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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Acerca de Trasfega, por Joaquim Jorge de Carvalho no blogue Muito Mar

A MP levou para a Madeira, a recomendação minha, um livro de contos intitulado Trasfega (Lisboa, Ed. Dom Quixote, 2003), de Cristóvão de Aguiar. No regresso, quis discutir comigo alguns aspectos de algumas das narrativas e eu, por dever de exegese, obriguei-me a reler a obra.
Cristóvão de Aguiar é um escritor açoriano que mereceria, da parte de críticos e das instituições académicas, um reconhecimento maior. A pátria parece preferir, à literatura, derivados industriais sousa tavares, rebelo pintos, dos santos, etc.
Conheci pessoalmente este exímio cultor da palavra literária, no âmbito de um Prémio Literário em que fiz parte do Júri, e pude até, numa das reuniões de trabalho, beneficiar de uma sua generosa oferta – queijinho dos Açores, com o pão e vinho que se pôde arranjar. Aproveitei a ocasião para lhe solicitar, em dois dos seus livros, a graça de autógrafos; ele acedeu e acrescentou-lhes simpáticas dedicatórias.
A sua maior obra é, sem dúvida, Raiz Comovida, canto ilhéu & universal que me parece superior ao canónico Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio, ou ao celebrado Gente Feliz com Lágrimas, de João de Melo. [Parênteses: a expressão “Raiz Comovida” é um achado; não deve haver melhor designação para isto que se passa com quem faz da linguagem um tributo permanente ao chão de onde vem.]
Trasfega é – humanamente e literariamente - uma brisa de beleza, singeleza e engenho. À boleia de histórias muito simples e, apesar disso, sempre surpreendentes, cruzamo-nos com o pensamento, as emoções e os modos de falar da gente do povo (sobretudo, da gente das ilhas). No meu (pessoalíssimo) Plano Nacional de Leitura, eis um livrinho para recomendar muito vivamente.
Reli-o na praia da Tocha, num cantinho atlântico muito limpo e sereno que pede meças a qualquer estância turística do nosso país.
Bem a propósito, a páginas tantas, Cristóvão de Aguiar cita o intemporal Torga:
“O destino destina, mas o resto é connosco.”
Num tempo cheio deste negrume ominoso que a crise e respectiva retórica trouxeram aos nossos dias, vale a pena o aconchego torgaguiariano, não achais?
O destino é o destino, pois sim. Mas enquanto há vida, é connosco.

Coimbra, 30 de Agosto de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

domingo, 13 de janeiro de 2008

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Victor Rui Dores, sobre Trasfega, de Cristóvão de Aguiar

Cristóvão de Aguiar
Trasfega, Publicações Dom Quixote, 2003

Com olhar atento e mão certeira, continua Cristóvão de Aguiar a carregar a ilha perdida e mitificada e a escrever a sua (e nossa) memória insular. E fá-lo com mestria narrativa, imaginação verbal e ousadia sintáctica, num discurso literário que mergulha fundo na raiz (comovida) e no húmus da oralidade açoriana. É disso exemplo este livro, que recebeu o Prémio Literário Miguel Torga/Cidade de Coimbra.

A obra, que inclui treze contos, inscreve-se e escreve-se no âmbito da literatura de significação açoriana. Ainda e sempre, há um imaginário ilhéu, há uma memória telúrica e há uma capacidade evocativa que escreve Cristóvão de Aguiar. Essa memória é o atlas do escritor que, nos seus livros, continua a dar conta da sua identificação com a ilha e consigo próprio. Porque a ilha deixa uma memória indelével e retroactiva: nela está o paraíso irremediavelmente perdido da infância e da adolescência. Daí a revisitação que o narrador empreende a toda a geografia sentimental, afectiva e humana à terra que lhe deu berço: a ilha de S. Miguel. Falar deste autor é falar da regionalização de uma escrita vernácula e de uma efabulação literária autêntica. Cristóvão de Aguiar escreve o homem açoriano, descreve a paisagem açoriana, exorciza a memória e capta o «espírito do lugar» porque aprendeu – e bem – a lição de Miguel Torga: «o universal é o local sem paredes». Ou seja, quanto mais regional, mais universal.

Trasfega continua a saga da trilogia romanesca Raiz Comovida (o livro mais emblemático de Cristóvão de Aguiar, agora em nova versão revista e remodelada, numa belíssima edição da Dom Quixote, saída em 2003) e vem acrescentar, à galeria imensa de personagens populares deste autor, um José Maiato (que recebeu uma Língua de Fogo que o pôs a falar inglês, sem ele saber como), um Mestre Libório (dado a estranhíssimas flatulências...), uma Tia Escolástica das Dores (soberba beata), um Ti Burrica (velhote castiço de grande recorte humano), entre outras.

Mas este livro não dá só conta de gente rural, de inocências rústicas e de acontecimentos pícaros. Há aqui dois registos, dois investimentos semânticos: o popular e o literário. Vejamos estes exemplos: «[...]a Ti Mariana das Quintas, mulher de gadanho rijo e de pêlo na venta [...]» (p. 50);

«Caminhava ligeiro galopando em seu dorso nu. Das calhas do silêncio, alucinado de sirenes, escorria um bafor de incêndio [...]» (p. 96)

O narrador age e reage: comenta, analisa, denuncia, renuncia, questiona o real, empreende viagens interiores. Narrativas há em que ele se confronta com as suas próprias memórias e vivências, havendo a salientar o conto «Trasfega» em que uma voz narrativa se intromete para fazer uma espécie de inquérito ao subconsciente. Esta mesma situação verifica-se no conto «Domingo», o que empresta a esta obra marcas de diferença e de originalidade.

A religiosidade açoriana é, por outro lado, muitíssimo bem agarrada (e ironizada) nos contos «Judas Iscariotes» e «O Sonho». Neste último, há um soberbo retrato de padrice e beatice e há a história de um seminarista (nunca a iniciação sexual foi tão longe na literatura açoriana) de ressonâncias queirozianas, que bem mereciam um filme. Custódio (na pele de um outro padre Amaro) e Tia Escolástica (no papel de uma outra Santa Joaneira) passarão, a partir de agora, a emparceirar com as grandes personagens da melhor literatura portuguesa de sempre. E a merecer, por isso mesmo, a melhor atenção do realizador José Medeiros, que, à referida trilogia romanesca, foi colher abundante campo de referências para as celebradas séries televisivas «Xailes Negros» e «O Barco e o Sonho [...]».

Há um outro tema que é recorrente na larga folha de serviços literários de Cristóvão de Aguiar: a Guerra Colonial, ferida que ainda não cicatrizou na sua memória, pois que, durante dois anos, conheceu uma experiência traumatizante na Guiné. Há ecos e memórias que ressoam no belíssimo conto «A Noite e a Sombra», que, de forma onírica e fantástica, dá conta do absurdo desse estúpido e inútil conflito armado. Recorde-se que este romancista é autor de uma das melhores ficções sobre a referida guerra: O Braço Tatuado (Signo, 1990).

Trasfega remete-nos para um tempo fascizante e salazarento em que os poderes absolutos (o governativo, o clerical e o militar) corrompiam absolutamente. O cerco apertava-se e, mesmo no microcosmo pacato da ilha, as personagens defrontam-se e confrontam-se com os poderes instituídos e com os mecanismos aleatórios e repressivos do Estado Novo. O regedor, o padre e o professor primário simbolizavam (e exerciam) o poder e policiavam os bons costumes...

Apreciei ainda, neste livro, o enfocamento visual na maneira de contar. Atente-se neste exemplo:

«Sentada no vão da janela, Maria do Carmo fixa os olhos num ponto imaginário, deixa os lábios esboçarem um sorriso de incerteza e pergunta para dentro de si mesma se Custódio era de facto sincero. Duas lágrimas quentes e teimosas deslizam como dois ribeirinhos pelas faces abaixo e vão alojar-se-lhe na boca encarnada. São salgadas. Como o sal que o padre António lhe colocara na boca no dia do seu baptizado, havia mais de vinte e cinco anos...».

Estão aqui as técnicas cinematográficas do raccord e do flash back: as lágrimas salgadas de Maria do Carmo (presente, a cores) e o sal que lhe foi colocado na boca no dia do seu baptizado (passado, em sépia). É de uma grande eficácia o traçado substantivo da escrita e é deveras excelente a visualidade dos diálogos (cf. «O Sonho»).

Trasfega será porventura a obra mais cinematográfica de Cristóvão de Aguiar, mesmo sendo um livro de passagem. Se bem que, para mim, Um Grito em Chamas (Salamandra, 1995) continue a ser o seu melhor livro, aceite o sábio princípio que diz que o melhor livro de um escritor é sempre aquele que ainda não foi escrito...

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

TRASFEGA - Fundamentação da atribuição do Prémio Literário Miguel Torga/Cidade de Coimbra, 2002.

Estamos convictos, após a leitura destes doze contos, de que Francisco Carreiro [pseudónimo com que Cristóvão de Aguiar concorreu ao Prémio Literário Miguel Torga/Cidade de Coimbra] faz parte daquela cada vez mais rara estirpe dos genuínos contadores de histórias. De que, vista a sua extraordinária capacidade de efabulação, estas histórias podiam ser apenas o início de muitos outros volumes arquitectados pela mesma imaginação prodigiosa e, ainda, de que cada um dos personagens que as povoam leva em si o germe de muitos outros possíveis relatos que podem um dia vir a ser escritas por ele.
No livro fica gravada uma reflexão pessoal sobre o que é ser homem no Portugal contemporâneo, dentro de uma filosofia humanista em que o autor, o narrador, as personagens, e a ambiência formam um núcleo indissociável da problemática da condição humana, com a crítica ao belicismo, à exploração do homem pelo homem, à sua emigração, à falsidade dos códigos morais imperantes. O seu posicionamento leva-o a constituir-se em testemunha desconfortavelmente invulgar da História contemporânea portuguesa. E é nesta reflexão que se instaura a temática, a começar por “Trasfega”, a história inicial, em que o autor, em permanente diálogo com o espírito da terra açoriana, com essa Ilha que faz parte dele, desce, numa viagem vertiginosa, às funduras da sua condição de homem-escritor sem renunciar a ser ele próprio, mesmo quando se descobre como um nó-cego de contradições. Aspecto igualmente a destacar é a denúncia da alienação do povo na época do Estado Novo, inserida no dramatismo arrepiante da história de “Liberto”, que encerra o volume, e na condenação da guerra colonial nas imagens delirantes, fortemente impressivas, que envolvem o surrealismo do pesadelo do ex-combatente na guerra da Guiné, em “A noite e a sombra”. O estilo, que transmite a fluência do discurso oral, percorre todos os registos conotativos da linguagem: a malícia mordaz em que assenta o diálogo amoroso e que envolve a sua crítica ao tradicional estatuto do sacerdócio; a ironia de raiz popular impressa no desfecho de “A Prenda”, contrapartida irreverente do milagre das bodas de Cana; a intensidade lírica que envolve a ligação do narrador à terra, aos homens, ao sentimento. Foi a valorização dos elementos referidos que nos levaram a dar o nosso voto a Trasfega.

Eloísa Alvarez - in "homenagem a Cristóvão de Aguiar 40 anos de vida literária.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

TRASFEGA (CASOS E CONTOS) Prémio Literário Miguel Torga 2002

Um prémio a condizer com a obra premiada


Sottomayor
In A Capital
23 de Julho de 2003








(…)O paralelo pode parecer despropositado e, no entanto, Torga paira por sobre a obra do escritor açoriano. Claro que sabemos que os abalos telúricos não são fenómenos habituais em Trás-os-Montes nem os vulcões foram exactamente o substrato do Marão. Mas o apego à terra, a lonjura (ditada num lado pela insularidade e noutro pela interioridade), a cultura própria, as figuras que perpassam, uma espécie de honradez colectiva, a crueldade de uma troça em que o mesmo povo bom é também mestre, são os mesmos.

As narrativas de Trasfega são, pois, antes de mais um testemunho de portugalidade. São vividas em São Miguel ou na Terceira como o seriam, sem esforço aparente, em Trás-os-Montes ou nalguns pontos do Alentejo. O espírito profundo de um povo, nos seus arroubos de gigante corajoso e nas suas cobardias de medroso mesquinho, captado magistralmente pelo Torga dos Contos da Montanha ou mesmo, servindo-se da fábula, dos Bichos, permanece vivo neste volumezinho de casos de contos, passado quase todo em terras do meio do mar, como que a mostrar à evidência a raiz comum. Em vez da Maria Lionça, do Lopo ou do Leproso das Fragas do Marão, temos aqui, noutras longitudes, retratos como o de José Maiato, o “Língua de Fogo”, ou de Mestre Libório e da sua ciência espertalhona que consistia em dizer à mulher o contrário do que pretendia, para assim obter o desejado.

Claro que “espírito” é uma coisa e “estilo” é bem outra. Cristóvão de Aguiar tem o seu, bem próprio e usa um português de lei, que, se o termo não deu azo a interpretações malévolas e despropositadas – diríamos “à antiga”, quando os sujeitos, os predicados e os complementos viviam em estranha harmonia e formavam frases com sentido, sonoridade e até musicalidade quando fosse necessária...

Mais qualidades não serão necessárias, de momento, para demonstrar a afinidade entre o poeta que serviu de “padrinho” ao prémio e o “afilhado” que lhe fez jus. Ficou aberto o apetite para ler melhor a obra publicada por Cristóvão de Aguiar e esperar com interesse pelos novos trabalhos.

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006