Coimbra, 24 de Agosto de 1988 -
O telefone emudeceu. O carteiro não toca sequer uma vez. O vento não pára. Os remédios não remedeiam. A dor de cabeça não esmorece. O Sol esqueceu-se do ofício e meteu folga. O silêncio não se constrói nem me destrói. A música não apazigua. Os jornais gritam que não querem ser lidos. A esperança não esperneia. O calor tem frio. O frio tem fome. A fome tem sede. A sede está farta. As ideias embranqueceram. As palavras enlouqueceram num hospício de bolor esverdeado. O livro está atravessado no útero e não pede para nascer. Os amigos estão morrendo. A guerra nasce das entranhas do ouro negro. Os filhos não se deixam filhar. As filhas idem aspas, mas aspando. A poesia virou carraça em pêlo de cadelinha. A literatura teve mais sorte e caiu numa panelinha. A chuva esqueceu-se de se molhar. O corpo é um copo sem espírito de bebida. Os olhos suicidaram-se. A boca caiu na lixeira. As horas não oram. Os minutos não minutam nem deixam minutar a minuta de um sonho. O Sol sujou-se. O céu caiu de susto. O pesadelo não se assustou. O sonho sustou-se. Os olhos cabeceiam de sono. As mãos pediram memória a juro porque não pagam juros de mora. As pernas colunizaram-se sobre os pés. Os pés pediram tréguas e não sapateiam. A sapateia dançarilha no chão do longe. O longe é uma parte da partilha ainda espartilhada.A saudade é uma Ilha rodeada de ti. A Ilha veio pernoitar em tua cama e lá se deixou noivar. Os mortos não se cansam de viver nem os vivos de apodrecer. A morte anda a cavalo nos ponteiros do relógio. O relógio faz que anda, mas, no íntimo, galopa. Os dias resfolgam nos cavalos da noite. A noite debate-se no crepúsculo caído. As nuvens entupiram os caminhos da viagem. A viagem perdeu o navio e deixou-se ficar no cais. O comboio não pára no apeadeiro que me coubeO bilhete que tirei tem uma data falsa. Todas as datas são falsas sobretudo as dos aniversários. Aniversariar é o modo conjuntivo desconjugado num tempo indefinido. Continuo esperando diante do espelho que a minha imagem espelhada se metamorfoseie na tua para nela me aposentar. O amor não se cansa. Assim seja!
Cristóvão de Aguiar in “Relação de Bordo” (volume 1)
terça-feira, 7 de julho de 2009
A "Maria dos Caracóis", deu-se ao trabalho de copiar esta magnífica passagem do Relação de Bordo I (1964-1988) de Cristóvão de Aguiar.
Publicado por Lapa às 14:34:00
Secção: Relação de Bordo I, Textos avulsos
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TANTO MAR
A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.
Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.
Manuel Alegre
Pico 27.07.2006
do qual este poema começou a nascer.
Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.
Manuel Alegre
Pico 27.07.2006
1 comentário:
este texto é simplesmente muito bom,bem vindo DR Cristovão
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