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sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Eduardo Brum conversa com Cristóvão de Aguiar no Mundo Açoriano

Conversa
Os ilhéus são um
bocado bazofeiros
talvez por viverem
rodeados de mar
O escritor picopedrense conversa com Eduardo Brum sobre a sua obra, os Açores, Coimbra, a ilha do Pico, S. Miguel, o liceu de Ponta Delgada, as humilhações da infância e da adolescência...


A tua obra “Raiz Comovida” não gerou consenso quando foi inicialmente publicada…
Para além da surpresa de ter utilizado, como escrita literária, o léxico da Ilha, houve quem se entretivesse a discutir, teoricamente, se o livro caía no domínio do romance ou não. A chamada discussão sobre o sexo dos anjos… Havia dúvidas quanto à classificação clássica, que distingue entre romance, novela e conto. Gaspar Simões, o crítico mais semanal da imprensa portuguesa, escreveu que se tratava de um colar de pérolas ao qual faltava o fio! (Risos). Foi um grande elogio, sobretudo porque, além de vir de quem vinha, o crítico debruçava-se sobre outros dois escritores micaelenses, Dinis da Luz e Manuel Ferreira, e a apreciação sobre ambos não era muito favorável. A partir daí gerou-se a dúvida. E eu passei a fintar os críticos: romance ou o que lhe queiram chamar… novela em espiral… conto a que se acrescenta um ponto, etc.

Incomodavam-te as classificações?
As classificações não me incomodavam, porque já se não usam, foi chão que já deu muitas uvas. Já reparaste quão estúpido e difícil se torna distinguir entre conto e novela? Pelo número de páginas? Nunca soube nem curo de saber. No que me diz respeito, essa classificação ou destrinça que o crítico achava por bem fazer ocupava muito espaço antes de entrar no livro propriamente dito…

Quando olhas para trás, hoje, fazes um “balanço” da tua escrita?
Balanço em que sentido?

Que vês na tua escrita observando de longe?
Que vejo na minha escrita? Sou a pessoa menos indicada para discretear sobre este assunto. Normalmente, o escritor é o que sabe menos sobre a sua obra, por mais paradoxal que possa parecer... Mas, se insistes, vejo sobretudo narrativas e outras lérias sem classificação, além de uma poesia péssima, de que não me envergonho por ter sido, como qualquer outro dos meus livros, arrancada de mim… Só que o meu modo de expressão não era esse. Há quem diga que a minha prosa tem mais poesia que os versos. Falando há dias com o tradutor italiano de “Passageiro em Trânsito”, livro tão mal-amado e zurzido por uma luminária da crítica micaelense, dizia-me ele, modéstia à parte, que o livro parece-lhe que tem mais a ver com a poesia do que com a prosa…

És perfeccionista?
Não tenho pejo em afirmar que sou um grande perfeccionista ou narcisista, creio que tanto faz. Escrevo como quem pratica onanismo... Escrevo, emendo, corto, modifico, acrescento, até ficar com a cabeça num labirinto ou num “lavarinto”, como se diz na ilha… Então, quando manuscrevia, era o cabo dos trabalhos, porque não conseguia ver, no papel, emendas: tinha de reescrever tudo e, na reescrita, ia alterando, podando, uma verdadeira enxaqueca daquelas que se sofre durante o pós-guerra…

Corrigir é uma forma de bem escrever…
Pode não ser. Às vezes perde-se a frescura e o encanto das primeiras palavras que o escritor vai descobrindo… Só alguém alheio à criação poderá ver a diferença. O escritor, ao substituir, já está cansado daquelas palavras, podendo muito bem estar a substituí-las por outras com menos frescura… Miguel Torga, na ânsia de aperfeiçoar a sua escrita até ao osso, foi muitas vezes acusado disso. O meu mais recente livro, “Catarse”, foi terminado em Janeiro de 2011, mas em Março ainda estava a ser reescrito, o que não significa que seja uma obra-prima de escrita…

Que vês, então, olhando para trás?
Vejo-me viajante de uma narrativa interior, a viagem mais autêntica que o escritor pode empreender.

Mas há um discurso açoriano na tua escrita?
Com certeza. Um discurso micaelense, talvez seja mais correcto dizer. Açoriano é um adjectivo que não diz nada ou diz muito pouco, uma vez que temos nove realidades distintas no nosso Arquipélago. Não se fala açoriano! Fala-se micaelense, terceirense, etc.. Não se nasce numa ilha em vão. Há uma marca de origem. E é essa marca que vai entroncar na escrita portuguesa dos séculos XVI e XVII. Veja-se os termos “chamatão” e “pêloei”, discreto, no sentido de inteligente (provém do verbo discernir) entre muitíssimos outros, que já caíram em desuso na matriz, mas que ainda se utilizam nos locais mais afastados dos grandes centros, onde a língua se vai adulterando... Agora, com a rapidez dos meios de comunicação, houve uma espécie de nivelamento por baixo, o que leva muita gente a repetir as asneiras linguísticas que os locutores, os políticos e outros figurões vai debitando sem nenhum respeito pela língua, a nossa Pátria, como bem disse Fernando Pessoa.

A ilha de S. Miguel tem um discurso rico?…
O mais rico de todas as ilhas! Alentejano, transmontano… A nossa pronúncia é que nos trai. Comem-se as sílabas, e não raro não se entende. Mas o discurso escrito é rico no léxico e em certos achados linguísticos. Daí que a pronúncia não se pode nem deve confundir com o léxico, que é riquíssimo.

Há uma cultura açoriana bastante estendida no tempo que penetra muito na cultura portuguesa e que não é reconhecida como tal…
Açoriana, portuguesa… Não concordo com a distinção. Acho que a cultura portuguesa é que penetrou na nossa. É natural que tivesse havido muitas adaptações derivadas do meio, do clima, da actividade sísmica (veja-se o Espírito Santo, que se mantém vivo em todas as ilhas, enquanto na matriz de onde proveio há apenas resquícios), e foi essa actividade sísmica que fez perdurar, no tempo, o culto do Espírito Santo.

O estereótipo da cultura açoriana está muito associado a nomes como os de Antero de Quental, Vitorino Nemésio, Natália Correia…
Mas a cultura açoriana não se resume a esses nomes. Haverá, porventura, alguma coisa que lembre a Ilha na obra de Antero? Em Natália Correia, só muito no fim, porque, antes, quando ela deslumbrava toda a Lisboa do seu tempo, não queria, não gostava que lhe lembrassem a sua origem ilhoa. Respondia que tinha daqui saído muito novinha (cinco anos) e não se considerava filha cultural da Ilha onde nasceu… Mais tarde, era chique ser das ilhas, escrever livros ou poemas com fundo ilhéu, mesmo que fosse a martelo, isto é, de fora para dentro. A ilha não fazia parte do sangue. Nemésio, Roberto Mesquita, esses sim. Espelham o viver rodeado de mar por todos os lados… Aqui há uns anos, houve um concurso literário da Secretaria Regional da Cultura, a que podiam concorrer residentes, não residentes, mas cá nascidos, e todos os que falavam a Língua Portuguesa que nunca cá viveram (ridículo!). E mais ridículo ainda era o facto de para os residentes e os açorianos que viviam noutras partes o tema ser livre (jogos florais). Para os não naturais, o fundo das obras tinha de reflectir a ambiência das ilhas (magnífico!) Ganhou, nesse ano, uma escritora coimbrã, com um romance de setenta páginas, sendo o prémio de oitocentos mil escudos, mais de mil por página. Li o livro, tenho-o aqui à minha frente: uma “novelada” (intitula-se novelos), escrito a partir de folhetos turísticos para que houvesse cheirinho a hortênsia, a bosta de vaca, a “bedume” de polpa e a pasto… E o júri composto por altas pensâncias de Lisboa caiu na esparrela como canarinho…

A tua escrita veio “desenterrar” o discurso da cultura açoriana mais profunda…
Não desenterrei coisíssima nenhuma, não fiz investigação linguística e, se o fizesse, a naturalidade da escrita ia-se... Tratava-se de uma questão estética. Eu falava assim, ouvia falar do mesmo modo, e queria transformar o nosso léxico em linguagem literária… Se o consegui, ou não, não me compete dizer.

Se não desenterraste, acabaste por explorar, potenciar…
Como me interesso muito pela Língua Portuguesa, procurava saber por que é que se diz isto, por que é que se diz aquilo… e verifiquei que boa parte do que dizemos em S. Miguel é português arcaico.

A tua escrita tornou-se uma espécie de “ponte” entre vários tempos da cultura portuguesa…
“Raiz Comovida” era incompreensível para Gaspar Simões, mas em regiões como Bragança, Trás-os-Montes em geral, Beira Alta, há pessoas que o entendem e utilizam muitos desses termos incompreensíveis para os salões lisboetas, onde se pronuncia “insêto”, e outras estupidezes... Repara no termo “pitafe”, que se usa também no Alentejo (a nossa matriz linguística) e se aplica a qualquer coisa que tem defeito – esta sopa tem “pitafe”… Provém do termo “epitáfio”. Os açorianos levaram a Língua Portuguesa para o Brasil (a primeira leva de emigrantes que saiu das nossas ilhas para o Brasil data de 1677). No Brasil, fala-se um Português por vezes muito mais correcto do que o que lhe deu origem, sobretudo nos particípios passados dos verbos e na abertura das vogais. Camões recitado por um declamador brasileiro é mais musical, até a métrica fica mais marcada… Não admira. Ficou ilhado, sem receber influências, tal como as nossas ilhas, Trás-os-Montes, Alentejo… Se, por exemplo, quisermos ouvir falar como se falava há cinquenta anos no Pico da Pedra e em Rabo de Peixe só temos de nos deslocar a Fall River, nos EUA. As pessoas não se integraram na cultura norte-americana, formaram um grupo à parte, e congelaram a língua que da ilha trouxeram. Agora o cenário está a mudar por causa da RTP Internacional. Todavia, não advogo que todos falem da mesma maneira. O que dá profundidade cultural a um país é a diversidade.

Há todo um peso cultural que transita para a tua escrita…
Nunca tive pejo de assumir a minha origem de ilhéu micaelense, ao contrário de alguns outros escritores que, só depois da “fundação” da chamada literatura açoriana, principiaram a ter orgulho na sua origem, porque só assim poderiam ficar no retrato de uma novel literatura.

De certa maneira, pareces ser a literatura em forma de pessoa… Ou se a literatura tivesse uma forma humana poderia ser a tua forma…
Não exageremos. Sou um escritor, mais nada. Há um mecanismo de criação que desconhecemos ou que desconheço. Quando estou a escrever, vêm-me à cabeça coisas que em estado de vigília não surgiriam.

É o discurso do inconsciente… discurso do irracional.
É preciso que haja um pretexto para que o inconsciente se manifeste ou exploda.

Qual o teu pretexto?
A guerra, a infância, a adolescência, a ilha, a freguesia onde fui parido, as pessoas que me marcaram, negativa e positivamente, o liceu que, durante nove anos, me marcou e me deixou algumas alegrias e muitas tristezas e amarguras…

O liceu daquele tempo foi uma humilhação?
No liceu, tive duas fases: a da humilhação e a da glória, embora esta última fosse falsa. Se não tivesse ido estudar para Coimbra e tivesse acreditado no que me diziam alguns dos meus mestres de Português, teria ficado convencido de que era um sábio. Ficar na ilha é por vezes uma maneira de julgarmos que somos os maiores do planeta e arredores… Na minha freguesia, fui mesmo humilhado em certas fases da minha vida. Por exemplo, quando chumbei dois anos seguidos no antigo terceiro ano do Liceu. Tuteavam-me quando passava no caminho, mas, quando me tornei bom aluno, nunca ninguém teve o alvedrio de me dar uma palavra de estímulo… Santa freguesia!

E Coimbra?
Em Coimbra, aprendi muito dentro e mais ainda fora da Universidade… Aprendi também a humildade, que era uma atitude que não tinha. Não admira. Era ilhéu, e os ilhéus, como se sabe, sabem tudo... Quando lá cheguei, na companhia de Viriato Madeira, dissemos um ao outro: “Mas nós não sabemos nada! Esta gente fala de outra maneira”. E não era uma questão de sotaque. Vi jovens que avançavam para uma Assembleia Magna e que abordavam os assuntos de forma desassombrada e assombrosa, num discurso que se podia escrever… Manuel Alegre era um deles! O choque foi tal que, a certa altura, quis mesmo vir embora e escrevi uma carta à família com esse intuito. Se fosse hoje, tinham-me respondido: “Vem, querido filho, que aqui estás no teu cantinho, sossegado, fora dessas babilónias de pecado…”

É como se viver na ilha limitasse a capacidade de reflexão ou de expressão?
Não é só isso. É que todos os ilhéus são um bocado bazofeiros, talvez por viverem rodeados de mar. Julgam que o centro do mundo se instalou ou passa pelo seu umbigo... Resolvem tudo… sabem tudo. Até há quem diga: “Se eu fosse primeiro-ministro, punha este país de pé num zape…”, ao que apetece responder: “Muito bem falas, Manel, mas como irás pôr o país em pé, se nem sabes governar a tua casa?”

Há muita falta de humildade…
Com certeza. E o medo de ser frontal. Quem porventura o é pode sofrer alguns amargos de boca… Ser crítico é ser má-língua, ter um feitio insuportável, intransigente, casmurro, explosivo, e tudo de mau que existe debaixo da rota do Sol… Tal como eu, como dizem Onésimo, Daniel de Sá, e outros ilustres intelectuais da nossa praça, o Campo de São Francisco… Custa-me a entender que alguns intelectuais vão ao ponto de criticar quem tem coragem de assumir certas posições diferentes do politicamente correcto. Só conseguem falar por trás, é mais seguro, dá milhões, é-se bem-visto pelas autoridades culturais, dá viagens e outras benesses…

Não será que as pessoas estão “formatadas” para funcionarem segundo determinadas regras, já que nos meios pequenos a noção do outro é muito mais forte do que nos meios maiores? Nas ilhas, há uma noção de vizinhança muito acentuada. Vai-se ao café e o empregado diz-nos: “Que vai ser, vizinho?...”
A vizindade sempre foi muito importante. Ser vizinho é, por vezes, pertencer à mesma família, mas se há malquerenças, é o diabo entre as couves. Já diz o povo: “Antes ter um mau ano que um mau vizinho”.

A proximidade do outro tem muita influência no dia-a-dia…
É verdade. Mas, por vezes, caímos nos estereótipos. Por vezes perguntam-nos: “Como está, como tem passado? Muito bem, obrigado”. Mas se a pergunta for – “estás bem?” – e a resposta – “ão, estou muito mal”, a reacção que obtenho é: “Isso não é nada, isso passa…”, e a pessoa que indagou dá meia volta e vai-se embora. Bebe uns copos, vais ver que ficas rijo! A resposta esperada, sacramental, seria: “Estou muito bem, obrigado!” Ora, isto não é nada, isto não é convivência.

Tu não és assim?
Não sou e por isso apanho cada dissabor…

Essa tua fuga à regra cola-te a uma imagem de conflito e de polémica…
E dizem que perco mais do que ganho com estas coisas. Ganhar o quê? O apreço de medíocres? Tenho escrito em jornais sobre assuntos com os quais discordo. Na ilha do Pico houve pessoas que deixaram de falar comigo por essa razão, algumas delas por medo. É que naquela ilha ainda se fala da justiça da noite…

Como surge o Pico na tua vida?
Eu conhecia o Pico muito mal (fui lá pela primeira vez, durante uma simples manhã, na viagem de finalistas do 7º ano do liceu). Em 1996, juntei, em Coimbra, um grupo de 29 pessoas e combinámos ir ao Pico por 15 dias: sete dias no Pico, dois na Terceira e os restantes em São Miguel. Principiámos pelo grupo central porque tinha a minha fisgada: quando chegássemos a São Miguel seria a apoteose! Quando lá chegámos, fomos percorrer a Ilha e ver os locais mais consabidos… Todos gostavam muito, mas logo a seguir comentavam: “É muito bonito… mas o Pico…”. Um dizia-o, o outro repetia-o e eu próprio dei por mim também a dizer: “É muito belo, mas o Pico…”. Há qualquer coisa naquela ilha que nos atrai…

É verdade.
Até pode ser magnético. Numa noite limpa, as estrelas brilham mais sobre o pico do Pico. Decidi fazer lá uma casa. Ali, eu sentia o arquipélago. É que a ilha em frente, segundo Raul Brandão, é muito importante. Dá-nos a sensação de que há mais mundo, de que não estamos desacompanhados…

É uma sensação completamente diferente de viver em S. Miguel…
É verdade. Para mim, a ilha em frente era a Serra de Água de Pau… Santa Maria só muito raramente se mostrava como uma sombra no horizonte, e quando assim acontecia, tínhamos chuva pela certa. Mas tive sorte. Quando entrei para o liceu, em 1951, as camionetas da Ribeira Grande eram bastante irregulares e avariavam em quase todas as viagens. E então ficou decidido que eu ficaria alojado numa pensão, em Ponta Delgada. Nessa pensão, tive o privilégio de encontrar jovens estudantes de todas as ilhas, mais velhos do que eu, e passei a dar-me conta da geografia, pronúncias e maneiras de pensar diferentes. Só conhecias as ilhas pelo mapa…

Não te esqueças de que estávamos a falar da tua decisão de fazer uma casa no Pico…
Ah, pois. Arranjei um terreno, em S. Miguel Arcanjo, de onde se via a ilha de S. Jorge de ponta a ponta! Era um pasto. Perguntei ao vizinho se a propriedade estava para venda. “Não sei”, respondeu ele. “Isso é de um senhor que está no Canadá. Mas, se quiser saber, pode falar com a cunhada, que mora aqui mais acima. É procuradora e contacta com ele todas as semanas”. E assim fiz. Dias depois, soube que o proprietário estava na disposição de vender o terreno. Aceitei o preço, não regateei, e fechei negócio. Disseram-me que era muito caro, mas eu não quis saber. Comecei logo a fazer a casa. À moda antiga do Pico, de acordo com as leis anti-sísmicas

Miguel Torga é importante na tua vida…
É, com certeza. Tem uma escrita telúrica, na qual arranca às pedras de Trás-os-Montes aquela concisão, aquela secura… aquele não desperdício de palavras.

Em tempos, li bastante da sua obra, mas hoje não o voltaria a fazer…
Uma pessoa também não pode estar sempre agarrada ao mesmo escritor… O que é preciso é saber se a nova geração o lê ou não.

Eu deixei de ler o Torga, mas não deixei de ler o Eça…
Torga reflecte na sua escrita um Portugal que, em parte, já não há, mas a mentalidade do povo continua: os seus vícios, defeitos, manhas, esperteza saloia, comuns a todos os povos. Por isso, a sua obra continua válida (pelo menos para mim) e universal.

Torga não deu o salto para a contemporaneidade…
Não sei muito bem o que é a modernidade. Badala-se tanto sobre ela, que acabo confundido. Será a modernidade sinónimo de tecnologia avançada, comunicações instantâneas? E o homem, como se encontra nos seus instintos? Teria evoluído a par de toda essa parafernália tecnológica? Ou terá ficado, no íntimo, igual ao seu antepassado das cavernas? Mata-se hoje em dia com a mesma crueldade com que se fazia há milhares de anos. Talvez haja mais requinte derivado da modernidade e das suas consequências. É evidente que a escrita e a arte em geral devem acompanhar esse desenvolvimento. Mas, se reflectem o Homem na sua humanidade, os temas são sempre os mesmos: a morte, o amor, o ódio, e tudo o resto que o ser humano carrega dentro de si desde que apareceu à face da Terra…

Hoje, prefiro ler um livro teu do que um livro do Torga. Tens uma capacidade de abertura que ele não tem.
Não sei aonde pôr as palavras com essa tua afirmação! Torga é Torga e eu, à sua ilharga, sou um pigmeu. Convivi com o Torga durante um ano e tal. Todos os dias ia buscá-lo ao consultório para irmos dar uma volta por Coimbra ou arredores. “Ó Cristóvão, podemos ir ali a cima?” Eu percebia o que ele queria. “Vamos ali àquele miradouro…”. Lá íamos. Tinha com certeza um poema a pedir para nascer… Vivia única e exclusivamente para a literatura. Transformava tudo em literatura. Disse à mulher em vésperas do casamento: “Vou procurar ser um bom marido, mas digo-te com toda a franqueza – em qualquer circunstância, troco-te por um verso!” Disse-o e escreveu-o. Esta era a sua têmpera. Quis ser escritor por vontade e fazia da escrita um sacerdócio laico. Um dia, contei-lhe certos passos da minha vida. Ouviu-me com muita atenção. Quando terminei, disse-me: “Por que não escreve tudo o que me contou? Talvez desse uma espécie de “Criação do Mundo…” Salvo as devidas proporções, digo agora eu.

Durante vários anos, Torga chegou a ser candidato ao Nobel…
Estou muito contente por termos um Nobel da Literatura português, mas penso, sinceramente, que o prémio tinha ficado muito mais bem entregue a Miguel Torga do que a Saramago. A sua escrita tem muito lugar-comum…

Saramago é um lugar-comum…
Pois…

Terminemos, voltando à terra onde nasceste: que representam os Açores, hoje, para ti?
Os Açores, para mim, hoje… são uma memória afectiva. Sou um misto de Açores e de Coimbra, embora eu não queira nem consiga distinguir entre ambos. Quando uma pessoa sai da sua terra desenraíza-se…

Deixa de ter pátria…
Passa a ter raízes aéreas. Perde o chão. E nunca está bem em parte nenhuma. Agora, estou mais calmo, mas no tempo de estudante, quando estava de férias em São Miguel, cheguei a voltar mais cedo para Coimbra. Todavia, uma vez lá chegado, arrependia-me! Havia uma dualidade, um conflito interior. Mas houve uma coisa interessante que aconteceu comigo: vim a São Miguel em 1994 e não fui ao Pico da Pedra. Nessa altura, senti-me muito melhor na ilha.

O Pico da Pedra era uma opressão…
Exactamente. A causa do meu mal-estar era o Pico da Pedra da minha infância e da minha adolescência. Comparando com a actualidade, eu diria que o Pico da Pedra tinha os seus talibãs! Ir estudar para Coimbra foi a oportunidade que tive para me desligar de tudo isso.
Cristóvão de Aguiar
Escritor
Natural de S. Miguel, residente em Coimbra e Pico

Mundo Açoriano

























segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Crítica literária do livro Miguel Torga o Lavrador das Letras, in Campeão das Províncias.

É um livrinho pequeno mas rico em testemunho. Em “Miguel Torga. O Lavrador das Letras. Um Percurso Partilhado” Com Chancela da Almedina, o escritor açoriano Cristóvão de Aguiar reúne excertos das suas publicações diarísticas—“Relação de Bordo” I e II, e a “Tabuada do Tempo—A Lenta narrativa dos dias”_, nos quais existem referências a Miguel Torga, fruto da convivência e do intercâmbio que ambos tiveram mais de um ano.

“ Os laços afectivos e literários que me enleiam à obra do poeta e escritor Miguel Torga Datam de há mais de 40 anos”, refere recordando as primeiras impressões da obra do médico, fruto de leituras ainda na ilha de São Miguel, enquanto jovem.”

Na altura leitor assíduo de Eça de Queiroz, Cristóvão de Aguiar confessa que, “pelo pouco que havia lido, notara logo que o estilo de Miguel Torga era totalmente distinto do cinzelado nas obras do pobre homem da Póvoa de Varzim—mais enxuto, descarnado e de uma seriedade granítica. Ali não se vislumbrava um pingo de ironia.”

Foi já em Coimbra, onde se instalou na década de 60, que Cristóvão de Aguiar conheceu verdadeiramente a obra do escritor transmontano. “Só em Coimbra, após a guerra colonial, e já numa idade mais amadurecida, me encafuei de tal forma na obra torguiana, que ainda hoje, passados todos estes anos, continuo a frequentá-la com uma assiduidade de devoto que ainda não esfriou a sua fé”, admite.

“ Esta paixão deve ter tido origem não só na prosa apurada com que o escritor lavra a página de cada livro e me fascina pela simplicidade trabalhada até à placenta da palavra mas também no facto de a ambiência espelhada nos “Contos” e sobretudo em  “A Criação do Mundo” ser idêntica, ou muito semelhante, ao pequeno grande mundo da Ilha onde fui nado e criado”, justifica.

Aida hoje, confessa ainda o escritor, ” a (re)leitura dos livros de Miguel Torga invade-me de uma paz rústica, genuíno oásis neste mundo barulhento e transmuda-se num conchego caldeado de uma ansiedade mansa”. Torga, acrescenta, “é uma personalidade rebelde e inquieta e refelecte-a como poucos em toda a sua vasta obra.
1.º Centenário do seu nascimento.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Coimbra, May 1, 1974.

Coimbra, May 1, 1974 ─ I have never seen a deluge of people of this nature in all my born life. Neither the procession of the Senhor Santo Cristo dos Milagres, the largest of all held, also in May, on one of the Islands of the Azores, might be compared with what I have seen today, with tears gushing out, willingly, from my full eyes. It was like a river Tagus overflowing of people from the Square of the Republic to the University Stadium, on the river Mondego left bank.
Miguel Torga followed close to me. I tried to read in his face what he would feel within his soul. I was not successful. However, his presence in the grand civic procession gave the event a guarantee of patriotic seriousness ─ the Poetry and the Revolution hand in hand down the Avenue. God grant that this Hymen might be lasting!
Even my eldest son, Zé Manuel, who is little more than seven years old, has had his first act of domestic emancipation ─ he got lost among the crowd and only came back home by nightfall! I saw him very happy, because, according to what he said, he did it on purpose ─ he knew the streets that could lead him back. He also wanted to enjoy his share of freedom…
Judging by the crowd that joined Coimbra procession and all the others I watched on television in the evening, it gave me the idea that everyone in this country was longing for democracy. Are there not too many democrats in so small a nation? It is high time to begin to doubt so much abundance…

(From the book: Miguel Torga ─ The ploughman of the Writing ─ A Shared Path)

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

DOIS HOMENS DE TRÁS-OS-MONTES, Miguel Torga e Paulo Quintela, por Cristóvão de Aguiar.


"Aqui, na cidade de Bragança, coração de Trás-os-Montes, grave delito seria não recordar dois grandes vultos da cultura portuguesa do século XX, Paulo Quintela e Miguel Torga. Outros haveria que realçar como o Abade de Baçal, historiador, etnógrafo, arqueólogo, autor das Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, cujo V volume é o célebre livro, Os Judeus no Distrito de Bragança… E João Araújo Correia, médico na cidade da Régua e um dos grandes Mestres da Língua Portuguesa, que mereceu de Aquilino, outro brilhante cultor da Língua, estas expressivas e legítimas palavras: «Mestre de nós todos há cinquenta anos a lavrar nesta terra ingrata e ímproba seara branca do papel almaço, e somos velhos, gloriosos ou ingloriosos, pouco importa; mestre dos que vieram no intermezzo da arte literáriacom três dimensões para a arte literária sem gramática, sem sintaxe, sem bom senso, sem pés nem cabeça; e mestre para aqueles que terão de libertar-se da acrobacia insustentável e queiram construir obra séria e duradoura». Isto só para mencionar os que desapareceram.
Sem desprimor para os dois vultos transmontanos atrás mencionados, e que de per si mereciam uma conferência inteira, ou mais, só irei debruçar-me, e espero não me despenhar da altura a que ambos se guindaram, sobre a obra e personalidade de outras duas individualidades transmontanas, mais chegadas à minha afeição, com quem durante anos convivi em Coimbra e de quem recebi grandes lições de vida, cultura, humanidade e humanidades: Paulo Quintela, filho desta cidade, onde nasceu em 1905, e Miguel Torga, natural de São Martinho de Anta, o seu lugar de onde e o seu centro do mundo, como tantas vezes escreveu nos seus livros… Paulo Quintela foi um germanista de renome internacional e um dos melhores tradutores das línguas germânicas para a Língua Portuguesa. Dir-se-ia, sem pingo de exagero, que nacionalizou esses poetas e escritores estrangeiros, principalmente alemães, para a Literatura Portuguesa, dela ficando a fazer parte: Rilke, Hölderlin, Goethe, Nietzsche, Hauptmann, Nelly Sachs e tantos outros, incluindo muitos poemas ingleses de Fernando Pessoa, a pedido de Georg Rudolf Lindt, crítico alemão, lusitanista, estudioso e tradutor de Pessoa. E foram esses poetas maiores da Literatura Universal, sobretudo Rilke, que influenciaram alguns poetas portugueses, dos quais destaco Eugénio de Andrade e o próprio Miguel Torga. Como se isto não bastasse, Paulo Quintela, um apaixonado pelo teatro e por Gil Vicente, havia de ressuscitar a sua obra dramatúrgica para as tábuas do palco, até então sepultada na poeira dos compêndios. Excetuavam-se algumas tímidas, fugazes e nem sempre logradas tentativas do Teatro Nacional Dona Maria, que, nos meados dos anos trinta do século XX, o pôs em cena. E terá sido um espetáculo, com excertos da obra de Mestre Gil, uma silva vicentina, representado por essa companhia, em uma noite de Verão, no Pátio da Universidade de Coimbra, que o catapultou para pôr de imediato a obra vicentina em
cima do palco. Escreveu ensaios sobre a obra do maior homem de teatro português, e deu a conhecer aos leitores portugueses as Líricas Castelhanas, de Gil Vicente, publicadas em livro, em meados dos anos sessenta, no Cancioneiro Vértice. Porém, Quintela não se quedou por Gil Vicente: encenou outros grandes dramaturgos; os trágicos gregos: a Medeia, de Eurípedes; a Antígona, de Sófocles; o Prometeu Agrilhoado, de Ésquilo; O Grande Teatro do Mundo, de Calderón de La Barca; Retablillo de don Cristóbal e A Sapateira Prodigiosa, de Frederico García Lorca. Nesta última peça, foi o próprio Quintela quem representou o papel de sapateiro, o principal, porque o ator que o devia interpretar ter comunicado, na véspera da estreia, que não podia comparecer – valia Quintela saber de cor todos os papéis das peças que
encenava; O Tartufo, de Molière, além de alguns portugueses contemporâneos, como Miguel Torga; José Régio e Raul Brandão… Graças ao TEUC (Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra), fundado em 1938, e que se estreou com a Farsa de Inês Pereira, foi possível a Paulo Quintela, seu diretor artístico durante mais de trinta anos, dar a conhecer não só Gil Vicente como todos os dramaturgos atrás referidos, fazendo do TEUC uma verdadeira escola de teatro por onde passaram gerações e gerações de estudantes, que, após a formatura, continuaram a lição do Mestre, organizando grupos de teatro nas locais onde foram exercer a sua profissão.
Como dizia, foi nesta cidade de Bragança que nasceu, em Dezembro de 1905, Paulo Manuel, oitavo rebento de uma prole de dez, sendo o pai pedreiro e a mãe padeira. Aqui se criou, iniciou e concluiu os estudos elementares e liceais, que o haviam de guindar à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde se matriculou no ano letivo de 1922 /1923, ainda com a idade de dezasseis anos. Aluno brilhante, concluiu o curso de Filologia Germânica com distinção, e foi bolseiro da Fundação Humboldt, o que lhe proporcionou viver, estudar e ensinar, em Berlim, durante seis anos. Com a subida de Hitler ao poder, regressou a Coimbra e à sua Faculdade, passando a exercer, durante mais de quarenta anos, o magistério nas Literaturas e Culturas Germânicas. Aqui jaz, no cemitério do “Alto do Sapato”, desde o dia 10 de Março de 1987.
Delito grave seria também deixar em silêncio o nome de Miguel Torga, um dos mais grados escritores de sempre da Literatura Portuguesa e, durante grande parte do percurso da existência, íntimo amigo de Paulo Quintela e seu companheiro de lides e aventuras literárias. Procurarei, nesta minha despretensiosa comunicação, deslindar o que os uniu e depois os separou para sempre, tentando o milagre, sempre possível, de um reatamento de relações post mortem…
Entre ambos existia uma amizade enraizada num acerado amor que consagravam a Trás-os-Montes, o «Reino Maravilhoso», de onde ambos eram oriundos. «Que belo é ter um amigo! Ontem eram ideias contra ideias. Hoje é este fraterno abraço a afirmar que acima das ideias estão os homens. Um sol tépido a iluminar a paisagem de paz  onde esse abraço se deu, forte e repousado. Que belo e natural é ter um amigo!» ─ escreveu Torga, no dia 4 de Fevereiro de 1935, no primeiro volume do Diário, referindo-se a Quintela, que conhecera um ano antes na cama de um hospital em Coimbra.
No Segundo Congresso Transmontano, realizado nas Pedras Salgadas, em Setembro de 1941, ambos participaram com duas conferências. A de Miguel Torga intitulava-se «Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes)»; a de Paulo Quintela, «Um Poeta de Trásos- Montes», Miguel Torga. E era o Poeta: «Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador. Tudo parado e mudo. Apenas se move e se faz ouvir o
coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente rasga a crosta do silêncio uma voz de franqueza desembainhada: «─ Para cá do Marão, mandam o que cá estão!» Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós? Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena: ─ Entre! ─ A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso.»
Por seu turno, Paulo Quintela: «Mas não se nasce impunemente em Trás-os-Montes, no Alentejo ou à beira-mar. Quer dizer que a paisagem, se não é o único fator determinante, é contudo primordial elemento de formação e informação. Se a poesia é no fundo expressão ─ expressão mágica ─ das coisas e dos seres, da Vida, é evidente que essa expressão há de ser em certa medida condicionada pela maneira como esses seres e coisas se nos revelam e nos solicitam, pela luz que os banha, pelo horizonte em que estão implantados, pelo ângulo por que se contemplam. O homem da planície terá uma vivência das coisas e dos homens muito diversa da do montanhês. Horizontes vastos e planos, monótonos, em que as figuras se perdem ou ficam reduzidas a contornos imprecisos, convidam a erguer os olhos e a contemplar o céu. Daqui
─ falo, evidentemente, em termos amplos que admitem toda a sorte de exceção que não abalará aliás a firmeza do princípio ─ (o próprio poeta de que me ocupo poderá por vezes parecer exceção...) ─ daqui, digo, a propensão contemplativa e a necessidade de fuga e libertação mística do homem nado e criado em ambiente destes. Daqui o caráter místico da grande literatura da estepe russa, por exemplo. Mas subamos agora uma montanha. As coisas na encosta que vamos escalando são-nos mais chegadas, mais íntimas, mais nossas, pelo esforço que pusemos em alcançá-las; a luz quebra e reflete de outra maneira nas lombas que nos rodeiam e nos limitam o horizonte; a subida é árdua, mas gostosa; o arcaboiço arfa, bate o coração encostado à fraga ou à árvore, e o arquejar do peito e a pancada do coração do homem da montanha faz-se hálito e pulsar da própria terra-mãe. Chega-se ao cimo. Mas não foi para contemplar o céu que nos aproximámos dele. Sobe-se a um monte para olhar cá para baixo, para dominar a terra que se alarga, se nos revela e nos convida. Foi no alto dum monte que o diabo patenteou a Cristo a sua maior tentação: «De novo o subiu o diabo a um monte muito alto: e lhe mostrou todos os Reinos do Mundo, e a glória deles, e lhe disse: Tudo isto te darei, se prostrado me adorares...» Deus em Cristo resistiu à tentação. Os homens sucumbem à veemência do desejo de posse do Mundo e da sua Beleza. Miguel Torga é, dos poetas portugueses modernos, o que está mais intimamente ligado à sua paisagem, que é a paisagem de Trás-os-Montes.»
Convoco agora o Poeta Manuel Alegre para, com a sua palavra poética, vir em meu auxílio. Na III Parte do seu livro, Coimbra Nunca Vista, intitulada «Abecedário de Coimbra», o poeta de Abril, grande amigo e admirador de ambos, empreende uma apolínea peregrinação afetiva através de individualidades que, em dado momento histórico-cultural, cunharam o caráter da cidade mítica. Nesse «Abecedário», figuram, entre outros, dois poemas dedicados às duas fragas graníticas transmontanas, um com o título de «Miguel Torga No Largo da Portagem»; o outro intitulado «Paulo Quintela». O dedicado ao autor de A Criação do Mundo do reza assim:
Todos os dias o poeta vem ao centro / sobe ao seu consultório e embarca para /dentro. / Diante da folha branca vai de viagem / navega sobre o tempo e nunca para / Há nele o canto de raiz e o verso vagabundo / da sua janela chega à outra margem / e dá a volta ao mundo / no Largo da Portagem.
Sobre Quintela escreve:
Nada sabíamos da língua portuguesa / e então sílaba a sílaba ele ensinou-nos / a música secreta das vogais / a cor das consoantes a ondulação o ritmo / o marulhar das frases e o seu / sabor a sal. / E também como pisar um palco / como falar como calar e sobretudo/ como sair de cena e entrar / no grande teatro deste / mundo. / Porque tudo era proibido e ele nos disse / que tudo pode ser ousado / desde que se aprenda a entrar a tempo / a colocar a voz e a não perder / a alma.
Nestas prodigiosas sínteses poéticas, de uma tão luminosa fundura a que só os príncipes da poesia têm o condão de descer ou de subir, encontra-se delineado um verdadeiro, muito completo e complexo programa de vida estética, intelectual e cívica, que tanto Paulo Quintela como Miguel Torga foram cumprindo enquanto por cá andaram. Nas facetas que no poema se realçam, tornou-se Quintela grande mestre e a sua obra de intelectual e o seu exemplo de cidadão empenhado deram disso testemunho. A poesia e a prosa de autores de «franças e araganças», que, através de traduções exemplares e recriadoras, naturalizou sem qualquer sotaque para português e que ficaram desde logo pertença da Literatura Portuguesa; se tivessem os seus autores cá nascido, seria decerto como ele as traduziu que escreveriam na nossa língua; o teatro vicentino que estudou e amou como ninguém desde os bancos do Liceu de Bragança difundiu e o elevou, depois, para o seu sítio condigno e certo: as tábuas do palco; o cidadão livre que sempre ousou ser, numa pátria contaminada por grandes medos miudinhos por tantas outras toxinas que lhe conspurcaram a atmosfera, não
raro tornando-se, armada ou armadilhada de um pesadume propenso e propício a que certas criaturas se bandeassem, fraquejassem e se perdessem, alma incluída, no céu da sua conversão…
No poema sobre Torga, Manuel Alegre, em palavras sucintas e certeiras, como é timbre dos grandes Poetas, delineia e recria, minuciosamente, o quotidiano do Poeta de Orfeu Rebelde. Era do seu consultório, no Largo da Portagem, que o Poeta, depois de regressar da noite, quase sempre insone, de macerado trabalho poético, em sua casa, zarpava todos os dias para viagens que só ele sabia deslindar. Transcrevo o
poema de abertura do 1.º Diário, 3 de Janeiro de 1932, (Torga iniciava e rematava sempre os seus Diários com um poema), que reflete esse trabalho noturno, noctívago, a que se entregava com a devoção de um crente da poesia que nunca deixou de ser:
Deixem passar quem vai na sua estrada. /Deixem passar / Quem vai cheio de luar. /Deixem passar e não lhe digam nada. // Deixem, que vai apenas / Beber água do Sonho a qualquer fonte; / Ou colher açucenas // A um jardim ali defronte. // Vem da terra de todos onde mora / E onde volta depois de amanhecer. / Deixem-no pois passar, agora // Que vai cheio de noite e solidão. / Que vai ser / Uma estrela no chão.
Vale também a pena transcrever um texto do Diário XII, de Fevereiro de 1977, em que o autor de Orfeu Rebelde revela, genialmente, a maneira como nasce um poema:
Foi durante a noite que escrevi o poema. Acordei inquieto, estremunhado, fiquei numa sonolência lúcida e, aos borbotões, os versos, na imprevisibilidade do minério arrancado às trevas da mina, começaram a surgir à tona do silêncio, alguns já estremados, puros, outros ainda agarrados ao cascalho. Depois, a razão clarificadora acudiu à inspiração tumultuosa, britou, peneirou, lavou, ordenou, e as pepitas ficaram articuladas de tal maneira que acabaram por formar um todo coeso, harmonioso e autónomo. Um texto na sua plenitude existencial, inexpugnável como um dia de sol.
Excitado pela evidência do milagre, que eu próprio mal podia compreender, não consegui mais pegar no sono. Pus-me a recitar cada estrofe, primeiro numa espécie de terror sagrado, a experimentar a segurança do ritmo, a verificar a verdade das rimas, a avaliar a flagrância das imagens. Por fim, confiado, a abaná-las rijamente, e a concluir, desvanecido, que tinha as raízes seguras. E assim tenho passado o dia com elas no ouvido, numa exaltação secreta, estranhamente otimista, menos vulnerável aos empurrões da multidão, feliz sem o dar a entender. É um regozijo íntimo, fundo, como se me encontrasse bafejado por uma graça que não tivesse merecido, nem pedido, nem recebido de ninguém. (8/2/1977, Diário XII)
Paulo Quintela foi o primeiro homem de teatro português que pôs em cena Miguel Torga. Em 1947, o TEUC representava Terra Firme no velho Teatro Avenida, e doze anos mais tarde, no mesmo local, o CITAC, que convidou expressamente Quintela para encenar uma peça de Miguel Torga, representava o poema dramático O Mar, integrado no seu I Ciclo de Teatro. A partir daí os destinos destes dois homens altivos, como duas vertentes de um Marão de carne e osso, separam-se para o resto da vida. E foi pena. Nunca soube deslindar as razões por que se deu tal rutura, nem talvez as houvesse bem definidas. Seriam fortes razões do coração, atrevo-me até a dizer de um grande amor ferido. No fundo, admiravam-se mutuamente, e outra coisa não seria de esperar de homens de tamanha envergadura. Eu próprio posso disso dar testemunho.
Paulo Quintela continua no seu labor de traduzir autores alemães, ingleses e franceses como Brecht, Nelly Sachs, Hauptmann, Nietzsche, Goethe, Kant, Ben Johnson, Molière e prossegue no TEUC durante cerca de mais dez anos, encenando Gil Vicente, Molière, autores gregos, como Eurípedes e Sófocles, e modernos como Garcia Lorca e José Régio. Miguel Torga havia ainda de publicar dois livros de poesia, Câmara Ardente e Poemas Ibéricos, três de prosa, o quinto e o sexto dias da Criação do Mundo e nove volumes do Diário. Paulo Quintela é o primeiro a sair de cena. No dia 9 de Março de 1987. Na véspera, domingo à noite, estivera a ver um programa televisivo intitulado Eu, Miguel Torga, documentário sobre o autor da Criação do Mundo. Acabado o programa, foi-se deitar e não mais acordou. Premonitório, não acham? Eu tinha estado com ele na sexta-feira anterior. E havia prometido levar-lhe na sexta seguinte o Diário XIV, acabado de sair, do qual lhe falara com entusiasmo durante a nossa última conversa de sexta-feira, 6 de Março de 1987. À despedida, no alto da escada, ainda me preveniu: «Não te esqueças de me trazer o diário do Torga...»
Miguel Torga viria a morrer cerca de oito anos mais tarde, em 17 de Janeiro de 1995.
No seu penúltimo diário, o XV, pode ler-se, na entrada com data de 9 de Março de 1987, dia da morte de Paulo Quintela: «A morte é uma grande reconciliadora. Não há desavença que lhe resista. O seu grande manto de equanimidade cobre todas as paixões da mesma vanidade. Só é pena que, depois dela, tudo seja irremediável.»
Depois de tudo, fico com a sensação de vazio absoluto, de que tudo ou quase tudo ficou por dizer. Paulo Quintela e Miguel Torga são grandes de mais para caberem nas páginas de qualquer escrito, e eu demasiado pequeno para os fazer caber numa simples e despretensiosa comunicação como esta com que vos tenho vindo a massacrar o bicho do ouvido e da paciência. Repare-se, porém, no milagre da poesia, capaz de sínteses fulgurantes: ficaram ambos retratados, em corpo e alma, no poema de Manuel Alegre. São assim os Poetas."
Bragança, 1 de Outubro de 2009

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Quintela, Nemésio e Torga, in blog De Rerum Natura.

Quintela, Nemésio e Torga

Já não é recente o livro Com Paulo Quintela à Mesa da Tertúlia. Tive dele uma primeira edição que comprei em finais dos anos oitenta e que depois dum empréstimo não voltou às minhas mãos. Lembro-me disso, porque me ficou a fazer falta: a escrita de Cristóvão de Aguiar dava-me a conhecer melhor um mítico professor de Filologia Germânica da Universidade de Coimbra, que penso nunca ter visto mas de que muito me falavam na Faculdade de Letras – Paulo Quintela.

Comprada a segunda edição, reli-a de ponta a ponta, detendo-me em algumas passagens que me tinha ficado na memória durante mais de vinte anos. Partilho com os leitores uma dessas passagens em que se refere a longa e estreita amizade entre três grandes nomes das Literatura: Vitorino Nemésio, Paulo Quintela e Miguel Torga.

“Nemésio estudava pouco. Não teria muito tempo! Antes das frequências chegava-se a Quintela para se informar da matéria que vinha para o exame. Ouvia o que dizia o colega, ia tomando notas num cartão-de-visita, e por fim entrava na sala. Perante o papel da prova, escrevia o que sabia e inventava o que não sabia. Numa frequência de História Medieval, da regência do Doutor Gonçalves Cerejeira, Nemésio, como de costume, chegou-se à beira do amigo e perguntou-lhe as linhas gerais da matéria. Durante a prova desunhou-se a escrever. Dias mais tarde, o professor apreciava e comentava e comentava na aula, as provas escritas uma por uma, tão poucos seriam os alunos. Ao chegar ao exercício de Nemésio, «Quanto ao exercício de frequência do senhor Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva, tenho a dizer que mais me parece uma página de Anatole France…», tal era a sua capacidade de escrita.

Lá escrever bem, venha aí quem o negue, e como facilidade, o que já poderá ser um estorvo, mas segundo Paulo Quintela, Nemésio escrevia com a mesma naturalidade com que mijava. Anos mais tarde, leitor de Português em Bruxelas, Nemésio havia de surpreender Miguel Torga pela facilidade de escrita. O passo que a seguir se transcreve do tomo III de Criação do Mundo ilustra bem essa agilidade: «Ao cabo de algumas horas de comboio, fui encontrá-lo confortavelmente instalado num quarto burguês, a matraquear à máquina um ensaio sobre Valéry. Depois das primeiras efusões, com medo de o interromper, fiquei calado. – Vai dizendo, que isto tem de seguir hoje… – Acaba lá primeiro. – Ainda demora. Conta, conta… – Pasmado, assisti então ao fenómeno de o ver a conversar e escrever ao mesmo tempo»”

Imagem: Reprodução do quadro de Bárbara Borges. Nele se pode ver Cristóvão de Aguiar e Paulo Quintela com o seu cachimbo. Aguiar foi seu aluno e amigo e durante muitos anos encontravam-se com regularidade para conversar em tom de tertúlia.

Referência completa: Aguiar, Cristóvão. (2005). Com Paulo Quintela à Mesa da Tertúlia. No centenário do seu nascimento. Coimbra: Imprensa da Universidade, página 32.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

TURISMO COIMBRA: "Cozinha de escritores" Eça; Torga e Cristóvão de Aguiar à mesa de 22 restaurantes de Coimbra, de 3 a 12 de Julho.

Escrito por Andrea Trindade
Coimbra animada em Julho
"Cozinha de escritores"

«Consolava-se então com regalos de gulodice. Durante todo o dia debicava sopinhas, croquetes, pudinzinhos de batata. Tinha no quarto gelatina e vinho do Porto. Em certos dias mesmo queria caldos de galinha à noite». Assim escrevia Eça de Queirós em “O Primo Basílio”, numa das muitas referências que, na sua obra, faz aos prazeres da boa mesa. A gastronomia e a sua arte pontuam também a escrita literária de Miguel Torga ou, nos contemporâneos, de Cristóvão de Aguiar. Todos têm em comum uma ligação à cidade do Mondego e foi por isso que as suas obras foram escolhidas como mote para a primeira edição da “Cozinha de Escritores”, um evento organizado pela empresa municipal Turismo de Coimbra (TC).

A semana gastronómica decorre de 3 a 12 de Julho e conta já com a adesão de 22 restaurantes da cidade, que vão recriar e reinventar os pratos tradicionais portugueses descobertos na obra destes três escritores.

Reiterando a importância da gastronomia na promoção turística, Luís Alcoforado, presidente da TC, explicou ontem, na sessão de apresentação do evento, que esta «ideia agregadora, mobilizadora e expressiva» surge da colaboração com o Mestrado de História da Alimentação da Faculdade de Letras de Coimbra (FLUC), da disponibilidade da Escola de Hotelaria e ainda da adesão da Associação de Industriais de Hotelaria e Restauração do Centro.

O responsável desta associação, José Pires, aplaudiu a iniciativa - «ainda mais importante no tempo de crise que atravessa a restauração» - e lançou o desafio de participação a todos os colegas do sector. «É bom que Coimbra acorde e trabalhe a gastronomia», sublinhou.
Albano Figueiredo, docente da FLUC e responsável pela investigação literária, garantiu que, do arroz de favas que Eça descrevia em “A cidade e as Serras” ao arroz doce e aos pêssegos abobrados, passando pelos carolos e pão de trigo de Torga ou os charrinhos assados na sertã de Cristóvão Aguiar, «há dezenas de pratos para todos os gostos e para todas as bolsas».

Restaurantes assinalados
Ao chefe Luís Lavrador coube pegar na recolha feita e sistematizá-la transformando-a em receitas. Ainda assim, o desafio de recriar fica entregue a cada um dos restaurantes, que apresentarão diariamente dois ou três pratos diferentes, dentro da “Cozinha de Escritores”, e ao preço que estipulem. Os restaurantes aderentes estão dispersos por Coimbra e exibirão uma sinalética alusiva ao evento no exterior, disponibilizando a quem degusta os pratos as respectivas passagens literárias onde surgem mencionados.[...]
In Diário de Coimbra de 19-06-2009.
RESTAURANTES ADERENTES
Panorama | Hotel D. Luis
Quinta da Várzea
3040-091 Coimbra
T. 239 802 120 | M. mauro.mota@hoteldluis.Diariamente das 12h30 às 15h30 e das 19h30 às 22h30

Magistrado | Hotel Tryp Coimbra
Av. Armando Gonsalves, LT. 20
3000-049 Coimbra
T. 239 484 658 | M. elisabete.magistradohotel@sapo.pt
Diariamente das 12h30 às 15h e das 19h30 às 22h

Colo da Garça | Hotel D. Inês
Rua Abel Dias Urbano, Nº 12
3000-001 Coimbra
T. 239 855 800 | M. direccao@hotel-dona-ines.pt
Aberto 24h

Porta Férrea | Hotel Tivoli Coimbra
Rua João Machado, Nº 4-5
3000-226 Coimbra
T. 239 826 934
Diariamente das 12h30 às 15h e das 19h30 às 22h

Arcadas da Capela | Hotel Quinta das Lágrimas
Rua António Augusto Gonçalves
3041-901 Coimbra
T. 239 802 380
Diariamente das 12h30 às 14h30 e das 19h30 às 22h30

A Petisqueira do Terreiro
Terreiro da Erva, 20. r/c
3000-153 Coimbra
T. 918 928 796
Diariamente das 9h às 24h

Adega Típica A Pharmácia – 7 Sabores de Aldeia
Rua do Brasil, 81/85
3030 – 175 Coimbra
T. 239 703 193
Diariamente das 12h às 2h

A Taberna
Rua dos Combatentes da Grande Guerra, 86
3000 – 181 Coimbra
T. 239 716 265 | M. ataberna25anos@gmail.com
Das 12h30 às 15h e das 19h30 às 22h30; encerra domingo ao jantar e segunda ao almoço

Cantinho do Reis
Terreiro da Erva, 16
3000 – 153 Coimbra
T. 239 824 116
De segunda a sábado das 12h às 16h e das 18h às 24h

Carmina de Matos
Praça 8 de Maio, 2-10
3000 – 300 Coimbra
T. 239 823 510 | M. carminadematos@iol.pt

Das 9h às 24h

Churrasqueira da Cidreira
Estrada Nacional 111 – Cidreira
3025 – 654 Coimbra
T. 239 961 215
Das 7h às 24h

Colher de Pau
Rua do Brasil, 56
3000 – 775 Coimbra
T. 239 403 544 | M. j-merces@hotmail.com
Diariamente das 12h às 16h e das 19h às 23h

Cova Funda “O Espanhol”
Rua da Sofia, 117
3000 – 390 Coimbra
T. 239 825 195
Diariamente das 8h às 24h

D. Pedro
Av. Emídio Navarro, 58
3000 – 150 Coimbra
T. 239 829 108
Diariamente das 10h às 24h

La Fiesta
Rua do Carmo, 54 - Loja 4
3000 – 064 Coimbra
T. 239 821 246 | M. rest.lafiesta@gmail.com
De segunda a sábado, das 10h às 24h

Nacional
Rua Mário Pais, 12 - 1º
3000 – 300 Coimbra
T. 239 829 420 | M. restaurantenacional@sapo.pt

De segunda a sábado das 12h às 15h e das 19h às 24h

Novo Rest | Eurest/Makro
Vale das Flores, Edifício Makro
3030 – 191 Coimbra
T. 239 702 056 | M. novorest.coimbra@eurest.pt
Diariamente das 7h às 22h

O Porquinho
Quinta da Ribeira, 1 Coselhas
3000 – 125 Coimbra
T. 239 494 036 | M. geral@oporquinho.com
Diariamente das 12h às 15h e das 17h às 24h

Praça do Marisco
Rua João de Deus Ramos, 145
3030 - 328 Coimbra
T. 239 403 384 |M. pracadomarisco@hotmail.com
Diariamente das 12h às 15h e das 18h às 24h

Quinta da Romeira
Rua António Pinho Brojo, lote 56 - Urb. da Romeira
3030 – 116 Coimbra
T. 239 781 301 | M. quintadaromeira@sapo.pt
De terça a sexta das 19h30 às 23h30 (almoços para grupos mediante reserva); sábado e domingo das 12h30 às 15h30 e das 19h30 às 23h30

A Portuguesa
Parque Verde
3000 – 476 Coimbra
T. 239 842 140

Restaurante da Escola de Hotelaria e Turismo de Coimbra
Quinta da Boavista
3000 – 076 Coimbra
T. 239 007 000 | M. ehtcoimbra@turismodeportugal.pt
De segunda a sexta-feira, das 13h às 15h

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Exposição “Palavras da Terra” na Biblioteca Pública e Arquivo Regional em Ponta Delgada 2006 e um pouco por todo o Planeta.

Fotografia: GaCS/BPARPD
















A literatura é uma outra forma de paisagem. Mas nem por isso a geografia verdadeira lhe é indiferente. Muitos dos nossos autores escreveram sobre Portugal, e recriaram nas suas obras uma geografia literária tão colorida e variada como a outra.

É desses contrastes que esta exposição pretende falar - por imagens e por palavras. Tão diverso como o Norte e o Sul, as terras altas e as terras baixas, o litoral e o interior, é o retrato de Portugal que cada autor nos deixou - bucólico, sarcástico, nostálgico ou visionário.

Ao ler os seus escritores portugueses, descubra nos seus livros a outra paisagem da sua terra.

Minho : Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis, Pedro Homem de Melo, Guerra Junqueiro.
Trás-os-Montes : Teixeira de Pascoaes, Trindade Coelho, Miguel Torga.
Douro Litoral : Ruben A., José Régio, António Nobre, Raul Brandão, Agustina Bessa-Luís.
Douro : João de Araújo Correia, Agustina Bessa-Luís, Eça de Queiroz.
Beira Litoral : Camilo Pessanha, João José Cochofel, Eça de Queiroz, Manuel Alegre.
Beira Interior : Branquinho da Fonseca, Aquilino Ribeiro, Vergílio Ferreira.
Estremadura : José Rodrigues Miguéis, Sebastião da Gama, David Mourão-Ferreira, Fernando Pessoa (Álvaro Campos).
Ribatejo : Almeida Garrett, Soeiro Pereira Gomes, Rebelo da Silva.
Alentejo : Manuel da Fonseca, Fialho de Almeida, Florbela Espanca, Urbano Tavares Rodrigues.
Algarve : Raul Brandão, Lídia Jorge, Manuel Teixeira Gomes, João Lúcio.
Madeira : João Brito Câmara, Edmundo Bettencourt, Helena Marques.
Açores : Antero de Quental, Vitorino Nemésio, Natália Correia, Cristovão de Aguiar.

Responsável Científica : Clara Crabbé Rocha
Design : José Brandão / Mónica Mendes (Atelier B2)
Fotografia : Nuno Calvet
Produzido : Instituto Português do Livro e das Bibliotecas / 1998

É constituída por 25 cartazes plastificados.

BRASIL:
Minas Gerais :Em comemoração ao Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas - dia 10 de junho - foi aberta a exposição Palavras da Terra, no Anexo Prof. Francisco Iglesias, da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa. Ela fica em cartaz até o dia 4 de julho, e a entrada é franca.
FRANÇA:
Paris.
ALGARVE:
Faro.
SENEGAL:
Dacar.
Visita guiada à exposição Palavras da Terra
A exposição «Palavras da Terra» esteve aberta ao público de 28 de Março a 24 de Abril, na Biblioteca do CLP/IC da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade Cheikh Anta Diop (UCAD) de Dacar.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

ÍNDICE ONOMÁSTICO, do livro Miguel Torga o Lavrador das Letras, Almedina 2007. "Um pequeno livro, mas rico em testemunho"

Índice onomástico:
Fernando Aires 49
Luís Albuquerque 30
Manuel Alegre 51
António Alferes 47
Henri Frédéric Amiel 68
António Arnaut 21, 56
Agustina Bessa-Luís 31
Edmundo Bettencourt 81
Senhor Botelho 28
Bertold Brecht 67
Luís de Camões 59
António Campos 21
Martins de Carvalho 40, 61, 85
Raul Carvalho 51
Camilo Castelo Branco 31
Cardeal Cerejeira 84
Miguel de Cervantes 61
Natália Correia 44,45
Luísa Dacosta 49
Júlio Dinis 37
Eurípedes 67
Serafim Ferreira 54
Vergílio Ferreira 37
Branquinho da Fonseca 81
Irmão Francisco 33
Almeida Garrett 37, 69
Johann Wolfgang Von Goethe 67
Álvaro Guerra 21
Artur João 26
Ben Johnson 67
Silva Júnior 21
Immanuel Kant 67
Manuel Laranjeira 49
Garcia Lorca 67
Filho Luís 76
Viriato Madeira 21
José Manuel de Aguiar 16, 24
Molière (Pseudónimo de Jean-Baptiste Poquelin) 67
José Eduardo Moniz 38
Joaquim Namorado 30
Vitorino Nemésio 31,34, 37, 42, 50
Friedrich Nietzsche 67
Fernando Pessoa 44
Loja das Pintas 28
Carlos Pinto 17
Eduardo Prado Coelho 52
Eça de Queirós 13, 37
Antero Quental 59
Paulo Quintela 25, 26, 28, 31, 32, 34, 35, 36, 51, 61, 62, 63, 64
José Régio 62, 67, 68, 69
Carlos Reis 33, 34
António Resende 54
Aquilino Ribeiro 37
Adolfo Correia Rocha 57, 61, 80
Nelly Sachs 67
Mário do Sacramento 30
Jorge Sampaio 39
José Saramago 55
May Sarton 68
João Gaspar Simões 31
Mário Soares 25, 39
Sófocles 67
General Spínola 26
Miguel de Unamuno 61
Fernando Vale 39
Paula Valente 17
Padre Valentim 27, 66
Paul Valery 35
Gil Vicente 67
Virginia Woolf 68

PS ─ Não introduzi, neste índice, o nome de Miguel Torga, porque aparece mais de cem vezes. Além disso, o livro é sobre ele.

terça-feira, 17 de junho de 2008

"Na Terra dos Homens", de Marlene Correia Ferraz, venceu o Prémio Literário Miguel Torga - Cidade de Coimbra - 2008

A obra de ficção "Na Terra dos Homens", de Marlene Correia Ferraz, venceu a edição deste ano do Prémio Literário Miguel Torga - Cidade de Coimbra, anunciou hoje o vereador da Cultura da Câmara local.
Mário Nunes disse à agência Lusa que Marlene Correia Ferraz, residente em Viana do Castelo, concorreu sob o pseudónimo Bendito Homem.
Segundo o relatório do júri do concurso, que tomou a decisão por unanimidade, em reunião realizada sexta-feira, na Casa Municipal da Cultura, "Na Terra dos Homens" é, afinal, "um conjunto de narrativas sobre mulheres, reveladoras de sensibilidade poética e de uma clara preocupação social".
"Na variedade das histórias contadas, corre uma mesma ternura e uma filosofia de vida dominada por um registo emotivo", refere.
O júri deste ano, presidido pelo vereador Mário Nunes, integra ainda Eloísa Alvares, tradutora para espanhol da obra de Miguel Torga, Cristina Robalo Cordeiro, vice-reitora da Universidade de Coimbra e directora da Casa-Museu Miguel Torga, e o professor universitário Rui Namorado, em representação da Associação Portuguesa de Escritores.
Dezanove trabalhos concorreram desta vez ao Prémio Literário Miguel Torga, o que corresponde a cerca de metade dos concorrentes em edições anteriores.
Com uma dotação pecuniária de cinco mil euros e uma periodicidade bienal, o prémio será entregue em cerimónia no Dia da Cidade, a 04 de Julho.
O Prémio Literário Miguel Torga, atribuído a trabalhos inéditos no género de ficção narrativa (novela, conto e romance) escritos em língua portuguesa, visa homenagear aquele médico e escritor transmontano que criou a maior parte da sua obra em Coimbra.
Vasco Pereira da Costa, com a obra "Plantador de Palavras, Vendedor de Lérias" (1984), foi o primeiro galardoado.
Dois anos depois, o prémio distinguiu "Sementes de Só, raízes de mim", de Madalena Caixeiro, autora que voltou a conquistar o galardão em 1998, com a obra "O Declive".
Cristóvão de Aguiar, um escritor açoriano há muito radicado na cidade do Mondego, em cuja Universidade lecciona, também foi distinguido com o galardão por duas vezes, através "Trasfega" (2002) e "A Tabuada do Tempo" (2006).
Também Serafim Ferreira conquistou o Prémio Literário Miguel Torga em duas edições seguidas, nos anos de 1994 e 1996, através de "Mar de Palha" e "Crónica de Damião", respectivamente.
Idalécio Cação, com a obra "Daqui ouve-se o mar" (1990), Maria Júlia Matos Silva, com "A Noite Americana" (2000), e José Hugo Sarmento Santos, com "As mulheres que amaram Juan Tenório" (2004), foram outros galardoados.
Em 1988 e 1992, o prémio não foi atribuído por o júri entender que os inéditos concorrentes não tinham a qualidade exigida.

CSS/FF.

Lusa

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Cristóvão de Aguiar recorda momentos vividos com Miguel Torga, In CAMPEÃO DAS PROVÍNCIAS


Escrito por Paula Alexandra Almeida
30-Jan-2008







É um livrinho pequeno mas rico em testemunho.
Em “Miguel Torga. O lavrador das letras. Um percurso partilhado”, com chancela da Almedina, o escritor açoriano Cristóvão de Aguiar reúne excertos das suas publicações diarísticas - “Relação de Bordo”, I e II, e “A Tabuada do Tempo - A lenta narrativa dos dias” -, nos quais existem referências a Miguel Torga, fruto da convivência e do intercâmbio que ambos mantiveram durante mais de um ano.
“Os laços afectivos e literários que me enleiam à obra do poeta e escritor Miguel Torga datam de há mais de quarenta anos”, refere, recordando as primeiras impressões da obra do médico, fruto de leituras ainda na Ilha de S. Miguel, enquanto jovem.
Na altura leitor assíduo de Eça de Queiroz, Cristóvão de Aguiar confessa que, “pelo pouco que havia lido, notara logo que o estilo de Miguel Torga era totalmente distinto do cinzelado nas obras do pobre homem da Póvoa de Varzim - mais enxuto, descarnado e de uma seriedade granítica. Ali não se vislumbrava pingo de ironia”.
Foi já em Coimbra, onde se instalou na década de 60, que Cristóvão de Aguiar descobriu verdadeiramente a obra do transmontano. “Só em Coimbra, após a guerra colonial, e já numa idade mais amadurecida, me encafuei de tal forma na obra torguiana, que ainda hoje, passados todos estes anos, continuo a frequentá-la com uma assiduidade de devoto que ainda não esfriou a sua fé”, admite.
“Esta paixão deve ter tido origem não só na prosa apurada com que o escritor lavra cada página de cada livro e me fascina pela simplicidade trabalhada até à placenta da palavra, mas também no facto de a ambiência espelhada nos “Contos” e sobretudo em “A Criação do Mundo” ser idêntica, ou muito semelhante, ao pequeno grande mundo da Ilha onde fui nado e criado”, justifica.
Ainda hoje, confessa ainda o escritor, “a (re)leitura dos livros de Miguel Torga invade-me de uma paz rústica, genuíno oásis neste mundo barulhento, e transmuda-se num conchego caldeado de uma ansiedade mansa”. Torga, acrescenta, “é uma personalidade rebelde e inquieta e reflecte-a como poucos em toda a sua vasta obra”.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Republicação de excerto do livro: Miguel Torga o "Lavrador das Letras", de Cristóvão de Aguiar. (Português, Espanhol e Inglês )

Coimbra, 21 de Novembro de 1994
A Igreja Católica está apostada em converter o herege de A Criação do Mundo. Já não lhe bastava a visita de padres, seus amigos ou conhecidos. A Hierarquia entendeu que, para um ateu da grandeza de Torga, só um bispo... E enviou ao hospital um prelado dessa categoria para o tentar converter... “Sabe, senhor doutor, Deus é Pai e bastaria uma só palavra sua para eu lhe dar a absolvição. Pense, senhor doutor, Deus é Pai, bastava uma palavrinha sua e...” “Qual Pai, senhor, não preciso da sua absolvição, nem ela me valia de nada, hei-de morrer assim, coerente com a vida que sempre levei”...

(Cristóvão de Aguiar)

Coimbra, 21 de Nobiembro 1994
La Iglesia Católica resolvió convertir al autor herético de "A Criação do Mundo" (La Creación del Mundo). No sería bastante la visita de sacerdotes, de sus amigos o de meros conocidos. La jerarquía entendía que para un ateo de la magnitud de Torga solamente le satisfaría un obispo... Además, envió al hospital a un prelado de ese estado para intentar convertir al poeta… "Usted lo sabe doctor, Dios es nuestro padre, basta solamente una palabra suya para darte la absolución. Piénselo doctor , Dios es nuestro padre y solamente una palabra suya y…" "…..No, eso es Absurdo, señor, no necesito su absolución, no me serviria de nada , Moriré así ,coherente con la vida que siempre llevé"…

(La traduction en Espanol es de José António Caparros que gentilmente hay enviado por e-mail).

Coimbra, November 21st, 1994
The Catholic Church is resolute in converting the heretical author of A Criação do Mundo. (The Creation of the World). It would not be enough the visit of priests, friends of his or mere acquaintances. The Hierarchy understood that for an atheist of a magnitude of Torga only a bishop would suit. In addition, it sent to the hospital a prelate of that status in order to try to convert the Poet… “You know, doctor, God is our Father only one word of yours would be enough for me to give you the absolution. Think, doctor, God is our Father and only one word of yours and…” “Nonsense, sir, I do not need your absolution, not even it would be of any use to me: I will die like this ─ coherent with the life I always lead”…

(Written in English by Cristóvão de Aguiar)

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

domingo, 30 de dezembro de 2007

Este livro que idealizei, concebi e realizei, em Agosto de 2007, já está esgotado na FNAC de Coimbra. Mais? Só em 2008.

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NOT BAD!
PREÇO MÍNIMO GARANTIDO FNAC: € 9,00.
Secção Destaque: História/Crítica.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Publicação do prefácio do livro "Miguel Torga o Lavrador das Letras", por Cristóvão de Aguiar

[…] É um duro ofício, o do poeta. Começa por ser uma vocação irreprimível e acaba por ser uma penitência assumida. A fatalidade e a voluntariedade inexoravelmente conjugadas no mesmo destino carismático e aziago que só encontra sentido na fidelidade com que se cumpre […].
Miguel Torga, in Prefácio à Antologia Poética.

"O PORQUÊ DESTE LIVRO

Os laços afectivos e literários que me enleiam à obra do poeta e escritor Miguel Torga datam de há mais de quarenta anos. Na Ilha de onde zarpei em 1960 só havia lido, e mal, dois livros de sua autoria: Traço de União e Vindima. Pensei na altura que tinha sido uma estreia muito pouco auspiciosa (mais tarde corrigi a minha impressão), não pelos livros em si, mas por culpa minha. A leitura não se me revelara tão aliciante
ao ponto de me aguçar a curiosidade de ir em cata de outras obras do corpus literário do autor de Bichos. É que, nesse tempo, só lia Eça de Queirós, e de tal sorte me encontrava imbuído do seu estilo e da sua fina e elegante ironia, que se me tornava difícil ler outro escritor sem sentir um certo vazio no íntimo. Pelo pouco que havia lido, notara logo que o estilo de Miguel Torga era totalmente distinto do cinzelado nas obras do pobre homem da Póvoa de Varzim – mais enxuto, descarnado e de uma seriedade granítica. Ali não se vislumbrava pingo de ironia!
No entanto, mesmo que desejasse prosseguir na leitura do demiurgo de A Criação do Mundo, não o poderia fazer. Em nenhuma livraria /papelaria da cidade de Ponta Delgada, havia qualquer obra torguiana à venda, nem tão-pouco na biblioteca do Liceu, bem apetrechada de obras de escritores portugueses do século XIX, dos quais só nos era autorizado ler alguns, por motivos morais e outras balelas... Os que adquirira de Miguel Torga encomendara-os numa “livraria” que, por sua vez, os mandara vir, à cobrança, do Continente. A demora converteu-se em cerca de três semanas de espera…
Só em Coimbra, após a guerra colonial, e já numa idade mais amadurecida, me encafuei de tal forma na obra torguiana, que ainda hoje, passados todos estes anos, continuo a frequentá-la com uma assiduidade de devoto que ainda não esfriou a sua fé. Esta paixão deve ter tido origem não só na prosa apurada com que o escritor lavra cada página de cada livro e me fascina pela simplicidade trabalhada até à placenta da palavra, mas também no facto de a ambiência espelhada nos Contos e sobretudo em A Criação do Mundo ser idêntica ou muito semelhante ao pequeno grande mundo da Ilha onde fui nado e criado.
Fui também aquele rapaz do primeiro dia de A Criação do Mundo. Só não embarquei para o Brasil no navio Arlanza, nem sofri as agruras da emigração real, embora tivesse amargado outra(s) não menos verdadeira(s). Até me reconheci em muito do léxico transmontano contido na obra! O vocabulário micaelense tinha parecenças ou as mesmas raízes do transmontano e alentejano, o que não surpreende, porque a Ilha foi povoada por gentes das províncias portuguesas e, nesse tempo, a lonjura e a falta de comunicação entre o reino e as Ilhas ou mesmo entre as províncias do Continente conservavam, como peixe em salgadeira, o português arcaico e castiço, que já quase se perdeu nas engrenagens comunicacionais desta era cada vez mais tecnológica.
A (re) leitura dos livros de Miguel Torga invade-me de uma paz rústica, genuíno oásis neste mundo barulhento, e transmuda-se num conchego caldeado de uma ansiedade mansa – Torga é uma personalidade rebelde e inquieta e reflecte-a como poucos em toda a sua vasta obra.
Um dia, falando com o Poeta no seu consultório, no Largo da Portagem, e após lhe ter contado alguns lances da minha vida, ele, que me ouvia atentamente com seus olhos pontiagudos que me atravessavam de lado a lado, saiu-se-me com esta que me deixou aterrado:
“Escreva um livro do género de A Criação do Mundo, que pressinto que Você tem dentro de si matéria bastante para a transformar em prosa; trabalhe, só com persistência e muito suor conseguirá alguma coisa; desconfie da facilidade...”
Os vates não se enganam e, de facto, três anos mais tarde, escrevi e publiquei o primeiro volume de Raiz Comovida, a minha criação do mundo, salvaguardadas as devidas proporções com a do Mestre da prosa e da poesia que é e será sempre Miguel Torga. Soube, depois, por um amigo comum, que ele havia gostado de me ler – foi a mais importante bênção literária que alguma vez me botaram... Ia subindo ao ar como um balão!
Que teria sentido o Poeta na minha pessoa para me sugerir um empreendimento de tal responsabilidade?
Alguns poetas são verdadeiros vates e Miguel Torga era-o até à medula.
Anos mais tarde, após o desaparecimento físico do Poeta, iniciei a publicação da literatura diarística, que já conta com quatro volumes, tendo dois deles obtido prémios: a Relação de Bordo I, o da APE /CMP da Literatura Biográfica (1999) e o último, A Tabuada do Tempo – a lenta narrativa dos dias, o Prémio Miguel Torga /Cidade de Coimbra (2006).
Era natural que, no registo nem sempre diário da minha conta-corrente, falasse de Miguel Torga, da sua obra, do intercâmbio que com ele mantive durante mais de um ano. Não me vou alargar em explanações porque o leitor ao ler este livro compreenderá o que ora afirmo.
Devo ao meu filho José Manuel, incansável leitor da minha obra, a ideia e iniciativa de extrair, não só dos diários mas também do livrinho Com Paulo Quintela À Mesa da Tertúlia, todos ou quase todos os excertos em que há referências a Miguel Torga e reunir esses passos num volume. Diz-me o meu filho que sente, por vezes, que existe um diálogo em certas entradas entre os diários de ambos. Perdoo-lhe a imodéstia pela intensidade e calor que põe em tudo quanto diz respeito à obra do Pai, que quase sabe de cor. A ele devo também o trabalho paciente que despendeu, com prejuízo das suas férias, de coligir tudo quanto adiante se publica.
A Livraria Almedina, nas pessoas de Carlos Pinto e de Paula Valente, acolheram bem a ideia e vestiram-na com um corpo que ora vo-lo apresento com o mesmo receio e insegurança que me acompanham sempre que publico um livro. Com ele pretendo, à minha maneira, prestar uma modestíssima homenagem ao Poeta de Orfeu Rebelde, cujo 1.° centenário de nascimento ocorre no dia em que escrevo estas notas, neste ano da era de Jesus Cristo de 2007."

Cristóvão de Aguiar

Ilha do Pico, 12 de Agosto de 2007

P. S.
A leitura deste livro não dispensa a obra integral.

sábado, 17 de novembro de 2007

COMEÇA HOJE A PUBLICAÇÃO, NESTE BLOGUE, DO LIVRO "MIGUEL TORGA NA OBRA DE CRISTÓVÃO DE AGUIAR", DE JOSÉ MANUEL DE AGUIAR.

Coimbra, 15 de Novembro de 1973
Hoje conheci Miguel Torga em carne e osso. A meio da tarde, fui ao seu consultório de otorrino, no Largo da Portagem. Acompanharam-me o Álvaro Guerra, o António Campos e o António Arnaut. Ninguém estava doente. O assunto que nos levava ali era bem outro. De ordem político-cultural. Uma livraria que se há-de chamar “Encontro” e que se destina a actividades culturais e oposicionistas, cuja sede eu acabara de arrendar por cinco mil escudos mensais, na Rua Oliveira Matos, junto às escadas monumentais e à Associação Académica. Já há muito que ansiava por este encontro. Desde que vim para esta cidade, há mais de treze anos, que o via passar na Baixa, rumo à Coimbra Editora. Foi o primeiro grande escritor que vi de perto, na rua, entre o comum dos mortais. Fiquei impressionado. O primeiro livro que dele li, era ainda aluno do Liceu de Ponta Delgada, foi o Traço de União, exemplar que ainda conservo e me custou vinte e dois escudos e cinquenta centavos. Encomendei-o no Bureau de Turismo Terra Nostra ao senhor Silva Júnior. Para ser mais exacto, dirigi-me lá com o Viriato Madeira, que, por sua vez, pediu que lhe mandassem vir o romance Vindima. Três semanas mais tarde, chegaram os livros do Continente. Cada um leu o seu e depois trocámos os exemplares. Nessa altura, tanto eu como o Viriato líamos e relíamos Eça de Queirós, de maneira que nos fez bem o salto para uma literatura mais telúrica, um estilo mais enxuto, uma prosa precisa e muito pouco esparramada. Ficámos por aí em matéria de literatura torguiana. Só a partir de 1967, no regresso da guerra colonial, é que eu viria a entrar na obra de Torga. E nela ficar até hoje, encantado.
Não deixa de ser curioso o motivo por que me aproximei da obra desse grande escritor transmontano. As tertúlias que ao tempo assiduamente frequentava não se perdiam de amores pelo poeta de Orfeu Rebelde. Dele se dizia cobras e lagartos e contavam-se histórias em que ele saía sempre mal ferido. De tanto lhe baterem, tive vontade de lhe visitar a obra. Comecei pel’A Criação do Mundo. Depois foi a vez do Diário, e assim por diante. Deslumbrei-me. Fiquei visita íntima dos seus livros, que me não canso de reler. Hoje conheci-o pessoalmente. Chegou ao consultório um pouco mais tarde do que a hora combinada. Pediu desculpas e justificou o atraso com o facto de a sua perdigueira ter acabado de parir cinco cachorros e ele ter ficado a assisti-la. E contou com tal vivacidade e colorido os pormenores do parto, que parecia estarmos a ouvir ler um conto inédito de Bichos pela boca do próprio autor… Falou depois do Quinto Dia de A Criação do Mundo, anunciado há mais de trinta anos e ainda em original, que levantou da secretária apinhada para nos mostrar: “Já o reescrevi mais de trinta vezes”, disse, “e ainda não está como quero, sou muito lento na escrita”. Enclausurado no meu silêncio, bebia-lhe as palavras, gota a gota. A dada altura, olha para o relógio e exclama, aflito: “O comboio já chegou e eu que me tinha esquecido de ir buscar minha Mulher, que vem de Lisboa”. Despiu a bata, disse-nos que esperássemos um pouco, enquanto ia à Estação Nova, ali a dois passos. Saiu a correr como se fosse um adolescente que acaba de cometer uma falta e quer repará-la. Mal saiu do consultório, aproximei-me da secretária e folheei o original do Quinto Dia. Tive a mesma sensação que um dia, menino da catequese, experimentei, ao pegar no cálix das consagrações. Um dos meus companheiros chamou-me logo a atenção – ih, estás bem amanhado! – para o acto profanador que acabara de praticar, ao tocar num objecto sagrado, privilégio que pertencia aos iniciados e eleitos…
(Cristóvão de Aguiar)

terça-feira, 6 de novembro de 2007

O PORQUÊ DESTE TRABALHO "MIGUEL TORGA NA OBRA DE CRISTÓVÃO DE AGUIAR", POR LAPA

Apesar de todos os factos que mencionei, no post anterior, entendo como é patente no trabalho que apresento neste blogue a distinção entre o cidadão em questão e a sua obra, que é de indiscutível mérito.
Assim, ao idealizar, realizar, truncar e fazer, enfim, o livro de Miguel Torga na obra de Cristóvão de Aguiar, foi com o intuito de dar a conhecer Miguel Torga, através do testemunho de Cristóvão de Aguiar, que considero importante e, essencialmente, com ele dar a conhecer a escrita de Cristóvão de Aguiar, apresentada de forma objectiva, sem os inúmeros devaneios que imprime nas suas obras, destinadas não sei a que entidade mítica e que levam os leitores menos prevenidos a abandonar a sua leitura porque se torna muito densa e desfasada da azáfama dos nossos tempos.
Cortei, trunquei, simplifiquei, separei o trigo do joio. Com o objectivo, agora confesso-o, de fazer um livro pequeno 80 páginas, simples, que se leia, acessível a todos, desde o estudante do ensino secundário ao professor universitário e também de, através dele e do seu tema, internacionalizar a obra de Cristóvão de Aguiar. Um pequeno livro, didáctico, simples mas substancial, sobre Miguel Torga, internacionalmente conhecido e traduzido, (Já recebi convites para traduzir o livro). Em simultâneo, estaria sempre a difundir a cultura e língua portuguesas, através destes dois grandes escritores de pendor universal.
Agora a parte mundana, as vendas. Um livro desta temática teria como objectivo mínimo de vendas a irradiação de um livro do Torga. Pelo menos 50.000 exemplares.
E seria o primeiro livro com escritos de Cristóvão de Aguiar a ser traduzido.
Este trabalho de internacionalização da obra de Cristóvão de Aguiar seria complementado como está a ser com este blogue que tem um arquivo temático digitalizado já substancial onde se encontram os principais feitos deste escritor e que valem por si só.
É evidente, que com este meu trabalho empenhado Cristóvão de Aguiar só beneficiaria ao alargar a irradiação da sua obra, e nunca se comprometeria com o eventual insucesso da minha aposta.
Se fosse bem-sucedido neste trabalho, ganharia Portugal, a Língua Portuguesa, os escritores em causa e eu a justa retribuição do mérito da minha dedicação, ou a condenação caso fosse mal sucedido, mas Cristóvão de Aguiar seria sempre beneficiado ou, pelo menos, nunca sairia prejudicado.

Lamentavelmente,
lapa

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006