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domingo, 13 de junho de 2010

Um Livro por Semana LXXVIII. Relação de bordo, de Cristóvão de Aguiar. Faial Online, por Victor Rui Dores.


Um Livro por Semana LXXVIII

13 de Junho de 2010

Relação de bordo, de Cristóvão de Aguiar

ou a memória vasculhada
“Viajo por dentro de mim e chego sempre à Ilha onde Ela ficou.”

Homem inquieto e irrequieto, escritor telúrico e intempestivo, observador infatigável e dotado de discernimento crítico, Cristóvão de Aguiar escreve com os olhos da memória.

A sua trilogia romanesca Raiz Comovida – A semente e a seiva (1978), Vindima de Fogo (1979) e O fruto e o sonho (1981) – é a prova disso mesmo: ali se dá conta da memória da infância açoriana, no microcosmo da Tronqueira, com gente de grande riqueza psicológica e funda expressão humana, de que são exemplos a avó Luzia, o avô José dos Reis, o Ti José Pascoal entre muitas outras personagens que falam com sotaque micaelense, sendo o(s) livro(s) servido(s) por uma escrita que mergulha fundo no húmus do discurso popular e vernáculo. (Recorde-se a propósito que, em 1987, Raiz Comovida foi publicado pela Editorial Caminho, em edição revista e remodelada num só volume).

Todas as obras de Cristóvão de Aguiar são atravessadas pela memória do vivido e do sentido. Há efectivamente uma memória que escreve este autor, quer na sua poesia – Mãos vazias (1965), O Pão da palavra (1977), Sonetos de Amor Ilhéu (1992) –, quer na ficção narrativa, sendo nesta última que este escritor tem dado melhor conta de si.

Cristóvão de Aguiar é, acima de tudo, um romancista. Para além da já referida Raiz Comovida (sem dúvida a sua obra emblemática), escreveu outros livros, cujos géneros literários ele vai classificando de forma criativa e da seguinte maneira: Ciclone de Setembro (1985), “romance ou o que lhe queiram chamar”; Passageiro em trânsito (edições de 1988 e 1994), “novela em espiral ou o romance de um ponto a que se vai acrescentando sempre mais um conto”; O braço tatuado (1990), “narrativa militar aplicada”; Um grito em chamas (1995), “polifonia romanesca”; e, agora, Relação de bordo (1999), “diário ou nem tanto ou talvez muito mais”.
Há três grandes vectores que atravessam toda a obra de Cristóvão de Aguiar: a memória insular, a emigração e a guerra colonial.

Para melhor conhecer este autor e a sua escrita, convirá aqui avançar com alguns dados biográficos.

Luís Cristóvão Dias de Aguiar nasceu no dia 8 de Setembro de 1940, na freguesia do Pico da Pedra, ilha de S. Miguel, e aí viveu até aos 20 anos de idade. Cresceu num ambiente familiar completo de avós, tios, primos e vizinhos. Deles ouviu histórias que lhe regalavam a imaginação nos serões de Inverno. A oralidade exerceu sobre ele uma influência decisiva: neto e sobrinho de poetas repentistas, o avô era tanoeiro, o pai serralheiro e a mãe era dada às poesias – com todo este “pecúlio afectivo e humano” estava destinado a ser escritor.

Concluídos os estudos liceais em Ponta Delgada, no Liceu Antero de Quental (onde foi aluno de Armando Côrtes-Rodrigues e Ruy Galvão de Carvalho), Cristóvão de Aguiar embarcou para o continente, em Outubro de 1960, “com duas malas cheias de roupa e de muitas ilusões”, conforme nos relata em Relação de bordo.
“A ilha foi comigo e comigo permaneceu até hoje, como companheira fiel. Foi então que a compreendi! A distância traz-nos a nitidez das coisas e das pessoas”. (p.

Estudante em Coimbra, sofre “fortes abalos sísmicos afectivos”, anda transviado pelos caminhos da vida e da literatura e vive a agitação cultural que eclode nos anos 60. Interrompe os estudos por causa da tropa. Faz a recruta em Mafra e, depois, parte para a Guiné, onde viverá, durante quase dois anos, a “patriótica estopada”, isto é, a dolorosa experiência da Guerra Colonial. Dessa guerra e dos retroactivos da sua memória, dão conta os livros Ciclone de Setembro e O braço tatuado.

Regressado da Guiné, fixa residência em Coimbra, em cuja Faculdade de Letras conclui a licenciatura em Germânicas, desenvolvendo depois actividade como professor e tradutor. Pai de três filhos, entrega-se à “lavoura das palavras” e vive a dúvida e a inquietação da escrita. Escreve ele na sua Relação de bordo:
“E quanto mais leio o que escrevi, mais insegurança sinto”. (p. )
Em 1978 dá à estampa Raiz Comovida, que viria a receber, nesse mesmo ano, o Prémio Ricardo Malheiros e a merecer, três anos mais tarde, uma crítica elogiosa do temível e temido João Gaspar Simões, no jornal “Diário de Notícias” (2 de Abril de 1981), que ficou deslumbrado com o “pitoresco léxico” da obra.

Aquele exigente crítico, referindo-se à originalidade linguística e à técnica narrativa de Raiz Comovida, nomeadamente à assimilação de uma linguagem estritamente popular, ambientada no espaço geo-social micaelense, escreve que Cristóvão de Aguiar “é ágil e forte na linguagem” e considera-o “mestre na invenção de ambientes”.
Outros reputados críticos e escritores acolhem Raiz Comovida da melhor forma, entre os quais se destaca Urbano Tavares Rodrigues, Fernando Namora, José Manuel Mendes, João de Melo e Vasco Pereira da Costa.
É chegada agora a altura de lançar alguns olhares ao livro Relação de bordo (Campo das Letras, 1999), dário que Cristóvão de Aguiar escreveu entre os anos de 1964 e 1988. O autor deixa aqui a marca do seu indiscutível talento literário, demonstrando (à semelhança de Samuel Pepys, Jonathan Swift, William Byrd, ou, no caso português, de um Miguel Torga, ou de um Fernando Aires) que a escrita diarística não é um género menor.
Relação de bordo é uma obra importante, por três razões maiores. Em primeiro lugar, porque nos informa sobre as ideias, as opiniões e as reacções de Cristóvão de Aguiar sobre as coisas, os acontecimentos e as pessoas de um tempo e de um lugar. Em segundo lugar, porque espalha alguma luz sobre aspectos relacionados com alguns eventos que marcaram este país, contribuindo, assim, para que fiquemos a fazer uma ideia mais pormenorizada e, por isso mesmo, mais rica e mais perfeita do período em apreço. Em terceiro lugar, porque nos pôe em contacto com o estilo do autor, levando-nos a surpreendê-lo em estado puro e nascente, tal e qual ele surge no movimento despreocupado de quem não pensa na futura publicação.

Por conseguinte, este livro vem contribuir para que o nosso conhecimento de Cristóvão de Aguiar – do homem, do seu estilo e de uma época específica – seja mais amplo e mais completo.

De resto, o diário é um dos meios privilegiados de revelação das personalidades. A obra destinada à publicação e à publicidade rodeia-se de precauções para que não se corra o risco de se dizer mais do que se deseja. No diário (registo íntimo de pensamentos, atitudes, observações e experiências do escritor) é-se mais verdadeiro, no sentido de que se é mais natural e mais sincero.

Em Relação de bordo, autor e narrador são entidades coincidentes. Cristóvão de Aguiar deixa neste diário olhares inesperados e originais sobre os homens, as coisas e os acontecimentos, fazendo um ajuste de contas consigo próprio (por vezes o eu do texto dá lugar a um tu judicioso e imperativo – a voz da sua consciência ?), com os outros e com o mundo. “Escrever é escrever-se”, disse Julia Kristeva. O escritor fala abundantemente de si e dos seus familiares: os que com ele vivem, os que ficaram na Ilha (a qual se lhe “reverteu em pedra alojada na vesícula”) e os que se encontram emigrados.

Aliás, a (numerosa) família de Cristóvão Aguiar possui uma “tradição embarcadiça”, movimentando-se por espaços dos Açores, do Continente português e das Américas. Ao lermos este diário, estamos condenados a entrar na intimidade não só do autor, mas também dos seus familiares – de tal maneira eles se expôem e nos são expostos. Isto faz com que o autor circule num apetecível triângulo amoroso: a Ilha, Coimbra e a América. Vivendo na sua encantada e romântica Coimbra, ele recorda a Ilha namorada (e a “namorada da Ilha”) e escuta as vozes da avó Luz, do avô Anselmo, da mãe (que lhe escreve bonitas cartas) do pai (com quem mantém uma relação nada pacífica), do irmão Francisco e de muitas tias e primas. No dia 9 de Julho de 1979, referindo-se á sua herança sócio-cultural, escreve:

“O romance Raiz Comovida (…) não nasceu do pé para a mão: teve uma longa gestação, praticamente desde que saí da Ilha e comecei a compreendê-la com mais profundidade. Não é em vão que se nasce numa Ilha e se vive nela até aos vinte anos, para depois a deixar para sempre, na pele de um emigrante que sou, filho e neto de embarcadiços. Entre a parca bagagem de estudante, vinha também a minha Ilha, que, a pouco e pouco, se foi entornando para dentro de mim, transfigurando-se. Tinha sido nela que dera os primeiros passos, com muitas topadas (no verdadeiro sentido do termo), fora nela que aprendera, por dentro, o gosto amargo dos dias sujeitos e sem futuro, onde apenas floria a flor da esperança numa mítica América, paraíso atado na bolsa da imaginação e agarrado ao desejo, sempre à mão para qualquer eventualidade.

No início da década de sessenta, Coimbra teve em mim o efeito de um tremor de terra dos mais elevados da escala de Richter. Foi um deslumbramento e uma bebedeira constantes, que me deixaram os miolos em calda de pimenta. O ilhéu-bicho-de-conta que era (e ainda sou) passou num repente a viver num mundo explosivo de sensações novas, que, de tão intensas e variadas, mal conseguiam assento no rústico universo que me deixaram em herança” (… p. )

Relação de bordo vale também pelos ecos que nos dá da génese dos livros do seu autor, à medida que vão sendo escritos. Ei-lo a questionar o seu próprio acto de escrita (que lhe causa angústia), a registar o “feed back” dos seus romances junto dos críticos e dos leitores. De resto, ele deixa-nos, neste diário, um perfil que se casa perfeitamente com o que se surpreende nos seus romances.

Por outro lado, este livro é um animado filme mostrando cenas da vida vivida entre 1964 e 1988. Surpreendemos o autor (com o seu “feitio eriçado”) enredado em frustrações, amores mal sucedidos e súbitas paixões impossíveis… Aluno da Faculdade de Letras de Coimbra, vive atormentado com os estudos e alimenta a vaga ideia de vir a ser escritor. O seu primeiro livro de poesia, Mãos Vazias, não é bem recebido pela crítica… A tropa chama-o. Feita a recruta, parte para a Guiné. Temendo a morte em combate, pede à mulher que venha ter com ele – para lhe fazer um filho e, assim, deixar descendência… E é na qualidade de combatente da Guerra Colonial que escreve páginas magistrais dando conta dos angustiados e angustiantes dias de guerra:
“… E eis-me aqui, diante de mim, nu, andrajoso, suplicante, a alma enregelada e crucificada na cruz destes dias sem nome. Nos olhos, uma fornalha de fúria e uma fome antiga não sei em que víscera, essa fome de séculos que é já grito milenário de todas as bocas em mim. Eis-me, pois, aqui, disparando bombas de palavras ao concentrado silêncio da noite. Eis-me aqui, tentando pescar estrelas no poço aberto do firmamento. Eis-me aqui, indefeso e nu, interrogando não sei que morto que vive numa parte de mim… Em frente de mim, nu e com o frio de todos os pólos, interrogo-me como se fosse réu e juiz ao mesmo tempo. E as palavras que ouço vêm da minha voz antiga, saída do mais fundo de mim, carregada de pedras e de cardos, que grita e se contorce, morre e ressuscita, e continuo, indefeso e nu, aqui em frente de mim…” (p. )

Este autor é mais prosador que poeta. No entanto, em Relação de bordo, exprime-se, aqui e ali, em poesia: de realçar os admiráveis sonetos O visionário e Alma dolente, bem como esse notável poema que dá pelo nome de Sentimento de um ilhéu encalhado na praia.

Numa prosa nervosa e viva, Cristóvão de Aguiar comenta livremente e sem rebuços acontecimentos que marcaram os anos 60: dá conta da morte de Nikita Krutschov, manifesta-se contra as guerras do Vietname e do Ultramar; testemunha o impacto causado pela publicação do livro Praça da Canção, de Manuel Alegre; critica a apreensão, levada a cabo pela PIDE, da Antologia da Poesia Erótica e Satírica, de Natália Correia; entusiasma-se com o primeiro homem a caminhar sobre a lua; assiste, com sentido crítico e irónico, à queda de Salazar; desconfia de Marcelo Caetano; denuncia o regime, os vícios e os ridículos da sociedade.
Depois vem o 25 de Abril de 1974, em que a revolução e a poesia andaram de mãos dadas na rua… Cristóvão de Aguiar descreve, com grande perspicácia, o impacto dessa revolução por todo o país, o derrube do antigo regime, a rendição da PIDE, os primeiros vagidos da democracia, a celebração do 1º de Maio…Atento e vigilante, reage criticamente à imprensa reaccionária (a do Continente, a das ilhas e a da diáspora), denuncia os movimentos separatistas dos Açores e da Madeira e lança golpes certeiros à “insular bazófia”… Aos microfones do Emissor Regional de Coimbra, vai relatando cenas da vida social, política e familiar. Ainda e sempre, vai reagindo, pela escrita, a um quotidiano cheio de “tão belas contradições”…

Regressa frequentemente à ilha (há em Cristóvão de Aguiar um permanente desejo de a ela voltar), onde reencontra as raizes e revisita toda a geografia sentimental e humana ligada à memória da infância, seu paraíso perdido. Impressiona-se com a riqueza vocabular das suas gentes e regista: alpardusco (lusco-fusco), garetos (biscates), batacum (escorregadela), fiminha (fêmea), etc. Delicia-se a ouvir o Ti José da Costa a dizer, em Coimbra: “Estou-me consolando a apreciar lindeza tamanha”.
O escritor efectua várias viagens aos Estados Unidos da América e fica impressionado com as contradições americanas. Ali vai encontrar “a mais requintada libertinagem” a par do “mais conservador puritanismo”. Desperta-o o “imigrês” e a aculturação dos emigrantes (tema que viria a desenvolver em Passageiro em trânsito). E é assaltado por preocupações de cariz universal.
“E se mudássemos de planeta ? O nosso já deu o que tinha a dar” (p. )
Neste autor está vivo o interesse vital da experiência humana, tanto como o interesse intelectual pelas criações do espírito.

Prossigamos a nossa viagem pelo diário. Cristóvão de Aguiar é agora pai de três filhos (José Manuel, Artur João e Luís Francisco), marido afectuoso e cidadão responsável. Fala apaixonadamente do seu grande mestre Paulo Quintela, com quem privou de perto e de quem nos traça um retrato admirável. Aliás, convirá recordar que Cristóvão de Aguiar é autor de um trabalho (de “nótulas biográficas”) de referência intitulado Com Paulo Quintela à Mesa da Tertúlia (1986).

Recorda também outras grandes referências na sua vida: Miguel Torga, Joaquim Namorado, Fernando Namora, Luís Albuquerque e Mário Braga. Com igual paixão fala dos seus amigos do Liceu e dos seus “companheiros de República e da Guerra”: Antero Dias, Medeiros Ferreira, Viriato Madeira, Jorge Ormonde de Aguiar, Weber Mendonça, José Noronha Bretão (de quem nos dá inesquecível testemunho), entre outros. E dá conta de pessoas com quem convive(u) e que se lhe atravessaram na vida: Vitorino Nemésio, Aurélio Quintanilha, Natália Correia, Fernando Assis Pacheco, Baptista Bastos, Almeida Pavão, Dias de Melo, Manuel Ferreira, Pedro da Silveira, Rui Alarcão, Jaime Gralheiro, Louzã Henriques, Linhares Furtado, Fernandes Martins, Carlos Moreira, Zeferino Coelho, Vital Ferrão, Teixeira Ribeiro, Álamo Oliveira, João Afonso, João de Melo, Luís Fagundes Duarte, Marcolino Candeias, Vasco Pereira da Costa, Onésimo Teotónio de Almeida, Duarte e Ciríaco (o duo que popularizou o poema de Cristóvão de Aguiar intitulado Naufrágio, escrito a partir da melodia da canção tradicional terceirense Charamba), etc.
Enfim, ao longo desta Relação de bordo – “o caderno das minhas contas correntes” –, Cristóvão de Aguiar vai (d)escrevendo acontecimentos que marcaram uma época (a par do interesse literário, há, nesta obra, uma importância sociológica que convirá não perder de vista). Por outro lado, através de uma escrita acutilante, contemplativa, impressionista, terna e rebarbativa, o autor vai exercendo alguma catarse relativamente às minudências da vida: as arrelias domésticas, as preocupações quotidianas, familiares e sociais e as muitas dúvidas que o assaltam. E tudo isto nos é dado de forma sincera e sentida, com mágoa e alegria, com amargura e esperança. Mas sempre com uma visão crítica e muito lúcida.
Em Relação de bordo, Cristóvão de Aguiar escreve a falar. Com grande poder evocativo e boa capacidade expressiva. E lançando sobre as coisas do mundo um olhar profundamente humano e universal, ele que encontrou a salvação nas palavras e através da escrita.

Victor Rui Dores

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Blogues e livros, in blogue "Mau Tempo no Jornal", por Pedro Barros Costa.


Quando a escrita diarística se publicava em livro e não na internet, Cristóvão de Aguiar deu à estampa três volumes de Relação de Bordo — “diário ou nem tanto ou talvez muito mais”. Leitura de férias natalícias, com segundo volume adquirido na feira do livro da Tabacaria Açoriana, em Ponta Delgada. Prosa escorreita, de trechos sintéticos, pelos quais perpassa a trilogia geográfica Ilha/Continente/América, ao longo de três décadas de divisão existencial do insular. Interessante, também, a acesa polémica sobre a literatura de marca açoriana entre o autor e o crítico Vamberto Freitas. Hoje, os blogues, registos diários on-line, resultam em livros; talvez num amanhã não muito distante estes livros, registos diários em papel, resultem em blogues.

Mau Tempo no Jornal , 05 de Janeiro de 2010

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Bristol Rhode Island. O Senhor Mestre Artur, Pai de Cristóvão de Aguiar, num cemitério de Bristol R. I.


UM "ATÉ LOGO" COALHADO DE ETERNIDADE

Bristol Rhode Island, 26 de Janeiro de 1992.
De novo aqui me encontro, meu Pai, cada vez mais acolhido ao calor que a tua forja foi em mim demorando e estanciando. Nenhum frio de neve semelhante a este, que sopra de um quadrante de outro mundo, ou mesmo mais intenso, estaria apto a fazê-lo esmorecer e amuar em morno e tranquilo rescaldo. Disseste até logo e presto voltaste atrás, como quem se esquece da boina, e acrescentaste: “Se Deus quiser, Conceição”... Estarias porventura pressagiando fumo de tragédia ou cheiro dela erguendo-se do ventre da manhã de horas minúsculas, irrevogáveis, integralmente nuas e tuas, abastecidas daquela solidão que precede a planura da ausência? E Ele, meu Pai, não quis. Tu, que havia pouco, a Ele te encomendaras em íntimo e recolhido diálogo contigo, como o fazias todas as manhãs para aquecê-las e oleá-las de princípio! Não quis. Bem gostava eu agora de deslindar tão misteriosos desígnios. Aqui, a teus pés, no teu leito de terra, suavemente reclinado para o Sol-poente, coberto de um lençol de relva, ainda crestada destes frios desalmados da Nova Inglaterra. Não consigo. Sempre pediste a tua morte assim subitânea, um aniquilamento à tua altura... E ela foi-te concedida. E assim abalaste da vida que te magoou desde a madrugada dos anos até ao crepúsculo. Zarpaste sem incomodar ninguém. Sem tocares com tuas mãos sábias no fantasma sempre tão contigo de poderes um dia vir a ser despejado na lixeira humana de uma qualquer instituição eufeministicamente denominada lar de terceira idade... Não lhe tocaste. Mas constituiu a tua sombra nos últimos anos que viveste no sobressalto dessa suposição. Não consigo deslindar, Pai. São tão misteriosos os desígnios! E por que disseste até logo e ainda não regressaste desse poente para onde te sumiste, vou continuar esperando dentro em mim, aqui sentado nesta banqueta de pedra despolida que a vida me arrumou. Foste sempre um homem de palavra. Às vezes mais rija que o aço da ferramenta que temperavas. Outras, terna como criança embebida a fabricar seu próprio brinquedo. E tu construíste tanto, meu Pai. Desde a manhã dos tenros anos até ao alpardusco da existência! Homem de palavra. Não posso, nem razões me assistem para pôr em dúvida a tua derradeira frase "até logo". E vieste atrás e ajuntaste "se Deus quiser". Ainda conservo, por isso, o fio da lamparina aceso. Um pavio entrançado de muitos fios de esperança. a que nunca soube morrer. Sei de um saber que não se pode explicar, mas de fonte segura - a que jorra do coração-, sei que, onde quer que estejas, Pai, ou a vir do nascente ou enfronhado no ocaso, tenho a certeza que me vais ler, ou me estás já escutando enquanto, ajeito estas palavras numa bigorna, quem sabe se uma extensão da tua, todavia menos concreta, mas igualmente suada, que isto de querer ser serralheiro da palavra, como foste do ferro e do aço, não é ofício a que qualquer um se possa alcandorar, pelo menos com a perfeição que atingiste no teu. Empresta-me as tuas mãos, Pai, e tudo se tornará mais claro deste lado da vida em que me encontro. Faz hoje exactamente um ano. Saíste de casa. Até logo. E vieste atrás para emendar a secura da frase. Se Deus quiser. Não quis. Como o tempo corre sem freio, esse cavalo sem tino e de tiro puxando o arado que nos vai lavrando a leira dos sonhos com relhas de alguma ilusão, necessária. Diferente daquelas que forjaste para charruas verdadeiras de desventrar a terra, desvendando-lhe os segredos e a intimidade. Já não sentes o tempo, Pai! Despiste-te do casacão do tempo, que, por vezes, incomoda. Estás agora nu dentro de outras horas que não pesam e são leves como a eternidade. E aqui estou, meu Pai, ainda vestido do meu corpo e do tempo que o vai arruinando. No Verão passado, plantei-te flores exactamente por cima da tua cabeça. E elas medraram e floriram. Olho o céu e vejo garças. Não sei se as mesmas que te acompanharam há um ano à tua mansão ungida de silêncio e de paz. As garças não te esqueceram. Ias todos os dias alimentá-las ao Colt State Park. Conheciam-te já. Não são ingratas como certos filhos dos homens. Não te esqueceram. E acompanharam-te. Emitiram seus pios de pesar.
Trago-te este braçado de lágrimas para regar a lembrança que de ti guardo.
Até sempre, Pai!

Cristóvão de Aguiar

("O Serralheiro da Escrita", in Relação de Bordo II, Campo das Letras, 2000, pp. 188, 189 e 190, et in Emigração e Outros Temas Ilhéus, in fine. Óleo sobre tela, por Bárbara Borges)

Segundo o Prof. Doutor José Carlos Seabra Pereira, professor de Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, este é um dos melhores textos da Literatura Portuguesa sobre o Pai.

A eterna saudade do Seu neto José Manuel.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Professor Aníbal Pinto de Castro: Apreciação genérica da obra e razões do seu apreço por Cristóvão de Aguiar - 2000

(…)Hoje, porém, aqui estou. Não para lhe escrever o estudo crítico que, como escritor, Você de há muito merece. Não lhe escondo até que, se o tempo a isso me der talho, muito gostarei de fazer um dia. Desta feita quero apenas, de uma forma afectuosamente simples, dizer-lhe um pouco das razões do meu apreço por si e pela sua obra, tal como tenho vindo a conhecer um e outra, através dos três volumes da Raiz Comovida, e das páginas do Ciclone de Setembro, do Passageiro em Trânsito ou da Relação de Bordo, entre outros.
O que mais profundamente me impressiona na sua escrita é a riquíssima carga de humanidade que simultaneamente lhe serve de “raiz”, lhe vivifica a alma e lhe marca o estilo. Por isso a sua ficção está tão visceralmente ligada aos lugares onde nasceu, cresceu e viveu, e às pessoas que, sendo parte essencial desses lugares, deles conservam marcas tão fundas mesmo quando, no seu discurso, se volvem personagens. E daí decorrem, afinal, as características que melhor o definem como escritor.
Em primeiro lugar, a sua autenticidade, que é, acima de tudo, fidelidade às suas raízes, teimosa e indelevelmente arreigadas na lava da sua Ilha. Não é por acaso que este conceito e a palavra que o traduz lhe saltam com tanta frequência à mente no acto de escrita e lhe servem de título a uma assaz longa série de volumes! No seu mundo afectivo (do qual decorrem, afinal, as suas opções essenciais como escritor) a Ilha transforma-se, tanto pelo poder encantatório da saudade como por um sentido artifício metafórico e metonímico, numa envolvência generosa e plena, que é ao mesmo tempo mãe placentária, mulher de serena beleza, amante fogosa e sempre dolorosa nostalgia, mesmo quando nela reentra por períodos mais ou menos demorados de reencontro ou de evocação. É assim que, quando, num passo da Relação de Bordo escrito em Mafra a 3 de Fevereiro de 1964, escreve “Viajo por dentro de mim e chego sempre à Ilha”, não está apenas a referir-se ao encontro imaginário com um amor ausente no tempo que por lá deixou perdido. Está sobretudo a procurar dentro de si (e a encontrar!) essa Ilha feita de lava, de mistério e de saudade, sem se dar talvez conta de que, estando dentro de si, ela o envolve e o enleia, não para o sufocar, mas para o fazer vibrar de emoções sempre novas e lhe revelar, dentro e fora de si, dentro e fora dela, o melhor do sentir poético que, por uma força quase invencível que dela lhe vem, Você exprime na sua prosa, bem melhor (permita-me a franqueza) do que nos seus versos.
É por essa mesma razão que, sendo um errante passageiro em trânsito, Você consegue o milagre de conciliar esse apego profundo a essa sua Ilha ancestral com a entrega, sempre apaixonada, às novas ilhas de um seu arquipélago imaginário, em cujo mapa se vieram alinhando outros lugares, marcados pelo bom e mau que a Vida sempre traz consigo, sejam os eldorados da emigração açoriana em terras americanas, sejam (mirabile dictu!) as dores físicas e morais da lancinante experiência da guerra da Guiné, antecedidas pelo inferno tantas vezes desumano de Mafra, seja sobretudo o encantamento irresistível desta Coimbra, que tanto o soube cativar desde o tempo das suas ilusões de menino e moço! Compreende-se deste modo como, em si, a espontânea generosidade com que adere às causas que, em certos momentos da vida lhe parecem justas, se concilia com uma nobre capacidade de tolerância, só de raro em raro perturbada, e com um sentido quase bravio de independência de espírito e de opinião que o fazem respeitar os outros ou reconhecer, com exemplar humildade, que o seu caminho não era exactamente por onde, em determinadas circunstâncias, julgou que necessariamente poderia ou teria de passar.
Depois, gostaria de sublinhar a intrínseca simbiose que estabelece entre o memorialismo e a ficção. Como em todos quantos se abalançam à arte difícil da escrita diarística, o meu Amigo vê a realidade vivida por si com as lentes de uma agudíssima sensibilidade poética de dimensão universal. Não admira, pois, que, quando narra o seu dia-a-dia, nos dê dele um ou mais quadros que, sem faltar à verdade, adquirem uma dimensão ficcional tão própria e acentuada que os projecta numa polifonia já de pendor flagrantemente lírico; e que, por outro lado, a sua ficção se mantenha tão presa ao seu quotidiano referencial, conferindo-lhe tons de verdade que mantêm os problemas humanos sofridos pelas personagens ao alcance imediato dos seus leitores e da vida real que estes também defrontaram ou defrontam. Lembra-me Camilo, em cuja ficção personagens, criador e os virtuais leitores tão facilmente conviviam que pareciam comparsas de um mesmo drama em cuja representação se acotovelassem sobre as tábuas do imenso palco do grande teatro do Mundo!
E é ainda a essa simbiose de ancestralidade, de experiência de vida e de cultura literária que Você vai buscar o melhor do seu estilo. O linguajar da fala micaelense, bebido no leite de sua Mãe e no rigor honrado de seu Pai, e do qual Você (Deus louvado!) conserva o feliz sotaque, dá-lhe belíssimas expressões que conferem ao seu discurso, em cuja correcção se sente ainda a excelência dos Professores de Português que teve e a lição das muitas e boas leituras que ao longo da vida fez, aquela mesma autenticidade feita de saber, de sentir e de exprimir que eu acima sublinhava. Respigo, quase ao acaso, alguns exemplos das páginas da Relação de Bordo. Veja como ficou “néscio e sucinto”, quando a Contuboel chegou o telegrama anunciando o nascimento do seu primeiro filho (p. 67); ou aquele “lirismo de confeitaria [que] atinge o negativo no termómetro social” que tanto o irritou na véspera de um Natal passado em Coimbra (p. 104); ou aquele “desistir de ter futuro” com que noticia a morte de Ary dos Santos (p. 310); ou aquela sensação de que “era a cabeça do mundo que doía em si”, no fim de uma tarde passada numa esquadra de polícia (p. 331); ou o desejo que sentiu um dia em Bristol, de que o levassem imediatamente a casa de seus Pais a fim de reunir, um por um, os cacos em que se fragmentara (p. 384) – cá temos um sinal bem claro daquela sua fragmentação de ilhéu ancorado por vários cantos do mundo! –; ou o adro azul da sua infância, de que fala na p. 408...
Não deixa de ser prova bem evidente dessa sua capacidade de metaforizar a vida e a linguagem que a traduz, mesmo nos seus momentos mais difíceis, este passo, datado de Coimbra, a 3 de Maio de 1984, em que, para exprimir a dificuldade de retomar a escrita, evoca o salto para o galho que, como todos os que por lá passámos, tinha sido obrigado a dar quase 20 anos antes, na Tapada de Mafra: “O galho da escrita está um pouco mais afastado da plataforma onde se encontram as intenções. Nele entram em jogo outros músculos e outras mãos” (p. 344).
Recordarei sempre, como momentos de magnífico recorte poético e estilístico a página datada de Leiria, a 16 de Dezembro de 1970, em que, perante um menino pobre que brincava na rua, se aproximou de Jesus, porque a Ele o compara o menino, mas também porque, descido de novo à realidade, não encontrou nenhum José de Arimateia que se aproximasse da sua cruz... Ou aquela outra a ressumar um doloroso sentimento de abandono, mas de tão feliz riqueza metafórica, quando em Coimbra, a 24 de Agosto de 1988 (p. 412), o telefone emudeceu, o carteiro não tocou e, sobretudo, a esperança não esperneou!
Meu caro Cristóvão, tenho de parar, sob pena de transformar a expectativa da carta que lhe prometi, num enfadonho arrazoado de análise de textos que corre sério risco de lhe causar pesadelos. É que eu, como Professor, pergunto muitas vezes a mim próprio o que diriam os autores cujos textos ensinamos, se pudessem ver os coelhos críticos que lhes iramos das cartolas que escreveram... Graças a Deus que o meu Amigo está vivo e são para me poder desmentir e pôr na ordem, se vir que desatremei ou que me atrevi a vender a suculenta lebre dos seus livros pelo esfolado e mal cozinhado gato vadio da minha prosa arvorada em... crítica! Creia, no entanto, que, justo ou injusto, certo ou errado, quanto aqui lhe escrevo é sincero, porque nasce do cordial apreço que lhe dedica o seu colega, amigo e fiel leitor muito agradecido.

In prefácio do Relação de Bordo II e Homenagem a Cristóvão de Aguiar

sábado, 11 de agosto de 2007

Apresentação de "Relação de Bordo II" pelo Professor Aníbal Pinto de Castro


" Cristóvão de Aguiar é um dos expoentes máximos da Literatura Portuguesa"


Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006