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sexta-feira, 25 de maio de 2012

Cristóvão e Francisco de Aguiar em Francês "Catarse"

 L’incipit de Catarse

L’ordinateur est déjà installé dans mon nouvel appartement. L’adresse électronique ne change pas. Le technicien à peine parti, j’ai entrepris tout de suite de voir mon courrier. Il y en avait. Comme l’on pouvait prévoir, le  premier message que j’ouvris était de toi… J’aime habiter dans mon nouvel appartement. À vrai dire j’ai tout en ordre, il me faut juste installer la chaîne stéréo. Je me sens fatigué, mais de bonne humeur. Je vais maintenant à la fête des finalistes de mon Lycée.

La lettre que je viens de lire m’a été agréable, car tu t’adaptes bien à ton nouveau petit coin, the corner of your own1. En même temps, cette lettre m’a donné l’occasion de me rappeler une foule de souvenirs, à moitié oubliés, mais latents, liés aux maisons et aux déménagements respectifs et à leurs complications […]. Ton changement de maison et de ville a dû être la meilleure et la plus sage décision que tu aies prise ces dernières années. Il devenait insupportable et déprimant d’habiter, durant quatre décennies environ, dans la même petite ville où tu as tant souffert, physiquement et psychologiquement ! […] La maison est notre miroir, ou, comme le dit un proverbe anglais : An Englishman’s home is his castle2 … Et ta nouvelle maison, située loin des souvenirs massacrants, non souillée par des amertumes ou des esprits, deviendra ton refuge… N’accroche pas aux murs les portraits des fantômes qui te tourmentent. Range tes affaires lentement, cette tâche est un calmant, mets tes livres à portée de la main et de l’esprit. Ils te tiendront une agréable compagnie, silencieusement (mieux encore), qui sait s’ils ne t’offriront pas une intimité affectueuse, précisément parce qu’ils sont naturellement aveugles, sourds et muets. Dans un resserrement plus aigu de solitude, tu sais qu’ils sont là à ta disposition et tu pourras, à tout moment, leur poser les questions les plus absurdes, ils ne se fâcheront pas ni ne bouderont si tes visites sont espacées.  Ils n’arrosent pas la fleur de la jalousie et écoutent encore moins les mauvaises langues. Grâce à leur nature et à leur rôle, ils sont tolérants et ne se plaignent jamais. Si quelque souvenir des plus vifs vient subitement frapper à ta porte, mets-le dehors et sors : marche, va à la piscine, évoque un souvenir agréable et demande-lui d’expulser le mauvais… Je suis sûr que ce changement de maison et de ville sera le commencement d’une nouvelle phase dans ta vie. Savoure-la en toute plénitude. Lorsque tu ouvriras la porte, n’oublie pas de nettoyer tes pieds, pour qu’aucune poussière obstinée de ta mémoire perturbée ne puisse y entrer. Difficile? Sans aucun doute! Mais l’impossible n’est pas, ni n’a jamais été, domicilié dans le royaume de la volonté. Tu dois te souvenir que tu m’as téléphoné la veille de ton déménagement. Tu t’en souviens sans doute.  Touchée par l’ombre ta voix ne m’a pas trompée. Cela m’a perturbé : j’ai pressenti une rechute de dernière heure… Je me suis contenu juste à temps, je ne pouvais pas te le révéler dans l’intonation de ma voix, qu’une inquiétude soudaine m’avait envahie […]. Chaque fois qu’ils déménageaient, certains membres de notre famille la plus proche étaient enclins à souffrir de graves troubles psychologiques. Tu te souviens de Maria Manuela, surnommée Mané, la fille de tante Maria da Ascensão ? Avant de partir en Amérique, elle a déménagé sept fois! Pour paraphraser le poète Manuel Alegre, on dirait qu’elle était à la recherche de la maison qui n’existe pas

J’ai eu de la chance de ne pas être entré dans un tel tourment héréditaire : seul le fantôme de la villa de l’Alto da Granja m’a poursuivi pendant quelque temps, surtout dans mes rêves et dans mes cauchemars. Au final, avec une demi-douzaine de sorties en haut, tôt le matin, pour faire du jogging, j’ai affronté le spectre qui me rongeait les viscères les plus nobles et, peu à peu, le spectre de la mémoire affective s’est éteint. Je fus exorcisé de l’apparition impertinente.

Avant cela, et alors que j’étais encore étudiant, j’ai changé de chambre et de rue au moins trois fois et cela ne m’a pas surpris. Ma maison sur l’île, qui donnait sur la mer et qui se trouvait en face d’une autre sœur jumelle, me servit d’ « ersatz », ou si tu préfères, de placébo. »

 (Cristóvão de Aguiar e Francisco de Aguiar, Catharsis. Dialogue épistolaire en forme de roman, Lápis de Memórias, avril 2011, pp.11-12-13-14).

Fonte:



Em colaboração com os Colóquios da Lusofonia EM 2012 os estudantes de Mestrado, coordenados pela incansável Rosário Girão (Universidade do Minho, Departamento de Estudos Românicos no seu Mestrado de Tradução e Comunicação Multilingue) estão a trabalhar traduções em Francês de vários excertos de autores açorianos contemporâneos (ou o princípio ou o fim de cada obra selecionada) pelo que aqui publicaremos essas traduções depois de enviadas para os autores apreciarem. Chrys Chrystello AICL
Étudiante : Virginia Henry Martins
28.3.12

sábado, 14 de maio de 2011

Catarse ou a escrita mano a mano de Cristóvão e de Francisco de Aguiar, por Victor Rui Dores

“A minha vida não tem idade: tem tempo”

Vitorino Nemésio, Eu Comovido a Oeste

As recordações dos verdes anos avivam-se à medida que vamos ficando mais vividos e menos jovens… A nossa existência é uma perpétua dialéctica: saudades do futuro e sauda¬des do passado

Catarse (Editora Lápis de Memórias, Coimbra, 2011) é um livro sobre a infância e a adolescência insulares enquanto busca de um tempo irremediavelmente perdido. Os autores, irmãos no sangue e nas emoções, protagonistas - narradores, revisitam, pela escrita, tempos, lugares, pessoas e memórias que povoam o seu imaginário. Vivendo em diferentes espaços geográficos, e através de um conjunto de cartas que vão tro-cando, recordam bons tempos que não foram tempos bons. “A vida, em S. Miguel era muito cainha” (pág. 20) porque esses eram os tempos de misérias várias e de repressões variadas de uma sociedade patriarcal – o salazarismo, o subdesenvolvimento, a hipocrisia social, a pobreza, a intolerância, a emigração, a guerra colonial…

A luta contra o esquecimento é a razão primeira da literatura em qualquer uma das suas formas e géneros, sendo que, no caso do livro em apreço, estamos perante um “diálogo epistolar em forma de romance”. Eis uma escrita de inquérito ao subconsciente, através da qual os autores, em diferentes registos e de forma sincera e sentida, travam intensos diálogos e partilham memórias surpreendentes.

Santa Luzia é o microcosmo de referência desta obra, constituindo-se como espaço onde pulsa todo o universo e toda a geografia sentimental e afectiva da ilha de São Miguel, de onde a acção parte viajando para outros lugares: Santa Maria, Terceira, Madeira, Lisboa, Coimbra, Guiné, Américas, Faial, Pico…

Por conseguinte, este livro dá conta de impressões do vivido e do sentido, isto é, das sensações e dos sentimentos que ficaram enraizados nas memórias dos autores. Essas memórias ora são muito positivas (a recordação das figuras tutelares da Mãe, dos Avós e outros familiares, amigos e conhecidos que surgem do fundo dos tempos como uma aparição de ternura no meio das ruínas da vida), ora são terrivelmente negativas (por exemplo, a memória magoada das tiranias do Pai, os ritos e os rituais da iniciação sexual que, nesse tempo de obscurantismo, descambavam invariavelmente para actos de pedofilia, violação e muitas outras formas de violência).

As deambulações dos narradores são fascinantes e lemos este livro como se de um romance se tratasse. Dando conta dos seus “eus” angustiados na sua relação conflituosa com a vida e com os outros, Cristóvão e Francisco, através de viagens interiores e narrativas justapostas, lançam olhares sobre o tempo do fascínio e do sortilégio (porque iniciático) do despertar para a vida, para os amores, para o mundo e para o conhecimento das coisas. E narram reminiscências e histórias das suas vidas com os outros. A prosa de um é sentida na pessoa do outro. E, pela escrita, fazem uma verdadeira catarse. Escreve Francisco, na página 304:

“Desculpa ter estado a escarafunchar coisas do passado, mas estou a passar por uma fase de despejar tudo aquilo que devia ter despejado na altura certa”.

Escreve Cristóvão:

“E que são estas cartas senão um exercício de psicanálise? Desde ontem já recebi três textos teus, qual deles o mais espirituoso! Vou, nas minhas respostas, procurar dar-lhes mais pormenores que os complementarão. Devido à diferença de idade entre nós, e ainda que tenhamos uma grande fatia de passado em comum, possuímos experiências desiguais e diversas histórias para contar, mas as personagens são praticamente as mesmas que conheci nos primeiros vinte anos que permaneci na ilha, só as mais novas me escapam.” (pág. 236)

As memórias sucedem-se com um ritmo perfeito e a descrição das pessoas evocadas – tanto a física como a psicológica – é um primor de minúcia. Desfila um universo de venturas malogradas perante nós. Vivências comuns confluem de página em página para nos recriarem um tempo (praticamente todo o século XX) que nos parece já tão distante mas que a geração dos autores não esquece nem desvaloriza como não glorifica em falsas nostalgias.

Esse foi um tempo de “brandos costumes”, de muitas inquietações e poucas alegrias, de muitas dúvidas e poucas certezas, um tempo marcado por sonhos e desejos, paixões e temores, partidas e chegadas, separações e reencontros.

Mas atenção: estes olhares retroactivos não visam um mero exorcismo da saudade. Os autores respondem a uma verdadeira “prise de conscience”. Por isso, estas páginas são, acima de tudo, lugar de confronto, de denúncia (dos mecanismos dos poderes políticos e religiosos) e de renúncia às máscaras de um quotidiano alienante, até porque os autores foram vítimas desse estado de coisas e sofreram na pele as consequências desse tempo português fascizante.

Catarse constitui uma narrativa coesa e consistente, perfeitamente equilibrada e apoiada em dois eixos narrativos: coloquialidade, prosa enxuta e leveza de estilo por parte de Francisco de Aguiar (texto em itálico). Virtuosismo verbal e manejo robusto da linguagem por parte de Cristóvão de Aguiar (de antologia são as páginas 313 e 314: “Os meus mortos…”). Francisco era até agora escritor adiado. Cristóvão é o autor consagrado da Raiz Comovida, ficcionista de méritos reconhecidos. O primeiro é o comparsa municiador de memórias; o segundo é o criador – arquitecto da narrativa. Ambos se complementam e, numa escrita que mistura memória, diário e discurso literário, falam do problema do destino do homem e do sentido da vida. Em páginas humaníssimas que em nós causam uma imediata adesão afectiva.


Victor Rui Dores

domingo, 21 de junho de 2009

"Relação de Bordo", Bristol, Rhode Island, 1973. My pre elementary school lunch box, chosen by me.

Coimbra, 13 de Janeiro de 1973.





















"Às 14h40m levantou voo o avião que levou o meu filho Zé para a América. Para ele, viajar para o outro lado do mar ou para casa do vizinho, não existe qualquer diferença. Quando, às 13h10m, os altifalantes chamaram os passageiros para bordo, senti qualquer coisa a despedaçar-se dentro de mim e não consegui reter as lágrimas. Ele, impávido, correu de mão dada com o tio Francisco para a porta de embarque e acenava com a outra mãozita, firme, como que aconselhando-me calma e coragem. Durante a viagem de Coimbra para Lisboa, falou pouco, mas, de vez em quando, saía-se com uma das suas. De uma vez disparou, a experimentar como iam os ânimos: Se não quiser ir, o que é que acontece?. Tomava pulso à possível reacção dos pais e salvaguardava a sua hipotética desistência à hora da partida. Esperei que o avião descolasse. Uma hora mais tarde, fez-se à pista e, pouco depois, ergueu-se no ar. Já no alto, sempre a subir, tive a impressão de que uma parte de mim se havia desprendido do meu corpo e corria, louca, pelo céu fora, em cata de qualquer coisa de mais puro, mais livre, menos cinzento do que este bloco de nuvens que se vem aproximando com cara chapada de chuva e de tristeza."

Cristóvão de Aguiar, in Relação de Bordo 1964-1988.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Expresso das Nove entrevista Cristóvão de Aguiar, 24-02-2006, por Tibério Cabral.

"Liberdade de expressão não pode ser posta em causa"
Foi recentemente homenageado pelos seus 40 anos de vida literária. Portugal está a perder o mau hábito de se lembrar apenas dos mortos?
Uma andorinha não faz a Primavera, mas é, sem dúvida, um começo. Se, por um lado, é reconfortante ser homenageado em vida, como foi o caso pela passagem dos 40 anos da minha vida literária, e sobretudo por partir da iniciativa de uma instituição como a Universidade de Coimbra; por outro, abriu-se-me no íntimo uma clareira de angústia existencial que me tem perturbado o seu tanto. Fiquei com a sensação de que fui invadido por um deserto que me aguçou a consciência dos limites cada vez mais acanhados do tempo e ainda não consegui obter resposta à pergunta insistente que se me põe amiúde: "E agora?". Tudo tem o seu reverso e uma homenagem em vida não foge à excepção.
O facto de a sua obra estar a ser estudada em várias universidades é a prova da qualidade da sua escrita?
A qualidade e a profundidade de uma obra não se medem apenas pela razão de ser objecto de estudo ou análise literária numa qualquer universidade. Com os autores contemporâneos até pode ser uma questão de moda ou mesmo de compadrio. E poderá mesmo produzir efeito contrário, como sucedeu a muitas gerações com "Os Lusíadas" e outras obras clássicas da nossa Literatura. Em Espanha aconteceu o mesmo com o D. Quixote de La Mancha, obra imortal que já perfez quatro séculos de existência... Mas sempre lhe quero dizer que é saboroso saber que se é estudado numa universidade. Quando tomei conhecimento, por mero acaso, e através da Internet, de que os meus contos estavam a ser objecto de uma tese de mestrado no Departamento de Estudos Portugueses da Universidade de Aveiro, senti-me estupefacto e ao mesmo tempo inundado de uma grande alegria interior...
O acto da escrita é para si um acto de prazer ou é também um processo doloroso, angustiante?
Tenho-me debruçado com frequência, sobretudo na "Relação de Bordo", sobre o acto da escrita. Uma vez escrevi: "Escrever é abrir o fleimão com a lanceta bem afiada. Fica-se mais leve e pronto a fazer peito à próxima onda."
A leveza que se sente, porém, é breve e o prazer na mesma. Estou a falar de mim. Pode haver, e há decerto, escritores que sentem mais intensamente o prazer da escrita, ou o gozo de escrever, se é que ele existe de facto. No meu caso é tão fugaz que se não compara com a angústia de perfurar o poço de onde retiro a matéria, por vezes ígnea, com que vou lavourando as palavras. Escrevo com o fito de exorcizar a caterva de fantasmas que me persegue. Mas, quanto mais escrevo, tanto mais tenho para exorcizar.
Porque está constantemente a reescrever os seus romances? Assume-se como perfeccionista?
É uma questão de temperamento que me escapa a qualquer explicação racional. Há quem diga que se trata de narcisismo ou de perfeccionismo. Poderá ser! Sinto-me bem a reescrever um livro. É como se o escrevesse pela primeira vez. E nesta matéria, ressalvando as devidas distâncias, estou muito bem acompanhado: Miguel Torga, Eça de Queirós, Carlos de Oliveira... Se podar, nas páginas de um livro, galhos secos, e mondar uma ou outra erva daninha é ser perfeccionista, então dou com muito gosto a mão à palmatória...
"Raiz Comovida" é a sua obra emblemática? Neste romance vai fundo na linguagem popular. Foi uma forma de captar ou perder leitores?
Apesar de ser considerada uma obra emblemática da literatura de significação açoriana, não é a minha preferida. Cada escritor ama um determinado livro que escreveu acima dos outros, o que não significa que ele tenha razão. Para mim, e talvez pelo facto de ele ter apanhado uma grande tareia de um crítico açoriano, o meu livro preferido é o "Passageiro em Trânsito". Cada página desse livro foi parida com muita dor, pois trata-se de um ajuste de contas comigo mesmo e com a Ilha ou o fantasma dela em mim alojado. Mas, e voltando à "Raiz Comovida", ela não me fez perder leitores. Antes pelo contrário. No Continente, a obra foi bem aceite, sobretudo na província, porque o léxico lá empregado é português de lei, dos séculos XV e XVI, tal como Aquilino nas "Terras do Demo", cujo vocabulário é também, e em parte, comum ao nosso. Caiu em desuso nas grandes metrópoles, mas continuou a usar-se nas zonas mais insuladas, que funcionaram, por assim dizer, como frigoríficos que conservaram durante muito mais tempo o léxico arcaico. Se quisermos ouvir falar como se falava nas Ilhas há quarenta ou cinquenta anos, o melhor é dar um salto à América, onde os nossos emigrantes utilizam ainda muitos vocábulos que nas Ilhas, e mercê dos "media" e de um isolamento mais mitigado, já caíram em desuso.
João Gaspar Simões saudou muito bem o livro "Raiz Comovida", fazendo mesmo um paralelismo com Aquilino Ribeiro. O que sentiu?
João Gaspar Simões foi durante cerca de meio século o papa da crítica em Portugal. Instituiu a crítica semanal, primeiro no Diário de Lisboa e por fim no Diário de Notícias. Acertou muitas vezes nos seus juízos de valor, mas também errou bastante. Quanto ao meu caso, de facto saudou o primeiro volume de "Raiz Comovida", mas foi adiantando que o tipo de regionalismo utilizado não tinha futuro, à semelhança de Aquilino das Terras do Demo e de Vitorino Nemésio dos contos de Paço do Milhafre. Para Gaspar Simões, o universal media-se pela tradutibilidade da obra. Creio que será um critério muito estreito. Há obras intra- duzíveis que são universais. Já Miguel Torga escreveu que "o universal é o local sem paredes" e Aquilino considerava mais ou menos isto: "quanto mais local for uma obra, tanto mais universal é ela". Apesar de todas as reticências de JGS, considerou "Raiz Comovida" como "um colar de pérolas a que lhe falta o fio", querendo com isto significar que se não tratava de um romance, como eu inadvertidamente o subintitulei, mas de um embrechado de histórias que se encadeiam umas nas outras por meio de uma palavra puxa palavra da linguagem popular.
"Passageiro em Trânsito" é também uma crítica à nossa diáspora?
Considerar que "Passageiro em Trânsito" é apenas uma crítica contundente à nossa comunidade emigrante luso-americana, por quem tenho muito respeito, até porque sou filho, neto e sobrinho de muitos emigrantes, é reduzir o livro a uma dimensão mesquinha. Foi isto que entendeu o tal crítico açoriano, na altura radicado na América, mas dá-me a ideia de que não percebeu patavina do que leu. De facto, existe crítica a uma certa mentalidade própria de determinado emigrante bazofeiro, mas daí a afirmar-se que ofendi a condição do emigrante não é justo. O livro é, sim, um ajuste de contas ou, se preferir, um frente-a-frente comigo mesmo e a Ilha, assim em maiúscula, por ser uma entidade mítica que contém todos os afectos e desafectos, amores e desamores de um ilhéu desilhado que eu sou. É este o destino dessa raça de gente: se volta não se adapta, mas também não se adapta totalmente no húmus para onde foi transplantado. Ficou com as raízes aluídas num chão pouco firme...
Conviveu com Paulo Quintela e com Miguel Torga. Tem saudades dos seus tempos de Coimbra?
Quem haverá por aí que não tenha saudades dos seus 20 anos? No entanto, não sou muito dado à saudade lamecha e coimbrinha que, por vezes, cons- titui doença crónica de milhares de bacharéis que se formaram na Lusa Atenas e enxameiam os quatro cantos do País, tentando, debalde, aprisionar o tempo. Vivi numa república de açorianos, os Corsários das Ilhas, e durante o tempo em que lá permaneci tive muitos momentos de alegria, ensombrada sempre pelo fantasma da guerra colonial, que rebentou poucos meses depois de ter chegado como caloiro a Coimbra. Vinha da Ilha como um bicho-de-conta, metido consigo, pensando que sabia alguma coisa, mas não. Nesse longínquo ano de 1960, a lonjura entre o Continente e as ilhas era realmente um grande obstáculo. Hoje, feliz ou infelizmente, já não. Os estudantes andam numa roda-viva ilha vai, ilha vem, com o maior dos à-vontades. Nesse tempo, a perspectiva era de pelo menos um ano a remoer saudades da Ilha e do que lá tinha ficado à nossa espera. Ter saudades seria, para mim, uma força de expressão, porque adoptei Coimbra como minha segunda pátria. De facto, tive o privilégio de conviver intimamente com Paulo Quintela, meu Mestre de Germanística e de muitos outros saberes aprendidos à mesa da tertúlia. De resto, saiu agora um livrinho, em edição refundida e aumen-tada, de minha autoria, publicado pela Imprensa da Universidade de Coimbra, que celebra o primeiro centenário do seu nascimento, ocorrido no passado mês de Dezembro, a que dei o título de "Com Paulo Quintela à Mesa da Tertúlia". Também convivi episodicamente com o poeta Miguel Torga.

"Culturas ocidental e islâmica estão a desmoronar-se"

Fale-nos da sua experiência no teatro de guerra na Guiné e da sua transposição para a escrita. Ainda hoje é importunado pelos fantasmas da guerra colonial?
Está ainda muito presente. Há milhares de ex-combatentes a sofrer sequelas da guerra colonial. Embora já haja uma mão cheia de grandes livros sobre a guerra colonial. Basta atentar nos exemplos de Manuel Alegre, Álamo Oliveira, João de Melo e Lobo Antunes, entre outros. A minha experiência de guerra deu-me também, 18 anos depois do regresso, um livro. "No Princípio" constituía uma das três partes de "Ciclone de Setembro". Mais tarde, em 1990, desenvolvi-o e autonomizei-o em livro que titulei de "O Braço Tatuado". Foi muito bem recebido pela crítica, mas foi pouco divulgado, uma vez que a editora que o deu a lume abriu falência pouco tempo depois. Será este livro um dos meus próximos trabalhos de reescrita.
A propósito dos cartoons sobre Maomé, como conciliar liberdade de imprensa e de expressão e respeito pelas crenças religiosas?
O que se passou com a reacção muçulmana aos cartoons de Maomé não se pode admitir, nem sequer pôr em causa a liberdade de expressão. Nem ninguém tem de pedir desculpas. Muito menos Portugal, numa declaração infeliz de Freitas do Amaral. Os primeiros cartoons foram publicados em Setembro por um jornal dinamarquês. Foi para tribunal, que não deu seguimento ao processo. Só agora a barbárie entrou a matar. Não quero com isto dizer que concordo com os cartoons. Nem com o preservativo no nariz do Papa João Paulo II, em cartoon publicado há anos pelo Expresso. O que penso é que há outras maneiras de reagir àquilo com que se não concorda sem ser com violência desabrida. Mas, repito, a liberdade de expressão não pode de modo nenhum ser posta em causa. São culturas diferentes, sempre o foram, e ambas estão a desmoronar-se: a ocidental e a outra. Enquanto não houver tolerância de parte a parte, nada feito. Recentemente, por ocasião do doutoramento Honoris causa de um líder espiritual muçulmano, na Universidade de Évora, o imã frisou bem este ponto e a pluralidade de opiniões.

Tibério Cabral

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Bristol Rhode Island. O Senhor Mestre Artur, Pai de Cristóvão de Aguiar, num cemitério de Bristol R. I.


UM "ATÉ LOGO" COALHADO DE ETERNIDADE

Bristol Rhode Island, 26 de Janeiro de 1992.
De novo aqui me encontro, meu Pai, cada vez mais acolhido ao calor que a tua forja foi em mim demorando e estanciando. Nenhum frio de neve semelhante a este, que sopra de um quadrante de outro mundo, ou mesmo mais intenso, estaria apto a fazê-lo esmorecer e amuar em morno e tranquilo rescaldo. Disseste até logo e presto voltaste atrás, como quem se esquece da boina, e acrescentaste: “Se Deus quiser, Conceição”... Estarias porventura pressagiando fumo de tragédia ou cheiro dela erguendo-se do ventre da manhã de horas minúsculas, irrevogáveis, integralmente nuas e tuas, abastecidas daquela solidão que precede a planura da ausência? E Ele, meu Pai, não quis. Tu, que havia pouco, a Ele te encomendaras em íntimo e recolhido diálogo contigo, como o fazias todas as manhãs para aquecê-las e oleá-las de princípio! Não quis. Bem gostava eu agora de deslindar tão misteriosos desígnios. Aqui, a teus pés, no teu leito de terra, suavemente reclinado para o Sol-poente, coberto de um lençol de relva, ainda crestada destes frios desalmados da Nova Inglaterra. Não consigo. Sempre pediste a tua morte assim subitânea, um aniquilamento à tua altura... E ela foi-te concedida. E assim abalaste da vida que te magoou desde a madrugada dos anos até ao crepúsculo. Zarpaste sem incomodar ninguém. Sem tocares com tuas mãos sábias no fantasma sempre tão contigo de poderes um dia vir a ser despejado na lixeira humana de uma qualquer instituição eufeministicamente denominada lar de terceira idade... Não lhe tocaste. Mas constituiu a tua sombra nos últimos anos que viveste no sobressalto dessa suposição. Não consigo deslindar, Pai. São tão misteriosos os desígnios! E por que disseste até logo e ainda não regressaste desse poente para onde te sumiste, vou continuar esperando dentro em mim, aqui sentado nesta banqueta de pedra despolida que a vida me arrumou. Foste sempre um homem de palavra. Às vezes mais rija que o aço da ferramenta que temperavas. Outras, terna como criança embebida a fabricar seu próprio brinquedo. E tu construíste tanto, meu Pai. Desde a manhã dos tenros anos até ao alpardusco da existência! Homem de palavra. Não posso, nem razões me assistem para pôr em dúvida a tua derradeira frase "até logo". E vieste atrás e ajuntaste "se Deus quiser". Ainda conservo, por isso, o fio da lamparina aceso. Um pavio entrançado de muitos fios de esperança. a que nunca soube morrer. Sei de um saber que não se pode explicar, mas de fonte segura - a que jorra do coração-, sei que, onde quer que estejas, Pai, ou a vir do nascente ou enfronhado no ocaso, tenho a certeza que me vais ler, ou me estás já escutando enquanto, ajeito estas palavras numa bigorna, quem sabe se uma extensão da tua, todavia menos concreta, mas igualmente suada, que isto de querer ser serralheiro da palavra, como foste do ferro e do aço, não é ofício a que qualquer um se possa alcandorar, pelo menos com a perfeição que atingiste no teu. Empresta-me as tuas mãos, Pai, e tudo se tornará mais claro deste lado da vida em que me encontro. Faz hoje exactamente um ano. Saíste de casa. Até logo. E vieste atrás para emendar a secura da frase. Se Deus quiser. Não quis. Como o tempo corre sem freio, esse cavalo sem tino e de tiro puxando o arado que nos vai lavrando a leira dos sonhos com relhas de alguma ilusão, necessária. Diferente daquelas que forjaste para charruas verdadeiras de desventrar a terra, desvendando-lhe os segredos e a intimidade. Já não sentes o tempo, Pai! Despiste-te do casacão do tempo, que, por vezes, incomoda. Estás agora nu dentro de outras horas que não pesam e são leves como a eternidade. E aqui estou, meu Pai, ainda vestido do meu corpo e do tempo que o vai arruinando. No Verão passado, plantei-te flores exactamente por cima da tua cabeça. E elas medraram e floriram. Olho o céu e vejo garças. Não sei se as mesmas que te acompanharam há um ano à tua mansão ungida de silêncio e de paz. As garças não te esqueceram. Ias todos os dias alimentá-las ao Colt State Park. Conheciam-te já. Não são ingratas como certos filhos dos homens. Não te esqueceram. E acompanharam-te. Emitiram seus pios de pesar.
Trago-te este braçado de lágrimas para regar a lembrança que de ti guardo.
Até sempre, Pai!

Cristóvão de Aguiar

("O Serralheiro da Escrita", in Relação de Bordo II, Campo das Letras, 2000, pp. 188, 189 e 190, et in Emigração e Outros Temas Ilhéus, in fine. Óleo sobre tela, por Bárbara Borges)

Segundo o Prof. Doutor José Carlos Seabra Pereira, professor de Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, este é um dos melhores textos da Literatura Portuguesa sobre o Pai.

A eterna saudade do Seu neto José Manuel.

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006