrita, a um quotidiano cheio de “tão belas contradições”…

Regressa frequentemente à ilha (há em Cristóvão de Aguiar um permanente desejo de a ela voltar), onde reencontra as raizes e revisita toda a geografia sentimental e humana ligada à memória da infância, seu paraíso perdido. Impressiona-se com a riqueza vocabular das suas gentes e regista: alpardusco (lusco-fusco), garetos (biscates), batacum (escorregadela), fiminha (fêmea), etc. Delicia-se a ouvir o Ti José da Costa a dizer, em Coimbra: “Estou-me consolando a apreciar lindeza tamanha”.
O escritor efectua várias viagens aos Estados Unidos da América e fica impressionado com as contradições americanas. Ali vai encontrar “a mais requintada libertinagem” a par do “mais conservador puritanismo”. Desperta-o o “imigrês” e a aculturação dos emigrantes (tema que viria a desenvolver em Passageiro em trânsito). E é assaltado por preocupações de cariz universal.
“E se mudássemos de planeta ? O nosso já deu o que tinha a dar” (p. )
Neste autor está vivo o interesse vital da experiência humana, tanto como o interesse intelectual pelas criações do espírito.

Prossigamos a nossa viagem pelo diário. Cristóvão de Aguiar é agora pai de três filhos (José Manuel, Artur João e Luís Francisco), marido afectuoso e cidadão responsável. Fala apaixonadamente do seu grande mestre Paulo Quintela, com quem privou de perto e de quem nos traça um retrato admirável. Aliás, convirá recordar que Cristóvão de Aguiar é autor de um trabalho (de “nótulas biográficas”) de referência intitulado Com Paulo Quintela à Mesa da Tertúlia (1986).

Recorda também outras grandes referências na sua vida: Miguel Torga, Joaquim Namorado, Fernando Namora, Luís Albuquerque e Mário Braga. Com igual paixão fala dos seus amigos do Liceu e dos seus “companheiros de República e da Guerra”: Antero Dias, Medeiros Ferreira, Viriato Madeira, Jorge Ormonde de Aguiar, Weber Mendonça, José Noronha Bretão (de quem nos dá inesquecível testemunho), entre outros. E dá conta de pessoas com quem convive(u) e que se lhe atravessaram na vida: Vitorino Nemésio, Aurélio Quintanilha, Natália Correia, Fernando Assis Pacheco, Baptista Bastos, Almeida Pavão, Dias de Melo, Manuel Ferreira, Pedro da Silveira, Rui Alarcão, Jaime Gralheiro, Louzã Henriques, Linhares Furtado, Fernandes Martins, Carlos Moreira, Zeferino Coelho, Vital Ferrão, Teixeira Ribeiro, Álamo Oliveira, João Afonso, João de Melo, Luís Fagundes Duarte, Marcolino Candeias, Vasco Pereira da Costa, Onésimo Teotónio de Almeida, Duarte e Ciríaco (o duo que popularizou o poema de Cristóvão de Aguiar intitulado Naufrágio, escrito a partir da melodia da canção tradicional terceirense Charamba), etc.
Enfim, ao longo desta Relação de bordo – “o caderno das minhas contas correntes” –, Cristóvão de Aguiar vai (d)escrevendo acontecimentos que marcaram uma época (a par do interesse literário, há, nesta obra, uma importância sociológica que convirá não perder de vista). Por outro lado, através de uma escrita acutilante, contemplativa, impressionista, terna e rebarbativa, o autor vai exercendo alguma catarse relativamente às minudências da vida: as arrelias domésticas, as preocupações quotidianas, familiares e sociais e as muitas dúvidas que o assaltam. E tudo isto nos é dado de forma sincera e sentida, com mágoa e alegria, com amargura e esperança. Mas sempre com uma visão crítica e muito lúcida.
Em Relação de bordo, Cristóvão de Aguiar escreve a falar. Com grande poder evocativo e boa capacidade expressiva. E lançando sobre as coisas do mundo um olhar profundamente humano e universal, ele que encontrou a salvação nas palavras e através da escrita.

Victor Rui Dores

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Marilha ou as marés da inquietação. Crítica literária de Victor Rui Dores, in Faial Online. 17- 06-2009.

Um livro por semana XXX
17 de Junho de 2009
Marilha
ou as marés da inquietação

Falar de Cristóvão de Aguiar é falar da força telúrica de uma escrita que, ainda e sempre, parte ao encontro das raízes e fica entre a ilha e a viagem. Uma escrita que, mergulhando fundo no húmus da oralidade e da linguagem popular das ilhas açorianas (essencialmente a de S. Miguel) dignifica sobremaneira a literatura portuguesa.

Falar deste autor é também falar da exigência estética, pois que estamos perante alguém que possui uma arte literária e cultiva um estilo próprio, sendo de salientar a regionalização de uma linguística (consagradíssima em Raiz Comovida, sua obra emblemática), a exploração da sonoridade, a manipulação a nível lexical, a ordenação rítmica, a ousadia sintáctica, a par de outros recursos e virtualidades: imaginação verbal, capacidade narrativa e mestria discursiva..

Cristóvão de Aguiar é, efectivamente, um persistente e incansável trabalhador da palavra pois que, com notável afinco, escreve e reescreve os seus livros, assumindo nesta matéria uma posição que julgo ser única no âmbito da actual literatura portuguesa.

Vem isto a propósito da publicação do seu romance Marilha (Dom Quixote, 2005) que resulta precisamente da reescrita de dois livros deste autor – Grito em Chamas (edições Salamandra, 1995) e Ciclone de Setembro (editorial Caminho, 1985) – que agora se constituem numa só obra dividida em duas partes, mas com um fio condutor que as interliga.

Atentemos no título: Marilha, “a sílaba primordial de mar quase aberto e as restantes palatizadas no lh de ilha” (pág. 281) é Marília: mar e ilha. O mar, aprisionamento e evasão, é símbolo eterno de um regresso às águas amnióticas do ventre materno. A ilha, sendo a beleza e o fascínio, simboliza a mulher genesíaca e fecunda, a mulher-ilha – Marília – princípio e fim de todas as coisas, portadora da vida e da morte, anunciadora dos sinais e dos mistérios.

Recorrendo à memória e à invenção, e através de um processo de cruzamento entre a experiência real e a reelaboração desse mesmo real, Cristóvão de Aguiar lança, neste livro, profundas interrogações sobre a condição humana.

Está aqui o tema maior deste autor: os sonhos perdidos da infância insular enquanto paraíso irremediavelmente perdido e enquanto aprendizagem feita, na família e fora dela, através de muitas interrogações, aquisições e angústias… Que o diga Severianinha que, por ser canhota, é castigada pela solteiríssima professora D. Jacintha da Luz, a “Caracola” que, na sua escola, não admite coisas diabólicas. “Cruzes, canhoto”…

Marilha é um tumulto de memórias e recordações. Aqui se fala de um povo obediente e temeroso em busca de uma redenção e de uma salvação nos “incertos caminhos da emigração” (pág.275). Aqui se fala de um sentido da vida, de uma ancestralidade virada para a dimensão humana: a vida e a morte, os sonhos desfeitos, as vozes resignadas, as inquietações e alegrias, o mar e a distância, a ausência e a saudade, as partidas e os regressos, o fluir do tempo, os encontros, os reencontros, os desencontros…

As personagens são muito humanas, mas não menos frenéticas e tumultuosas… São personagens do infortúnio e do sobressalto que vivem num universo abrasado e perturbador e se movimentam num contexto rústico e telúrico da ilha de S. Miguel, a freguesia da Tronqueira (porventura um outro modo de dizer Pico da Pedra, terra natal do autor), onde a tensão se sobrepõe à acção e a intensidade ao conflito.

Ressalta, desde logo, tia Severiana de Jesus, cujo grito estridente acontecido numa manhã de Agosto põe em alvoroço a vizinhança. Motivo: por engano, Severiana acabava de ver as suas economias consumidas pelo fogo. Uma consumição, tanto mais que a poupança (treze contos de reis, uma fortuna para quem era pobre) estava destinada a um negócio apalavrado de Ti Aristides, seu marido. Tudo começou quando ela esvaziou na boca do forno a gaveta atafulhada de velhos recibos e outra tralha inútil. Só que com a tralha lá se foram os treze contos de réis, “queimados para todo o sempre”…

O grito (agónico) de Tia Severiana é o drama de um povo triste em tempo de subdesenvolvimento, pobreza, intolerância e opressão.

A acção situa-se no primeiro quartel do século XX , desenrolando-se até aos nossos dias. Há ecos da Primeira Guerra Mundial. Aqui se recorda a gripe pneumónica trazida pelos tripulantes de um navio japonês e que causou 2000 vítimas na ilha de S. Miguel. Como se não bastassem as “convulsões telúricas”, os poderes instituídos exerciam então funções de vigilância repressiva: o regedor, a professora Caracola, o padre Crisóstomo. Os ricos eram ricos (o doutor Virgínio de Medeiros, Dona Taveira Moniz e o industrial Jovino de Faria) e os pobres cada vez mais pobres (José dos Reis, cantador, o Guilherme, maluco e vagabundo, Chico Moleiro… E há o Angelino Bem-Falante, o Almeida Progressista, Presidente da Casa do Povo, o Couvinha, dono do Café Pérola Tronqueira, Jacinto Correia, o arqueólogo e Dona Clarinda, sua esposa. Há festanças e há a filarmónica Música Nova e há beatas que engrolam o terço e há muita e desvairada gente que alimenta mexericos… Neste, como em todos os livros de Cristóvão de Aguiar, ouve-se um malho a bater na bigorna…

Num discurso (em monólogo interior) balançado entre o passado e o presente, o narrador capta, com notável poder de observação e extraordinária pormenorização, o “espírito do lugar” desse microcosmos da Tronqueira. Cortará o “cordão umbilical” que o liga(va) a esta freguesia e rumará para o espaço mais vasto de Coimbra, “cidade sem mar” (pág. 224). Na memória levará a recordação do Pai, da Mãe, de Vavó Luzia, do Largo do Coreto e do povo que é seu: pedreiros, sapateiros, moleiros, cantoneiros, lavradores, campónios, corcundas, aleijados e tantos outros “servos da gleba”… Na sua memória há-de ecoar as badaladas do relógio da Torre da Matriz, o convívio com Marília no Café Milhafre e a visão apetecível da baía de ver passar navios… Não se concretiza o desejo de assistirem ao nascer do sol na Serra da Lagoa do Fogo, na Ponta da Madrugada ou na Ponta do Silêncio porque, entretanto, ocorrerá um eclipse total do sol…

De resto o narrador continuará a sentir a acidez do limão galego que vai espremendo nas agruras da sua vida… Ri-se da prosápia de alguns e da bazófia de muitos… Revisitará Tronqueira e aí encontrará uma nova geração de lavradores e “exércitos de funcionários públicos”… Longe vão os tempos em que um velhote não queria aceitar a instalação de luz eléctrica na freguesia… Agora é tempo de uma nova ordem social. O regime autonómico vigora nas ilhas e fala-se dos “custos da insularidade ou da insalubridade” (pág. 247).

Estamos perante uma escrita que é também ela lugar de confronto, porque Cristóvão de Aguiar denuncia as verdades ilusórias, renuncia às máscaras de um quotidiano alienante, questiona os mitos do nosso passado e as mitologias do nosso presente incerto.

Considero que uma das facetas mais aliciantes da arte verbal deste escritor reside na perspicácia da sua ironia. Refira-se, a propósito, as referências que, a pretexto da defesa da dignidade canina, nos são dadas aos cães das Faculdades de Letras, Direito, Medicina e Ciências e Tecnologia…

De salientar o processo de intromissão de uma voz narrativa que surge (grafada em itálico) enquanto veículo de uma visão da realidade ficcionada e que poderá muito bem ser o autor enquanto responsável pelo texto narrativo. Este mesmo processo havia já sido experimentado em Trasfega, seu livro anterior.

Rico de espessura evocativa e bem carpinteirado, Marilha aí fica a merecer a nossa melhor atenção. Porque este é, decididamente, um livro que se lê com infinito prazer.


Victor Rui Dores, in Faial Online Publicação Periódica Online
faialonline@gmail.com

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Cães Letrados, ou a fusão dos afectos, recensão crítica de Victor Rui Dores.

“Minha pobre Pantera, que tão cedo deste mundo cão te vais apartar.”
(pág. 138)

Em permanente desassossego criativo, Cristóvão de Aguiar andou, mais uma vez, pelo sótão da memória a mexer em penumbras empoeiradas…
Isto significa que, com mais um livro publicado, este autor continua a arrumar, nas páginas que escreve, os sonhos da infância.
Falar de Cristóvão de Aguiar é falar de uma reinvenção constante e de uma contínua e continuada necessidade de expressão literária. Ao (re)escrever os seus livros, ele carrega consigo a ilha perdida e mitificada, num diálogo que, partindo dos Açores, atravessa a história de Portugal da segunda metade do século XX até aos nossos dias, e busca espaços do universal.
Este açoriano escreve com mestria narrativa e imaginação verbal, num discurso literário que mergulha fundo no húmus da oralidade. De resto toda a sua obra é uma revisitação a lugares, pessoas, memórias, coisas e animais que povoam o seu imaginário.
Em Cães Letrados (2008, Calendário, geral@calendario.pt), Cristóvão de Aguiar lança olhares sobre cães e cadelas que foram “os inseparáveis e afectuosos companheiros da minha infância e juventude” (pág. 10). Os textos que compõem a obra foram extraídos, com ligeiras alterações, de vários livros seus onde as histórias sobre os referidos canídeos se encontram.
Com expressivos desenhos da autoria de André Caetano, Cães Letrados desperta em nós uma imediata adesão afectiva. E isto porque o autor humaniza os cães, emprestando-lhes sentimentos, emoções e estados de alma, dotando-os de grande lucidez e fascínio. Nesta matéria, aprendeu, e bem, a lição de Miguel Torga na referência incontornável que é esse clássico da literatura portuguesa que dá pelo título de Bichos (1940).
Mais do que cães e cadelas, mais do que companheiros fiéis, amigos e protectores, a Girafa, o Alex, a Monalisa, o Adónis, o Isquininho, a Tina, o Ligeiro, a Regina, o Schwarz, a Ísis, o Valente, a Pantera a Petruska, o Polícia, a Andorinha, entre outros, são personagens que sentem e agem como se de humanos se tratassem. Inevitavelmente o leitor tornar-se-á cúmplice deles e das suas aventuras e desventuras. Neste último caso, o atropelamento na via pública é um perigo que, a cada momento, espreita esses animais.
Os homens (pela voz e experiência do narrador) compartilham com os cães o grande valor da amizade – e a amizade é, aqui, a lição essencial da vida –, estando uns e outros irmanados na luta pela sobrevivência e a contas com as perplexidades, as inquietações, as vicissitudes e os dramas do dia a dia. A natureza instintiva de uns é a natureza instintiva de outros. E, para todos, o mistério da vida reside como a questão maior.
(Há também a considerar o papel simbólico do cão e, a propósito, convirá lembrar que uma das primeiras citações sobre cães na literatura nos remete para a Odisseia, de Homero, quando Ulisses, após longo exílio e diversas aventuras, regressa à ilha de Ítaca disfarçado de mendigo e é reconhecido apenas por Argos, o seu cão já velho e sem forças para qualquer acção além de abanar o rabo ao reencontrar o dono. Ulisses então chora…).
Tal como no mundo dos humanos, também na canidade há hierarquias e estratificações sociais. Os cães também são vítimas de injustiças, sejam eles dobermann, setter, pastor alemão, husky, ou um simples rafeiro. Há cães de “vocação aristocrática” (pág. 93) e que têm “casa, cama, mesa e pêlo esfregado” (pág. 61) e há “a cachorrada vadia e plebeia” (pág. 85); há os que são rafeiros e os que vivem “abarrotando de pedigree” (pág. 113); há os que recebem “a costumada ração de meiguice e afagos” (pág. 136) e os que fogem à rede da brigada camarária, ou pura e simplesmente são abatidos no canil municipal… Há o cão vadio da rua e há “o cãozinho pekinois de luxo de fidedigna linhagem” (pág. 160). Uns são órfãos, outros mimados…
Mas, em Cristóvão de Aguiar, os caninos nunca deixam de ter grandeza e verticalidade, possuem até comportamentos de gente… Como esquecer, por exemplo, a descrição (ia escrever cena) comovente e comovida em que o Alex, na véspera de morrer atropelado, se deita ao lado do dono, no sofá da sala, e o beija sofregamente como que a adivinhar a sua morte prematura?... E como não recordar, para sempre, a Andorinha a parir seis cachorros, em pleno palco de Guerra Colonial?
Por conseguinte, a força de Cães Letrados está precisamente nessa afeição canídea, isto é, na humanidade e na fraternidade partilhadas.
Mas há uma excepção que o autor, não inocentemente, reserva aos “Cães universitários”, numa das mais bem conseguidas narrativas do livro. Com efeito, os cães das Faculdades de Letras, Direito, Medicina e Ciências e Tecnologia não são amoráveis nem íntegros… A carga semântica de “canzoada” diz tudo. (“Cão que ladra não morde”. Enquanto ladra…).
Esta é uma das facetas mais aliciantes da arte verbal de Cristóvão de Aguiar: a perspicácia da ironia. Neste autor a ironia não é um dom – é um dado.
Numa prosa de afectos, rica de espessura evocativa e profundamente humana, e num registo que varia entre a narrativa, o conto e a crónica memorialista, Cães Letrados é um livro simples, honesto e sentido. Escrito com os olhos da memória.

Horta, 17 de Dezembro de 2008

Victor Rui Dores
Escritor

sábado, 16 de fevereiro de 2008

BRAÇO TATUADO: "É UM MURRO NO ESTÔMAGO", CRÍTICA DE VICTOR RUI DORES. Açoriano Oriental.14-02-2008


Retalhos da Guerra Colonial
2008-02-14 12:13

A Guerra Colonial (1961-1974) constituiu uma das mais trágicas encruzilhadas da História portuguesa e é ferida que ainda não cicatrizou na memória dos que a viveram. Não foi só o caudal de feridos, estropiados, desaparecidos, desertores e mortos que essa guerra provocou. Foi também a memória de um tempo em que o medo, a angústia, a crueldade e a intolerância foram postos ao serviço dos mecanismos repressivos do Estado Novo.
A “Síndrome do Stress Pós-Traumático da Guerra” não é mera figura de retórica – é uma enfermidade que atinge hoje milhares de ex-combatentes (há estudos que apontam para cerca de 140.000), com reflexos directos nas suas famílias, havendo mesmo psiquiatras que afirmam tratar-se de um problema de saúde pública.
Os que ontem eram jovens na flor da idade, vivem hoje o trauma e o recalcamento dessa guerra escusada e inglória. Na guerra aprenderam a amar melhor a paz. Vendo a morte a rondar por perto, aprenderam o valor excepcional de viver. E, porque calaram durante longos anos a indignação, têm vindo a dar testemunho dos horrores vividos e sentidos. Nesta matéria, e no âmbito da produção literária, há autores incontornáveis que, através da escrita, fizeram (e continuam a fazer) catarse e exorcismo da memória: Álamo Oliveira, António Lobo Antunes, Cristóvão de Aguiar, Fernando Dacosta, Fernando Assis Pacheco, João de Melo, José Martins Garcia, Manuel Alegre, Mário de Carvalho, entre outros.
Por outro lado, o cinema português tem vindo também a dar importantes contributos na revisitação desse conflito armado, havendo a destacar filmes como O Mal Amado (1974), de Fernando Matos Silva; Um Adeus Português (1985), de João Botelho; Inferno (1999), de Joaquim Leitão; Preto e Branco (2002), de José Carlos de Oliveira; Os Imortais (2003), de António Pedro de Vasconcelos, entre outros.
Mais recentemente, dois excelentes comentários televisivos vieram avivar a memória dessa guerra e lançar novas formas de compreensão da mesma: As Duas faces da Guerra, de Diana Adringa, e A Guerra, de Joaquim Furtado.
É neste contexto que surge o livro Braço Tatuado – Retalhos da Guerra Colonial (Dom Quixote, 2008), de Cristóvão de Aguiar, agora reeditado em nova versão. Este romance começou por constituir uma das partes de Ciclone de Setembro (1985), tendo sido mais tarde autonomizado com o título O Braço Tatuado (1990). E esta é uma atitude de coerência de Cristóvão de Aguiar, na medida em que estamos perante um escritor que, contínua e continuadamente, reescreve os seus livros.
O autor, cumprindo serviço militar obrigatório, viveu uma experiência traumática de dois anos no pior palco da guerra colonial: Guiné. E, por isso mesmo, faz uma “digressão retrospectiva” (pág. 28) a vivências, perplexidades e amarguras dos dias incertos dessa guerra – feita de ataques, flagelos, emboscadas, contra-emboscadas e outras atrocidades…
Os soldados da companhia 666 vivem o jogo da vida e da morte num quotidiano povoado de angústias e medos. As ciladas e as armadilhas espreitam a cada momento. E, nas páginas deste livro, ecoam rajadas de G-3, explosões de granadas, minas, morteiros, rockets, canhões, armas ligeiras e semi-automáticas. Há ordens insensatas, missões absurdas e relatórios hipócritas. Há picadas de incerteza, montes baga-baga e “rios secos de angústia” (pág. 134). E há a ração de combate, a leitura expectante de cartas e aerogramas. E há a loucura do capim, o desespero do cacimbo, a miséria dos autóctones, os efeitos do paludismo, as densas matas, as extensas bolanhas, a violação de mulheres indefesas, as sevícias sobre os prisioneiros… É, enfim, o horror de matar e ver morrer e uma contundente chamada de atenção para o desrespeito pela vida humana.
Braço Tatuado – Retalhos da Guerra Colonial denuncia a hierarquia “castrense e castradora” e o regime político que sustenta uma guerra sem fim à vista. O livro desenrola as teias do delírio e da loucura. Neste aspecto, é bastante significativo e sintomático o suicídio de Niza – tatuado com os dizeres AMOR DE LENA, a sua amada que o trocaria por outro…
Anti-heróis inadaptados numa guerra onde o que conta é manter-se vivo, as personagens (humaníssimas) deste livro entregam-se com sinceridade a contar o tempo que lhes falta para o definitivo adeus às armas, aguardando, com impaciência, que o navio Uíge (“em sua colonial majestade” – pág. 131) os transporte de regresso a Portugal. Como aspecto positivo da guerra, ficarão apenas as amizades que se construíram, as cumplicidades que se aprofundaram, as experiências de grupo que se viveram.
De salientar que Cristóvão de Aguiar percepciona a guerra não só sob o ponto de vista de ex-combatente, mas também na perspectiva do próprio povo africano, afinal tão vítima como nós dessa guerra escusada e inglória. Os portugueses lutavam pela sua sobrevivência, tal como os guerrilheiros do PAIGC lutavam pela sua libertação. Há aqui um olhar humano e uma consciência crítica sobre o logro da guerra colonial.
Escrito com desenvoltura narrativa, Braço Tatuado – Retalhos da Guerra Colonial é um murro no estômago. Urge lê-lo, sabido que é curta a memória dos homens.

Victor Rui Dores

BAFATÁ; NOVA LAMEGO; DUNANE; PICHE; KANQUELIFÁ; BURUTUMA; FAJONQUITO; RIO GEBA; JABICUNDA; CONTUBOEL; MAFRA; COIMBRA; ILHA; SONACO; SENEGAL; GUINÉ-CONACRI; CARESSE; MECA; NHACRA; AMURA; BURUTUMA; ALGARVE; PIRADA; MANSOA; ANGOLA; BAMBADINCA; CAMBAJU; MADINA DE BUÉ; PIGIGUITI; ARGEL; LISBOA; BISSAU; SARE BACAR; UÍGE.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

A Valsa do Silêncio, de Victor Rui Dores, 2005, 341 Páginas.







Nascido da pena de Victor Rui Dores, A Valsa do Silêncio é uma fábula sobre uma personagem masculina de origem açoriana, Augusto, professor de piano, cuja profissão exerce numa grande cidade. Esta personagem solitária encontra-se com outra personagem também solitária chamada Raquel, prostituta no início da acção. Dos encontros sexuais que mantêm, vai nascendo uma relação cada vez mais profunda, embora com altos e baixos. A acção vai-se tornando cada vez mais complexa, à medida que se descobre que Augusto é casado, que a mulher o deixa, que ele conhece muitas outras mulheres sem nunca as amar, embora uma delas venha a ter uma filha dele, descobrindo por fim que ama Raquel. Raquel por sua vez segue um caminho de sucesso, pois sai da prostituição, passa a porteira de condomínio fechado, terminando por estudar Direito e ser uma distinta advogada. De professor de piano, Augusto chega a um considerado intérprete de música clássica, percorrendo várias cidades da Europa e Japão, fazendo concertos. Em relação ao amor, será que é tão bem sucedido? E quando terminará um romance há muito iniciado? Esse seu primeiro romance “haveria de ser a sua forma de reinventar a vida. Escrevê-lo-ia?” (p. 208). A aprendizagem do amor é bem mais difícil de conseguir. Sempre com a música como principal objectivo, a arte, portanto, em que o esforço merece compensação, é na solidão dos dois momentos mais cruciais do romance que Augusto aprende mais sobre ele próprio: quando se isola para preparar uma gravação em CD “como um monge medieval” (p. 164), e quando, só no Japão, permanece algum tempo, aprendendo com os sábios do Oriente todo um conhecimento milenar que escapou aos ocidentais e que para Augusto, que buscava “a perfeição das coisas artísticas” (p. 133), vai servir para reconhecer o amor que tem por Raquel, a mulher que evolui sempre, lendo muito de literatura universal e confessando ao seu diário, “a escrita é o meu lado silencioso” (p. 301), ou, “eu sou cada vez mais eu” (p. 235). Raquel vem a descobrir que também ama Augusto, apesar da sua escolha ter recaído num colega com quem vive mas que morre inesperadamente.
Augusto mantém-se uma personagem sonhadora, “um criativo impetuoso e impaciente – em eterna busca da perfeição literária e da fecundidade musical” quando terminou o romance a que chamou A Valsa do Silêncio (p. 282) que gostaria que fosse entendido por todos e “tivesse a qualidade dos clássicos, sem deixar de ser moderno”. Augusto é um homem saudoso da sua ilha, nitidamente identificada embora não nominada com a ilha Graciosa, um homem que lembra a infância duma forma muito profunda e bela, e as pessoas dessa ilha, incluindo os familiares como a tia Cleófita moradora numa casa solarenga em decadência vivendo com uma criada, Maria de Jesus, e cinco gatos siameses, e onde se bebe um licor de canela único; ou o tio Juventino, traumatizado pela guerra colonial; ou ainda o tio John, o tio da América, embarcado no Lima (p. 331). À sua ilha vai com frequência onde encontra gente bondosa e fraterna.
Raquel por outro lado parece aprender mais com os livros que lê e com as reflexões que faz no diário. Interroga-se sobre variadas questões a respeito da mulher como a mutilação genital em África, e sobre a aldeia global que hoje impera no mundo. O silêncio tem grande importância neste romance: era o que Augusto mais apreciava na música e o que era mais apreciado pelos músicos após um dia de trabalho; Raquel aprendera a amar o silêncio de que necessita até para trabalhar, e as pessoas da sua ilha tinham “a sabedoria do silêncio” (p. 336). Este romance é uma busca do AMOR: na relação homem/mulher ambos de corpo e alma inteiros e na fusão dos seres com o Universo. Essa busca é muito insistente da parte da personagem Augusto que, através da música e da literatura, ambiciona fama como superação da morte. Se a sua obra artística for suficientemente valiosa, Augusto tornar-se-á imortal.
(Maria Eduarda Rosa)
Boletim Cultural da Horta.
28 de Abril de 2005


Victor Rui Dores é Escritor, Professor, e Crítico Literário.
Como não sou crítico literário, apenas posso dizer que gostei muito.

O Podium Scriptae recomenda: "A Valsa do Silêncio", de Victor Rui Dores.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Victor Rui Dores, sobre Trasfega, de Cristóvão de Aguiar

Cristóvão de Aguiar
Trasfega, Publicações Dom Quixote, 2003

Com olhar atento e mão certeira, continua Cristóvão de Aguiar a carregar a ilha perdida e mitificada e a escrever a sua (e nossa) memória insular. E fá-lo com mestria narrativa, imaginação verbal e ousadia sintáctica, num discurso literário que mergulha fundo na raiz (comovida) e no húmus da oralidade açoriana. É disso exemplo este livro, que recebeu o Prémio Literário Miguel Torga/Cidade de Coimbra.

A obra, que inclui treze contos, inscreve-se e escreve-se no âmbito da literatura de significação açoriana. Ainda e sempre, há um imaginário ilhéu, há uma memória telúrica e há uma capacidade evocativa que escreve Cristóvão de Aguiar. Essa memória é o atlas do escritor que, nos seus livros, continua a dar conta da sua identificação com a ilha e consigo próprio. Porque a ilha deixa uma memória indelével e retroactiva: nela está o paraíso irremediavelmente perdido da infância e da adolescência. Daí a revisitação que o narrador empreende a toda a geografia sentimental, afectiva e humana à terra que lhe deu berço: a ilha de S. Miguel. Falar deste autor é falar da regionalização de uma escrita vernácula e de uma efabulação literária autêntica. Cristóvão de Aguiar escreve o homem açoriano, descreve a paisagem açoriana, exorciza a memória e capta o «espírito do lugar» porque aprendeu – e bem – a lição de Miguel Torga: «o universal é o local sem paredes». Ou seja, quanto mais regional, mais universal.

Trasfega continua a saga da trilogia romanesca Raiz Comovida (o livro mais emblemático de Cristóvão de Aguiar, agora em nova versão revista e remodelada, numa belíssima edição da Dom Quixote, saída em 2003) e vem acrescentar, à galeria imensa de personagens populares deste autor, um José Maiato (que recebeu uma Língua de Fogo que o pôs a falar inglês, sem ele saber como), um Mestre Libório (dado a estranhíssimas flatulências...), uma Tia Escolástica das Dores (soberba beata), um Ti Burrica (velhote castiço de grande recorte humano), entre outras.

Mas este livro não dá só conta de gente rural, de inocências rústicas e de acontecimentos pícaros. Há aqui dois registos, dois investimentos semânticos: o popular e o literário. Vejamos estes exemplos: «[...]a Ti Mariana das Quintas, mulher de gadanho rijo e de pêlo na venta [...]» (p. 50);

«Caminhava ligeiro galopando em seu dorso nu. Das calhas do silêncio, alucinado de sirenes, escorria um bafor de incêndio [...]» (p. 96)

O narrador age e reage: comenta, analisa, denuncia, renuncia, questiona o real, empreende viagens interiores. Narrativas há em que ele se confronta com as suas próprias memórias e vivências, havendo a salientar o conto «Trasfega» em que uma voz narrativa se intromete para fazer uma espécie de inquérito ao subconsciente. Esta mesma situação verifica-se no conto «Domingo», o que empresta a esta obra marcas de diferença e de originalidade.

A religiosidade açoriana é, por outro lado, muitíssimo bem agarrada (e ironizada) nos contos «Judas Iscariotes» e «O Sonho». Neste último, há um soberbo retrato de padrice e beatice e há a história de um seminarista (nunca a iniciação sexual foi tão longe na literatura açoriana) de ressonâncias queirozianas, que bem mereciam um filme. Custódio (na pele de um outro padre Amaro) e Tia Escolástica (no papel de uma outra Santa Joaneira) passarão, a partir de agora, a emparceirar com as grandes personagens da melhor literatura portuguesa de sempre. E a merecer, por isso mesmo, a melhor atenção do realizador José Medeiros, que, à referida trilogia romanesca, foi colher abundante campo de referências para as celebradas séries televisivas «Xailes Negros» e «O Barco e o Sonho [...]».

Há um outro tema que é recorrente na larga folha de serviços literários de Cristóvão de Aguiar: a Guerra Colonial, ferida que ainda não cicatrizou na sua memória, pois que, durante dois anos, conheceu uma experiência traumatizante na Guiné. Há ecos e memórias que ressoam no belíssimo conto «A Noite e a Sombra», que, de forma onírica e fantástica, dá conta do absurdo desse estúpido e inútil conflito armado. Recorde-se que este romancista é autor de uma das melhores ficções sobre a referida guerra: O Braço Tatuado (Signo, 1990).

Trasfega remete-nos para um tempo fascizante e salazarento em que os poderes absolutos (o governativo, o clerical e o militar) corrompiam absolutamente. O cerco apertava-se e, mesmo no microcosmo pacato da ilha, as personagens defrontam-se e confrontam-se com os poderes instituídos e com os mecanismos aleatórios e repressivos do Estado Novo. O regedor, o padre e o professor primário simbolizavam (e exerciam) o poder e policiavam os bons costumes...

Apreciei ainda, neste livro, o enfocamento visual na maneira de contar. Atente-se neste exemplo:

«Sentada no vão da janela, Maria do Carmo fixa os olhos num ponto imaginário, deixa os lábios esboçarem um sorriso de incerteza e pergunta para dentro de si mesma se Custódio era de facto sincero. Duas lágrimas quentes e teimosas deslizam como dois ribeirinhos pelas faces abaixo e vão alojar-se-lhe na boca encarnada. São salgadas. Como o sal que o padre António lhe colocara na boca no dia do seu baptizado, havia mais de vinte e cinco anos...».

Estão aqui as técnicas cinematográficas do raccord e do flash back: as lágrimas salgadas de Maria do Carmo (presente, a cores) e o sal que lhe foi colocado na boca no dia do seu baptizado (passado, em sépia). É de uma grande eficácia o traçado substantivo da escrita e é deveras excelente a visualidade dos diálogos (cf. «O Sonho»).

Trasfega será porventura a obra mais cinematográfica de Cristóvão de Aguiar, mesmo sendo um livro de passagem. Se bem que, para mim, Um Grito em Chamas (Salamandra, 1995) continue a ser o seu melhor livro, aceite o sábio princípio que diz que o melhor livro de um escritor é sempre aquele que ainda não foi escrito...

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

A Tabuada do Tempo, crítica de Victor Rui Dores

“Três são os meus lugares de escrita: Coimbra, a Ilha, a América.”pág. 286

Iniciei a leitura deste último livro de Cristóvão de Aguiar temendo estar perante mais do mesmo em relação à sua produção no campo da diarística: Relação de Bordo (1964-1988), Campo das Letras, 1999; Relação de Bordo II (1989-1992), Campo das Letras, 2000; e Nova Relação de Bordo, Publicações Dom Quixote, 2004. Agora que fecho o livro, tenho esta certeza: depois de ter escrito muito bem, Cristóvão de Aguiar voltou a escrever melhor.
A Tabuada do Tempo, com o subtítulo de “a lenta narrativa dos dias” (Almedina, Coimbra, 2007) e que foi merecedor, no ano transacto, do Prémio Literário Miguel Torga, passará a constituir referência importante na já vasta produção literária deste autor que continua a “escreviver”.
Cristóvão de Aguiar, 42 anos de vida literária, é escritor de compulsivas memórias. É conhecido o seu intenso e obstinado trabalho oficinal: memórias e experiências acumuladas e vertidas, com paixão e arte, na escrita. Trabalhador operoso e incansável das letras portuguesas, ele é autor do apuro formal, da exigência estética, da preocupação estilística e da descoberta lexical e sintáctica.
Com uma capa de concepção gráfica particularmente feliz, A Tabuada do Tempo, diário factual, passa em revista o ano de 1996 (numa viagem que começa em Janeiro e termina em Dezembro) e constitui mais um acto de auto-revelação de um escritor autêntico que se quer renovar e que procura dizer as coisas de uma maneira sua.
Cristóvão de Aguiar não se confessa – revela-se e, por essa via, revela-se-nos através das suas interrogações e incertezas, perplexidades e deslumbramentos, angústias e estados de alma. E, lançando olhares a alguns dos principais factos e acontecimentos ocorridos no referido ano, o narrador – fino observador da vida que se lhe oferece em palco – questiona e reflecte esse tempo, lança doses de humor e (amarga) ironia ao quotidiano, viaja em peregrinação interior, sendo simultaneamente protagonista, participante, observador e mediador. E nunca descura a sua relação com a escrita:
“Acordei de imaginação entupida”. (pág. 19)
Por exemplo: Cristóvão de Aguiar dá-nos pistas muito interessantes sobre a escrita da Relação de Bordo e a (re)escrita de Raiz Comovida, sua opus magnum. E lamenta a incerteza da publicação, denuncia os silêncios dos editores, ou os atrasos de resposta das editoras…. E fala-nos abertamente dos autores e das escritas que mais o influenciaram.
Escrevendo para iludir o tempo, e procurando na escrita “uma perfeição que nunca se deixa apanhar”, Cristóvão de Aguiar mantém-se fiel e coerente no mais profundo de si próprio. Voz inquieta e inquietante, continua ele a fazer da escrita uma catarse e um ajuste de contas com o passado e as novas mitologias do presente. E a partilhar connosco as preocupações mais íntimas do ser humano, de tudo fazendo assunto literário: a sua relação com os familiares (emotivas e emocionantes são as memórias do Pai e da Mãe) e amigos (Carlos André, Viriato Madeira, Mário Mesquita, José Augusto, Oliva, Victor Torres, etc.); a evocação da Ilha (a mítica e a real) e de Ela (a amada, referente constante na sua diarística); o seu modo de (d)escrever as suas viagens de comboio, as actividades lectivas, as memórias magoadas da guerra, as maleitas que o apoquentam, a viagem à América, ou a sua relação com os cães Isquininho, Alex, Regina, Adónis, Monalisa, Tina, Eurice, Pitão…
Efectivamente nunca o autor perde de vista a qualidade do seu discurso literário, quer fale de Virginia Woolf, Ernest Hemingway, May Sarton, ou de futebol…
Cristóvão de Aguiar escreve com amor e humor. E são muitos os olhares que lança à literatura, aos seus escritores e cultores: Almeida Garrett, Camilo Castelo-Branco, Júlio Dinis, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, José Régio, Vitorino Nemésio, Vergílio Ferreira, Miguel Torga, Paulo Quintela, José Rodrigues Miguéis, José Cardoso Pires, António Vilhena, Augusto Abelaira, David Mourão-Ferreira, António José Saraiva, Almeida Pavão, Manuel Alegre, Eduardo Lourenço, Óscar Lopes, João de Melo, António Lobo Antunes, Vasco Pereira da Costa, Carlos Reis, entre outros.
E está aqui a grande linha de força de A Tabuada do Tempo: a dimensão literária e humana. Basta ler o espantoso testemunho que nos é dado de Isabel, seropositiva, para percebermos isso mesmo.
Há “flashbacks” de episódios (digo, cenas) inesquecíveis e que nos remetem para a infância e adolescência do autor: a representação da comédia Inês de Castro (sendo que o narrador, enquanto menino, se apaixona pela actriz que desempenha o papel de Inês); as memórias do Liceu e as peripécias de dona Cesaltina; a educação sexual do narrador com uma “catequista e mestra da luxúria”; as incontornáveis e fascinantes personagens de dona Prudência e do Ti Zé Peidão… Mas atenção: não há aqui a gratuita aposta na descrição da peripécia – o que há é o aprofundamento do psicológico e do humano, que são no fundo os grandes valores da literatura.
Este é, por conseguinte, um livro sobre a usura e o devir do tempo. Um livro sedutor, evocativo, íntimo, intimista e musical (atravessado por música clássica) que constrói vidas inteiras.
Leiam, por favor, Cristóvão de Aguiar, porque ele ajuda a engrandecer a língua portuguesa.

Horta, 15 de Julho de 2007

Victor Rui Dores
Escritor/Professor

P.S. – Agora que temos um novo director a liderar os destinos da RTP/AÇORES, não seria de apostar numa nova série televisiva que incluísse a adaptação de obra(s) de Cristóvão de Aguiar? Recordo que o realizador José Medeiros colheu, na Raiz Comovida, abundante campo de referências para as celebradas séries televisivas “Xailes Negros” e “O Barco e o Sonho”, com os resultados de excelência que se conhecem.
Aqui fica (mais uma vez) o repto.


Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006