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quarta-feira, 26 de setembro de 2012

SPORTING: OS CINCO VIOLINOS, IN CICLONE DE SETEMBRO de CRISTÓVÃO DE AGUIAR, página 102. 1985. Editorial Caminho.

[…] “És do Sporting ou do Benfica?
                Fiquei meio embatucado, mas, ao verificar que ele esperava com sofreguidão a minha resposta, tornei-me adepto dos leões mais para lhe agradar que por convicção. Mais radiante não poderia ter ficado. A minha adesão, que com o tempo se tornou em lagartite aguda, vinha acrescentar  a família leonina da pensão, já de si a mais numerosa e aguerrida, mas sem fanatismos…
                Assim investido do meu novo estatuto de sportinguista, escutei a segunda parte do relato do Freitas com outro propósito e outra fé. Nunca os cinco violinos tocaram tão maravilhosamente a partitura da sinfonia que se desenvolvia na dianteira como naquela tarde de domingo, decerto em homenagem ao novel apoiante… Até o Azevedo, o melhor Keeper português de todos os tempos, no dizer acalorado do Estanislau, defendeu um penalty, indecentemente marcado pelo liner  e confirmado pelo árbitro do desafio. Garantiu depois o Estanislau que o Rogério havia chutado a bola para o lado contrário do guarda-redes. Ao aperceber-se do facto, em pleno voo, o Azevedo virou-se no ar e ainda conseguiu agarrar o esférico quase a entrar, a meia altura, rente ao poste esquerdo da baliza.
O último golo do Sporting – um golão, como exemplificou o Estanislau, no quarto, por entre as camas—surgiu pouco antes do apito final: A bola vem por alto, é cabeceada em direcção a Albano, finta dois adversários, dá um toque para Vasques, Vasques avança, tenta desmarcar-se, passa a Jesus Correia, lateraliza para Travassos, tenta rematar, a bola embate num back benfiquista, ressalta, vem parar a Peyroteo, há perigo, Peyroteo avança, entra na grande área, vai rematar, remata fortíssimo e… go… gooooolo do Spor…ting, golo sem defesa de Peyroteo; Sporting três, Benfica um; bola no centro do terreno, Espírito Santo reinicia a partida, atrasa para Francisco Ferreira… e neste momento dá o árbitro por findo o desafio entre os dois maiores do futebol português…” […]

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Dunane, Guiné, 19 de Outubro de 1965. Guerra Colonial Interior.

Dunane, 19 de Outubro de 1965


[...] E eis-me aqui, diante de mim, nu, andrajoso, suplicante, a alma enregelada e crucificada na cruz destes dias sem nome. Nos olhos, uma forna­lha de fúria e uma fome antiga não sei em que víscera, essa fome de séculos que é já grito milenário de todas as bocas em mim. Eis-me, pois, aqui, disparando bombas de palavras ao concentrado silêncio da noite. Eis-me aqui, tentando pescar estrelas no poço aberto do firmamento. Eis-me aqui, indefeso e nu, interrogando não sei que morto que vive numa parte de mim... Em frente de mim, nu e com o frio de todos os pólos, interrogo-me como se fosse réu e juiz ao mesmo tempo. E as palavras que ouço vêm da minha voz antiga, saída do mais fundo de mim, carregada de pedras e de car­dos, que grita e se contorce, morre e ressuscita, e continuo, indefeso e nu, aqui em frente de mim...


Cristóvão de Aguiar no "Relação de Bordo 1964 - 1988"

sexta-feira, 26 de março de 2010

Túneis para ligar as ilhas ou metro de superfície… in Expresso das Nove 20 anos.

CRISTÓVÃO DE AGUIAR

Escritor
“Como nada sei sobre o assunto proposto, vou fazer uma composição sobre a Primavera”. Aluno liceal numa prova escrita de Língua Portuguesa

Muito gosto eu de desafios! Quem me tira um tira-me o mar e tudo! Não sei se o Arquipélago gosta deles. É natural que sim. Pelo menos, as cantigas ao desafio têm sido timbre de qualidade da cultura popular das Ilhas todas. A Terceira e São Miguel levam-lhes as lampas.

O velho Virgínio da Bretanha; o Pereira, da antiga Lomba de Santa Bárbara, da Ribeira Grande; a Turlu e o José da Lata, da Terceira, foram dos melhores cultores do despique entoado no terreiro das cantigas ou nas cantigas de terreiro. Devo ter deixado dezenas e dezenas na sombra… A omissão é filha legítima da minha ignorância. Para ela, peço uma indulgência plenária...

Sai o primeiro cantador, o Virgínio, e entoa: “Entre merda foste nascido /E na merda foste gerado /Muita merda tens comido /E dela toda tens gostado…” E o Pereira, da Lomba de Santa Bárbara: “Ainda me chamas galo, /Desses que andam pela rua /Já me viste a cavalo /Nalguma galinha tua?” Da Turlu, que, in illo tempore, ouvi despicar, boquiaberto, tamanho o aguçamento de língua e o seu poder criativo, estas duas cantigas: “A felicidade vagueia, /Fumo que passa veloz, /Está sempre na nossa ideia /E tão distante de nós…” e “A minha língua é comprida, /O que diz não te convém…/ E a tua está torcida /Por isso não fala bem…” A seguir, entra José da Lata e canta: “Deitei uma velha em choco, /Dentro de um cesto de palha, /Lá na Canada das Vinhas. //Descascou-me vinte ratas, /Cinquenta e duas patas /E trinta e cinco doninhas. //Tinha pombas e coelhos, /Melros pretos e tintilhões, /Uma porca com cabritos /E uma cabra com leitões.”

Quando há tempos recebi este desafio, por via electrónica, para ser resolvido por escrito, em três mil caracteres, sem espaços – logo me ocorreu Frei João Sem Cuidados… O seu Rei era invejoso e não podia ver nenhum dos seus Súbditos sem arrelias e apoquentações. Chamou um dia Frei João ao palácio e fez-lhe três perguntas embaraçosas para serem respondidas num dado prazo. O frade saiu do palácio real acabrunhado e cabisbaixo. Se respondesse errado, o Rei mandava-o matar… Por acaso, o moleiro do reino encontrou Frei João muito triste. Vivo e fino como azougue, logo se prontificou, depois de saber as perguntas, a apresentar-se ao Rei vestido com o hábito de Frei João. Respondeu às três perguntas como era dado, de tal sorte que Sua Majestade ficou toda contente e mandou o moleiro na paz do Senhor! Com que se entretinham os Reis de algum tempo!

Ora, este humilde escriba acocorado não tem moleiro para quem apelar! Nem moleiros existem já – os últimos que conheci iam da freguesia para a Ribeira Grande moer a moenda nos moinhos de água da ribeira, já não sei se a do Paraíso se a do Inferno… Três vezes por semana, com cães velhos e doentes amarrados ao eixo da carroça para serem lançados à Tarpeia ribeiragrandense… Caso os houvesse ainda, qual deles seria capaz de responder direito a um século pejadinho de desafios? É muito desafio numa só molhada de brócolos!

Mas há um enorme desafio já proposto às Ilhas do Grupo Central, lançado não há grande tempo pelo eterno candidato à liderança do PSD, Castanheira Barros. Andou em digressão turístico-eleitoral por aquelas Ilhas sem culpa da criatividade do social-democrata relapso. Prometeu mandar construir túneis entre o Pico e São Jorge e entre a Madalena e a Horta. O ovo do Colombo, que resolveria a insularidade de uma assentada. Em estando a obra feita e inaugurada, sempre que um ilhéu radical chegar à porta de casa para interrogar o mar, ficará menente e sem pé dentro de si: em vez de indagar o monstro de água, para ir à pesca ou contemplar a Ilha em frente para lhe sondar os ventos e as nuvens, meter-se-á logo a caminho da emigração, a cavalo no automóvel ou na camionete da carreira… Um Metro de Superfície, como o que está sendo construído em Coimbra, ficaria muito mais em conta, podendo estender-se às Flores-Corvo, à Graciosa-São Jorge-Terceira, que também são filhos e filhas do mesmo magma… Quanto a São Miguel-Santa Maria… Aqui, sim, um túnel tipo Canal da Mancha, mas em formato maior, que os micaelenses são assopradinhos e amantes fidelíssimos da monumentalidade…

Já excedi o número de caracteres. Que o Eduardo Brum se não afromente, me perdoe a incontinência, e aceite os parabéns deste ilhéu desilhado, que muita lenha apanhou nas páginas do ora aniversariante Expresso das Nove… Pois alevá!



sábado, 26 de abril de 2008

Coimbra, 1 de Maio de 1974, por Cristóvão de Aguiar, in Relação de Bordo, 1964-1988.

Coimbra, 1 de Maio de 1974.

Nunca vi um dilúvio de gente desta natureza em toda a minha vida. Nem a procissão do Senhor Santo Cristo dos Milagres, que é a maior de todas as que se realizam, também em Maio, nas Ilhas dos Açores, se pode comparar com o que hoje assisti com as lágrimas rebentando-me com gostosura dos olhos cheios. Era um tejo transbordando de povo correndo da Praça da República até ao Estádio Universitário, na margem esquerda do Mondego.

Miguel Torga seguia perto de mim. Procurei ler-lhe no rosto o que lhe ia na alma. Não consegui. Mas a sua presença na grandiosa procissão cívica deu ao acontecimento uma garantia de seriedade patriótica- a Poesia e a Revolução de mão dadas pela avenida abaixo. Oxalá seja este himeneu duradouro.


Até o meu filho mais velho, o José Manuel, que tem pouco mais de sete anos, teve hoje o seu primeiro acto de emancipação doméstica- perdeu-se por entre a multidão e só regressou a casa ao princípio da noite! E estava todo contente, porque, segundo declarou, sumiu-se de propósito, porque conhecia as ruas que o podiam conduzir de regresso a casa. Quis também saborear o seu quinhão de liberdade.


Ajuizando pela multidão que seguia no cortejo de Coimbra e em todos os outros que vi, à noite, pela televisão, deu-me a ideia de que toda a gente deste País estava ansiando pela democracia. Mas não serão democratas a mais numa nação tão pequena? É já tempo de começar a desconfiar de tanta fartura.

IN CRISTÓVÃO DE AGUIAR, RELAÇÃO DE BORDO ( 1964-1988) Pag. 124

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006