Coimbra, 25 de Abril de 1974.
Se está bom tempo como hoje vou a pé logo de manhã levar o meu filho Artur ao infantário da Universidade, que fica um pouco acima do Penedo da Saudade, mesmo ao princípio da Avenida Dias da Silva. Quero ensiná-lo, e ao mais velho também, a ser andarilho, e de pequeno é que se torce o vime. Levo-o pela mão, tentando durante o percurso responder o melhor que sei a todas as perguntas que me costuma fazer e que redobram sempre que chegamos ao prédio onde está instalado o Farol das Ilhas, Solar de estudantes universitários madeirenses, que tem à varanda uma enorme vaca de gesso e papelão, quase ou mesmo em tamanho natural. E o Artur quer por uma força saber por que está sempre ali, ao frio, se não tem caminha para se deitar, se dá leite de manhã e por que não fala como as outras da Ilha, que dizem, muuu, muuu, porquê, porquê... Ainda tem cinco anos e meio, mas já viu muitas vacas ao natural, o que vai sendo uma raridade em crianças nadas e criadas nos meios urbanos. E também conhece a melodia do Hino Nacional, porque esta manhã ao subirmos a Rua Teixeira de Carvalho, um pouco mais acima da varanda-manjedoura da vaquinha, que por vezes e através da minha voz disfarçada faz muuu, muuu, a ver se lhe aquieto a língua perguntadora—chamou-me a atenção para o facto, pois ouvíamo-lo, alto e bom som, jorrando de uma janela aberta, naturalmente das bem acesas goelas de um rádio que parecia querer transmiti-lo para a cidade e seus arredores. Logo o meu filho quis saber por que razão tocava o hino, se havia festa no infantário. E então, na minha inocência, inventei-lhe uma história em que metia um ministro e alguns bombeiros, numa inauguração de um chafariz e de um urinol com casa de banho privativa, onde o senhor ministro fez cocó para inaugurar a sanita e que, além disso, o Presidente Tomás havia estado na véspera ou antevéspera em Coimbra, e não estava mentindo, para ver se tudo se encontrava bem inaugurado, por isso é que havia hino, et cetera e tal. Com certeza que ficou satisfeito com a minha explicação, porque não me perguntou mais nada. Logo depois, ao virar da esquina para a Dias da Silva, entreguei-o no infantário e segui o meu trajecto para a Universidade, sem maldar de nada. Vim pelo caminho entretido comigo mesmo, como é meu costume: viajando pela Ilha que trago comigo, enquanto me consolava a tragar os primeiros cigarros da manhã no jardim em frente do Liceu, muito antes de tocar a sineta do senhor Tavares ( deixei de fumar há três meses e cinco dias, por isso estou sempre sonhando com umas tragaças bem puxadas), que eu chegava de véspera à cidade, a cavalo na camionete da carreira, a primeira que passava às sete da manhã na freguesia. Meu pai tinha medo que a dos estudantes, quase uma hora mais tarde, às vinte para as oito, chegasse atrasada à cidade e eu faltasse à primeira aula, e ele tinha horror a pessoas faltosas. Só quando cheguei ao Edifício das Matemáticas é que aterrei na realidade, porque dei conta de que havia qualquer coisa de novo no ar, muita gente junta cá fora, num quase alevante e o edifício encerrado. O senhor Pelicano, que de certo me viu com cara de quem andava a leste, adiantou-se do magote e veio para mim de braços abertos e anunciou-me a boa nova de uma revolução em Lisboa, mas ainda se não sabia ao certo de que lado é que vinha, se dos ultras, se da esquerda. Desconfiei que nada de bom seria, porque ainda nem há um mês se dera a revolta das Caldas, que fora prontamente abafada. Nessa expectativa e com uma ténue esperança bichanando-me, abalei logo dali, quase a correr, em direcção ao Emissor Regional de Coimbra, onde cá fora se havia aglomerado um ror de curiosos ávidos de notícias como eu.
Encontrei o Nogueira e Silva, meu camarada em Mafra e na Guiné, que me garantiu que o movimento era de esquerda ( sempre bebeu do fino!), só o que se não sabia ao certo era se vingava ou não, mas, segundo lhe tinha constado, havia fortes e fundadas esperanças de êxito. Pedi logo um cigarro para celebrar e apaziguar os nervos, que emoções fortes sem nicotina sabem a pouco. Já muito depois do meio-dia, quando, em Lisboa já estava tudo bem encaminhado e detidos os dois mais altos responsáveis, foi lido, aos microfones do Emissor Regional, para começar a haver humor na revolução nascente, um comunicado oriundo do Governador Civel, jurando fidelidade da cidade de Coimbra e do seu Povo ordeiro ao Governo legítimo da Nação, estando garantida a paz e a ordem pública em todo o distrito.
Este dia foi tão rico em emoções e contra-emoções, que, somadas e bem condutadas, dariam pela certa para muitos meses de vida bem vivida. O maço de cigarros que acabei por ir comprar é que não chegou para o resto do dia! Lá se me quebrou a jura que fizera comigo mesmo. Seja tudo por amor da revolução e por ( des) alma do regime que foi derrubado.
IN RELAÇÃO DE BORDO I (1964-1988), de CRISTÓVÃO DE AGUIAR, Págs. 120 a 122.
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