sábado, 22 de setembro de 2012
sábado, 29 de outubro de 2011
Entrevista de Luís Aguiar-Conraria: economista e professor na Universidade do Minho
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Lapa
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Secção: Economia, entrevistas, Notícias, PROFESSOR AGUIAR-CONRARIA
sexta-feira, 28 de outubro de 2011
Eduardo Brum conversa com Cristóvão de Aguiar no Mundo Açoriano
bocado bazofeiros
talvez por viverem
rodeados de mar
A tua obra “Raiz Comovida” não gerou consenso quando foi inicialmente publicada…
Para além da surpresa de ter utilizado, como escrita literária, o léxico da Ilha, houve quem se entretivesse a discutir, teoricamente, se o livro caía no domínio do romance ou não. A chamada discussão sobre o sexo dos anjos… Havia dúvidas quanto à classificação clássica, que distingue entre romance, novela e conto. Gaspar Simões, o crítico mais semanal da imprensa portuguesa, escreveu que se tratava de um colar de pérolas ao qual faltava o fio! (Risos). Foi um grande elogio, sobretudo porque, além de vir de quem vinha, o crítico debruçava-se sobre outros dois escritores micaelenses, Dinis da Luz e Manuel Ferreira, e a apreciação sobre ambos não era muito favorável. A partir daí gerou-se a dúvida. E eu passei a fintar os críticos: romance ou o que lhe queiram chamar… novela em espiral… conto a que se acrescenta um ponto, etc.
Incomodavam-te as classificações?
As classificações não me incomodavam, porque já se não usam, foi chão que já deu muitas uvas. Já reparaste quão estúpido e difícil se torna distinguir entre conto e novela? Pelo número de páginas? Nunca soube nem curo de saber. No que me diz respeito, essa classificação ou destrinça que o crítico achava por bem fazer ocupava muito espaço antes de entrar no livro propriamente dito…
Quando olhas para trás, hoje, fazes um “balanço” da tua escrita?
Balanço em que sentido?
Que vês na tua escrita observando de longe?
Que vejo na minha escrita? Sou a pessoa menos indicada para discretear sobre este assunto. Normalmente, o escritor é o que sabe menos sobre a sua obra, por mais paradoxal que possa parecer... Mas, se insistes, vejo sobretudo narrativas e outras lérias sem classificação, além de uma poesia péssima, de que não me envergonho por ter sido, como qualquer outro dos meus livros, arrancada de mim… Só que o meu modo de expressão não era esse. Há quem diga que a minha prosa tem mais poesia que os versos. Falando há dias com o tradutor italiano de “Passageiro em Trânsito”, livro tão mal-amado e zurzido por uma luminária da crítica micaelense, dizia-me ele, modéstia à parte, que o livro parece-lhe que tem mais a ver com a poesia do que com a prosa…
És perfeccionista?
Não tenho pejo em afirmar que sou um grande perfeccionista ou narcisista, creio que tanto faz. Escrevo como quem pratica onanismo... Escrevo, emendo, corto, modifico, acrescento, até ficar com a cabeça num labirinto ou num “lavarinto”, como se diz na ilha… Então, quando manuscrevia, era o cabo dos trabalhos, porque não conseguia ver, no papel, emendas: tinha de reescrever tudo e, na reescrita, ia alterando, podando, uma verdadeira enxaqueca daquelas que se sofre durante o pós-guerra…
Corrigir é uma forma de bem escrever…
Pode não ser. Às vezes perde-se a frescura e o encanto das primeiras palavras que o escritor vai descobrindo… Só alguém alheio à criação poderá ver a diferença. O escritor, ao substituir, já está cansado daquelas palavras, podendo muito bem estar a substituí-las por outras com menos frescura… Miguel Torga, na ânsia de aperfeiçoar a sua escrita até ao osso, foi muitas vezes acusado disso. O meu mais recente livro, “Catarse”, foi terminado em Janeiro de 2011, mas em Março ainda estava a ser reescrito, o que não significa que seja uma obra-prima de escrita…
Que vês, então, olhando para trás?
Vejo-me viajante de uma narrativa interior, a viagem mais autêntica que o escritor pode empreender.
Mas há um discurso açoriano na tua escrita?
Com certeza. Um discurso micaelense, talvez seja mais correcto dizer. Açoriano é um adjectivo que não diz nada ou diz muito pouco, uma vez que temos nove realidades distintas no nosso Arquipélago. Não se fala açoriano! Fala-se micaelense, terceirense, etc.. Não se nasce numa ilha em vão. Há uma marca de origem. E é essa marca que vai entroncar na escrita portuguesa dos séculos XVI e XVII. Veja-se os termos “chamatão” e “pêloei”, discreto, no sentido de inteligente (provém do verbo discernir) entre muitíssimos outros, que já caíram em desuso na matriz, mas que ainda se utilizam nos locais mais afastados dos grandes centros, onde a língua se vai adulterando... Agora, com a rapidez dos meios de comunicação, houve uma espécie de nivelamento por baixo, o que leva muita gente a repetir as asneiras linguísticas que os locutores, os políticos e outros figurões vai debitando sem nenhum respeito pela língua, a nossa Pátria, como bem disse Fernando Pessoa.
A ilha de S. Miguel tem um discurso rico?…
O mais rico de todas as ilhas! Alentejano, transmontano… A nossa pronúncia é que nos trai. Comem-se as sílabas, e não raro não se entende. Mas o discurso escrito é rico no léxico e em certos achados linguísticos. Daí que a pronúncia não se pode nem deve confundir com o léxico, que é riquíssimo.
Há uma cultura açoriana bastante estendida no tempo que penetra muito na cultura portuguesa e que não é reconhecida como tal…
Açoriana, portuguesa… Não concordo com a distinção. Acho que a cultura portuguesa é que penetrou na nossa. É natural que tivesse havido muitas adaptações derivadas do meio, do clima, da actividade sísmica (veja-se o Espírito Santo, que se mantém vivo em todas as ilhas, enquanto na matriz de onde proveio há apenas resquícios), e foi essa actividade sísmica que fez perdurar, no tempo, o culto do Espírito Santo.
O estereótipo da cultura açoriana está muito associado a nomes como os de Antero de Quental, Vitorino Nemésio, Natália Correia…
Mas a cultura açoriana não se resume a esses nomes. Haverá, porventura, alguma coisa que lembre a Ilha na obra de Antero? Em Natália Correia, só muito no fim, porque, antes, quando ela deslumbrava toda a Lisboa do seu tempo, não queria, não gostava que lhe lembrassem a sua origem ilhoa. Respondia que tinha daqui saído muito novinha (cinco anos) e não se considerava filha cultural da Ilha onde nasceu… Mais tarde, era chique ser das ilhas, escrever livros ou poemas com fundo ilhéu, mesmo que fosse a martelo, isto é, de fora para dentro. A ilha não fazia parte do sangue. Nemésio, Roberto Mesquita, esses sim. Espelham o viver rodeado de mar por todos os lados… Aqui há uns anos, houve um concurso literário da Secretaria Regional da Cultura, a que podiam concorrer residentes, não residentes, mas cá nascidos, e todos os que falavam a Língua Portuguesa que nunca cá viveram (ridículo!). E mais ridículo ainda era o facto de para os residentes e os açorianos que viviam noutras partes o tema ser livre (jogos florais). Para os não naturais, o fundo das obras tinha de reflectir a ambiência das ilhas (magnífico!) Ganhou, nesse ano, uma escritora coimbrã, com um romance de setenta páginas, sendo o prémio de oitocentos mil escudos, mais de mil por página. Li o livro, tenho-o aqui à minha frente: uma “novelada” (intitula-se novelos), escrito a partir de folhetos turísticos para que houvesse cheirinho a hortênsia, a bosta de vaca, a “bedume” de polpa e a pasto… E o júri composto por altas pensâncias de Lisboa caiu na esparrela como canarinho…
A tua escrita veio “desenterrar” o discurso da cultura açoriana mais profunda…
Não desenterrei coisíssima nenhuma, não fiz investigação linguística e, se o fizesse, a naturalidade da escrita ia-se... Tratava-se de uma questão estética. Eu falava assim, ouvia falar do mesmo modo, e queria transformar o nosso léxico em linguagem literária… Se o consegui, ou não, não me compete dizer.
Se não desenterraste, acabaste por explorar, potenciar…
Como me interesso muito pela Língua Portuguesa, procurava saber por que é que se diz isto, por que é que se diz aquilo… e verifiquei que boa parte do que dizemos em S. Miguel é português arcaico.
A tua escrita tornou-se uma espécie de “ponte” entre vários tempos da cultura portuguesa…
“Raiz Comovida” era incompreensível para Gaspar Simões, mas em regiões como Bragança, Trás-os-Montes em geral, Beira Alta, há pessoas que o entendem e utilizam muitos desses termos incompreensíveis para os salões lisboetas, onde se pronuncia “insêto”, e outras estupidezes... Repara no termo “pitafe”, que se usa também no Alentejo (a nossa matriz linguística) e se aplica a qualquer coisa que tem defeito – esta sopa tem “pitafe”… Provém do termo “epitáfio”. Os açorianos levaram a Língua Portuguesa para o Brasil (a primeira leva de emigrantes que saiu das nossas ilhas para o Brasil data de 1677). No Brasil, fala-se um Português por vezes muito mais correcto do que o que lhe deu origem, sobretudo nos particípios passados dos verbos e na abertura das vogais. Camões recitado por um declamador brasileiro é mais musical, até a métrica fica mais marcada… Não admira. Ficou ilhado, sem receber influências, tal como as nossas ilhas, Trás-os-Montes, Alentejo… Se, por exemplo, quisermos ouvir falar como se falava há cinquenta anos no Pico da Pedra e em Rabo de Peixe só temos de nos deslocar a Fall River, nos EUA. As pessoas não se integraram na cultura norte-americana, formaram um grupo à parte, e congelaram a língua que da ilha trouxeram. Agora o cenário está a mudar por causa da RTP Internacional. Todavia, não advogo que todos falem da mesma maneira. O que dá profundidade cultural a um país é a diversidade.
Há todo um peso cultural que transita para a tua escrita…
Nunca tive pejo de assumir a minha origem de ilhéu micaelense, ao contrário de alguns outros escritores que, só depois da “fundação” da chamada literatura açoriana, principiaram a ter orgulho na sua origem, porque só assim poderiam ficar no retrato de uma novel literatura.
De certa maneira, pareces ser a literatura em forma de pessoa… Ou se a literatura tivesse uma forma humana poderia ser a tua forma…
Não exageremos. Sou um escritor, mais nada. Há um mecanismo de criação que desconhecemos ou que desconheço. Quando estou a escrever, vêm-me à cabeça coisas que em estado de vigília não surgiriam.
É o discurso do inconsciente… discurso do irracional.
É preciso que haja um pretexto para que o inconsciente se manifeste ou exploda.
Qual o teu pretexto?
A guerra, a infância, a adolescência, a ilha, a freguesia onde fui parido, as pessoas que me marcaram, negativa e positivamente, o liceu que, durante nove anos, me marcou e me deixou algumas alegrias e muitas tristezas e amarguras…
O liceu daquele tempo foi uma humilhação?
No liceu, tive duas fases: a da humilhação e a da glória, embora esta última fosse falsa. Se não tivesse ido estudar para Coimbra e tivesse acreditado no que me diziam alguns dos meus mestres de Português, teria ficado convencido de que era um sábio. Ficar na ilha é por vezes uma maneira de julgarmos que somos os maiores do planeta e arredores… Na minha freguesia, fui mesmo humilhado em certas fases da minha vida. Por exemplo, quando chumbei dois anos seguidos no antigo terceiro ano do Liceu. Tuteavam-me quando passava no caminho, mas, quando me tornei bom aluno, nunca ninguém teve o alvedrio de me dar uma palavra de estímulo… Santa freguesia!
E Coimbra?
Em Coimbra, aprendi muito dentro e mais ainda fora da Universidade… Aprendi também a humildade, que era uma atitude que não tinha. Não admira. Era ilhéu, e os ilhéus, como se sabe, sabem tudo... Quando lá cheguei, na companhia de Viriato Madeira, dissemos um ao outro: “Mas nós não sabemos nada! Esta gente fala de outra maneira”. E não era uma questão de sotaque. Vi jovens que avançavam para uma Assembleia Magna e que abordavam os assuntos de forma desassombrada e assombrosa, num discurso que se podia escrever… Manuel Alegre era um deles! O choque foi tal que, a certa altura, quis mesmo vir embora e escrevi uma carta à família com esse intuito. Se fosse hoje, tinham-me respondido: “Vem, querido filho, que aqui estás no teu cantinho, sossegado, fora dessas babilónias de pecado…”
É como se viver na ilha limitasse a capacidade de reflexão ou de expressão?
Não é só isso. É que todos os ilhéus são um bocado bazofeiros, talvez por viverem rodeados de mar. Julgam que o centro do mundo se instalou ou passa pelo seu umbigo... Resolvem tudo… sabem tudo. Até há quem diga: “Se eu fosse primeiro-ministro, punha este país de pé num zape…”, ao que apetece responder: “Muito bem falas, Manel, mas como irás pôr o país em pé, se nem sabes governar a tua casa?”
Há muita falta de humildade…
Com certeza. E o medo de ser frontal. Quem porventura o é pode sofrer alguns amargos de boca… Ser crítico é ser má-língua, ter um feitio insuportável, intransigente, casmurro, explosivo, e tudo de mau que existe debaixo da rota do Sol… Tal como eu, como dizem Onésimo, Daniel de Sá, e outros ilustres intelectuais da nossa praça, o Campo de São Francisco… Custa-me a entender que alguns intelectuais vão ao ponto de criticar quem tem coragem de assumir certas posições diferentes do politicamente correcto. Só conseguem falar por trás, é mais seguro, dá milhões, é-se bem-visto pelas autoridades culturais, dá viagens e outras benesses…
Não será que as pessoas estão “formatadas” para funcionarem segundo determinadas regras, já que nos meios pequenos a noção do outro é muito mais forte do que nos meios maiores? Nas ilhas, há uma noção de vizinhança muito acentuada. Vai-se ao café e o empregado diz-nos: “Que vai ser, vizinho?...”
A vizindade sempre foi muito importante. Ser vizinho é, por vezes, pertencer à mesma família, mas se há malquerenças, é o diabo entre as couves. Já diz o povo: “Antes ter um mau ano que um mau vizinho”.
A proximidade do outro tem muita influência no dia-a-dia…
É verdade. Mas, por vezes, caímos nos estereótipos. Por vezes perguntam-nos: “Como está, como tem passado? Muito bem, obrigado”. Mas se a pergunta for – “estás bem?” – e a resposta – “ão, estou muito mal”, a reacção que obtenho é: “Isso não é nada, isso passa…”, e a pessoa que indagou dá meia volta e vai-se embora. Bebe uns copos, vais ver que ficas rijo! A resposta esperada, sacramental, seria: “Estou muito bem, obrigado!” Ora, isto não é nada, isto não é convivência.
Tu não és assim?
Não sou e por isso apanho cada dissabor…
Essa tua fuga à regra cola-te a uma imagem de conflito e de polémica…
E dizem que perco mais do que ganho com estas coisas. Ganhar o quê? O apreço de medíocres? Tenho escrito em jornais sobre assuntos com os quais discordo. Na ilha do Pico houve pessoas que deixaram de falar comigo por essa razão, algumas delas por medo. É que naquela ilha ainda se fala da justiça da noite…
Como surge o Pico na tua vida?
Eu conhecia o Pico muito mal (fui lá pela primeira vez, durante uma simples manhã, na viagem de finalistas do 7º ano do liceu). Em 1996, juntei, em Coimbra, um grupo de 29 pessoas e combinámos ir ao Pico por 15 dias: sete dias no Pico, dois na Terceira e os restantes em São Miguel. Principiámos pelo grupo central porque tinha a minha fisgada: quando chegássemos a São Miguel seria a apoteose! Quando lá chegámos, fomos percorrer a Ilha e ver os locais mais consabidos… Todos gostavam muito, mas logo a seguir comentavam: “É muito bonito… mas o Pico…”. Um dizia-o, o outro repetia-o e eu próprio dei por mim também a dizer: “É muito belo, mas o Pico…”. Há qualquer coisa naquela ilha que nos atrai…
É verdade.
Até pode ser magnético. Numa noite limpa, as estrelas brilham mais sobre o pico do Pico. Decidi fazer lá uma casa. Ali, eu sentia o arquipélago. É que a ilha em frente, segundo Raul Brandão, é muito importante. Dá-nos a sensação de que há mais mundo, de que não estamos desacompanhados…
É uma sensação completamente diferente de viver em S. Miguel…
É verdade. Para mim, a ilha em frente era a Serra de Água de Pau… Santa Maria só muito raramente se mostrava como uma sombra no horizonte, e quando assim acontecia, tínhamos chuva pela certa. Mas tive sorte. Quando entrei para o liceu, em 1951, as camionetas da Ribeira Grande eram bastante irregulares e avariavam em quase todas as viagens. E então ficou decidido que eu ficaria alojado numa pensão, em Ponta Delgada. Nessa pensão, tive o privilégio de encontrar jovens estudantes de todas as ilhas, mais velhos do que eu, e passei a dar-me conta da geografia, pronúncias e maneiras de pensar diferentes. Só conhecias as ilhas pelo mapa…
Não te esqueças de que estávamos a falar da tua decisão de fazer uma casa no Pico…
Ah, pois. Arranjei um terreno, em S. Miguel Arcanjo, de onde se via a ilha de S. Jorge de ponta a ponta! Era um pasto. Perguntei ao vizinho se a propriedade estava para venda. “Não sei”, respondeu ele. “Isso é de um senhor que está no Canadá. Mas, se quiser saber, pode falar com a cunhada, que mora aqui mais acima. É procuradora e contacta com ele todas as semanas”. E assim fiz. Dias depois, soube que o proprietário estava na disposição de vender o terreno. Aceitei o preço, não regateei, e fechei negócio. Disseram-me que era muito caro, mas eu não quis saber. Comecei logo a fazer a casa. À moda antiga do Pico, de acordo com as leis anti-sísmicas
Miguel Torga é importante na tua vida…
É, com certeza. Tem uma escrita telúrica, na qual arranca às pedras de Trás-os-Montes aquela concisão, aquela secura… aquele não desperdício de palavras.
Em tempos, li bastante da sua obra, mas hoje não o voltaria a fazer…
Uma pessoa também não pode estar sempre agarrada ao mesmo escritor… O que é preciso é saber se a nova geração o lê ou não.
Eu deixei de ler o Torga, mas não deixei de ler o Eça…
Torga reflecte na sua escrita um Portugal que, em parte, já não há, mas a mentalidade do povo continua: os seus vícios, defeitos, manhas, esperteza saloia, comuns a todos os povos. Por isso, a sua obra continua válida (pelo menos para mim) e universal.
Torga não deu o salto para a contemporaneidade…
Não sei muito bem o que é a modernidade. Badala-se tanto sobre ela, que acabo confundido. Será a modernidade sinónimo de tecnologia avançada, comunicações instantâneas? E o homem, como se encontra nos seus instintos? Teria evoluído a par de toda essa parafernália tecnológica? Ou terá ficado, no íntimo, igual ao seu antepassado das cavernas? Mata-se hoje em dia com a mesma crueldade com que se fazia há milhares de anos. Talvez haja mais requinte derivado da modernidade e das suas consequências. É evidente que a escrita e a arte em geral devem acompanhar esse desenvolvimento. Mas, se reflectem o Homem na sua humanidade, os temas são sempre os mesmos: a morte, o amor, o ódio, e tudo o resto que o ser humano carrega dentro de si desde que apareceu à face da Terra…
Hoje, prefiro ler um livro teu do que um livro do Torga. Tens uma capacidade de abertura que ele não tem.
Não sei aonde pôr as palavras com essa tua afirmação! Torga é Torga e eu, à sua ilharga, sou um pigmeu. Convivi com o Torga durante um ano e tal. Todos os dias ia buscá-lo ao consultório para irmos dar uma volta por Coimbra ou arredores. “Ó Cristóvão, podemos ir ali a cima?” Eu percebia o que ele queria. “Vamos ali àquele miradouro…”. Lá íamos. Tinha com certeza um poema a pedir para nascer… Vivia única e exclusivamente para a literatura. Transformava tudo em literatura. Disse à mulher em vésperas do casamento: “Vou procurar ser um bom marido, mas digo-te com toda a franqueza – em qualquer circunstância, troco-te por um verso!” Disse-o e escreveu-o. Esta era a sua têmpera. Quis ser escritor por vontade e fazia da escrita um sacerdócio laico. Um dia, contei-lhe certos passos da minha vida. Ouviu-me com muita atenção. Quando terminei, disse-me: “Por que não escreve tudo o que me contou? Talvez desse uma espécie de “Criação do Mundo…” Salvo as devidas proporções, digo agora eu.
Durante vários anos, Torga chegou a ser candidato ao Nobel…
Estou muito contente por termos um Nobel da Literatura português, mas penso, sinceramente, que o prémio tinha ficado muito mais bem entregue a Miguel Torga do que a Saramago. A sua escrita tem muito lugar-comum…
Saramago é um lugar-comum…
Pois…
Terminemos, voltando à terra onde nasceste: que representam os Açores, hoje, para ti?
Os Açores, para mim, hoje… são uma memória afectiva. Sou um misto de Açores e de Coimbra, embora eu não queira nem consiga distinguir entre ambos. Quando uma pessoa sai da sua terra desenraíza-se…
Deixa de ter pátria…
Passa a ter raízes aéreas. Perde o chão. E nunca está bem em parte nenhuma. Agora, estou mais calmo, mas no tempo de estudante, quando estava de férias em São Miguel, cheguei a voltar mais cedo para Coimbra. Todavia, uma vez lá chegado, arrependia-me! Havia uma dualidade, um conflito interior. Mas houve uma coisa interessante que aconteceu comigo: vim a São Miguel em 1994 e não fui ao Pico da Pedra. Nessa altura, senti-me muito melhor na ilha.
O Pico da Pedra era uma opressão…
Exactamente. A causa do meu mal-estar era o Pico da Pedra da minha infância e da minha adolescência. Comparando com a actualidade, eu diria que o Pico da Pedra tinha os seus talibãs! Ir estudar para Coimbra foi a oportunidade que tive para me desligar de tudo isso.
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sexta-feira, 29 de janeiro de 2010
CORREIO DOS AÇORES ENTREVISTA: Tertúlia Açoriana - Cristóvão de Aguiar, escritor e poeta : Escrever por amor à literatura
Tertúlia Açoriana - Cristóvão de Aguiar, escritor e poeta : Escrever por amor à literatura
28 Janeiro 2010 [Cultura]
“Hoje em dia fala-se em narrativa ou ficção, embora continue a haver romance e conto, e até prosa poética, poema em prosa, o que significa que as fronteiras entre os géneros literários se diluíram. Quanto a mim, será difícil catalogar. Talvez a narrativa seja o que melhor se coaduna com o que tenho publicado, embora haja entre a minha obra diários, contos…”
Correio dos Açores - Nome, naturalidade, cidade e país onde reside?
Cristóvão de Aguiar, de nome completo Luís Cristóvão Dias de Aguiar, nado e criado (até aos vinte anos) na freguesia de Pico da Pedra, de onde saí para Coimbra em 1960, com destino à Faculdade de Letras. Desde então, e com pequenas intermitências (Guerra Colonial, Leiria), aqui tenho vivido, exercido a minha profissão docente (Leitor de Língua Inglesa da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra) durante 32 anos. Encontro-me aposentado desde 2002, mas continuo a viver em Coimbra, agora em part time, visto que passo longas temporadas na Ilha do Pico, lugar de São Miguel Arcanjo, onde mandei construir uma casa.
O Primeiro livro que leu?
O primeiro livro que ouvi ler foi a Bíblia. Depois, logo que me apetrechei com as ferramentas da leitura, continuei na Bíblia; no Liceu, no antigo 3.º ano, o professor de Português, Dr. Ângelo Raposo Marques, mandou-nos ler a Morgadinha dos Canaviais, leitura obrigatória. Talvez tenha sido o primeiro que li. Encantou-me de tal maneira que, ainda hoje, o releio uma vez por outra, a ver se recupero o paraíso perdido…
Versos de pé quebrado
Quando sentiu o chamamento para a escrita?
Principiei, como não podia deixar de ser, pelos versos de pé-quebrado. Meu Avô materno e um Tio, filho dele, eram poetas repentistas. Meu Tio escrevia para o Diário dos Açores não só quadras e sextilhas mas também a correspondência do Pico da Pedra. Nessa altura chamava-se correspondente do jornal, uma honra, além de se receber o jornal de graça. Quis imitá-lo, tudo a escrita principia por uma imitação, e, anos depois de ele ter embarcado para a América, também me tornei correspondente do Diário dos Açores e depois do Correio dos Açores. Naquele publiquei uns versos, na página de Letras, creio que em Setembro de 1957, no último, no tempo do Dr. Read Henriques, tornei-me colaborador, mesmo depois de vir para Coimbra. Também escrevi versos e prosa no semanário A Ilha, de Manuel Barbosa. Tudo para esquecer…
Qual é o seu género literário?
Hoje os géneros literários não estão ba lizados. No meu tempo de estudante liceal, distinguia-se entre romance, novela conto, na prosa; na poesia, entre soneto de verso heróico e alexandrino, quadra de redondilha maior e menor, respectivamente de sete e cinco sílabas, sextilhas, quintilhas, oitava rima… Uma dor de cabeça para quem os tinha de estudar. Hoje em dia fala-se em narrativa ou ficção, embora continue a haver romance e conto, e até prosa poética, poema em prosa, o que significa que as fronteiras entre os géneros literários se diluíram. Quanto a mim, será difícil catalogar. Talvez a narrativa seja o que melhor se coaduna com o que tenho publicado, embora haja entre a minha obra diários, contos…
Na escola primária era habitual ter boas classificações nas redacções?
Só não era bom aluno em desenho à vista, um pesadelo de caçarolas e vasos e jarras… As redacções, na instrução primária, eram uma espécie de chapa: o professor explicava o que devíamos escrever e o resultado era uma espécie de vasos comunicantes, ou de Comunicação dos Santos. Ficava tudo mais ou menos igual. Só no Liceu, já no Curso Complementar de Letras, é que o meu professor de Português, o Doutor Almeida Pavão, elogiava a minha maneira de escrever.
Sonetos, de Antero
Há algum livro dos seus que gostaria de reescrever?
Tenho reescrito todos eles com o afã de quem os escreve pela primeira vez e altero muito, a ponto de alguns críticos, como Luiz Fagundes Duarte, dizerem ou escreverem que se trata de um livro novo, como aconteceu com Marilha, sequência narrativa que inclui Grito em Chamas e Ciclone de Setembro, publicados muito antes, separadamente, e por ordem cronológica inversa.
Quais os livros que publicou e o mais recente?
Quer mesmo a lista completa? Não será fastidioso para os leitores; que não têm nenhuma culpa dos meus pecados mortais? Já que insiste; lá vão eles; por ordem cronológica e por ela se vê o último que dei a lume: Mãos Vazias; O Pão da Palavra; Sonetos de Amor Ilhéu (poesia); Breve Memória Histórica da Faculdade de Ciências; Alguns Dados sobre a Emigração Açoriana; Raiz Comovida (trilogia romanesca); Ciclone de Setembro (romance ou o que lhe queiram chamar); Com Paulo Quintela À Mesa da Tertúlia; Passageiro em Trânsito; Braço Tatuado; Emigração e Outros Temas Ilhéus; A Descoberta da Cidade e Outras Histórias; Grito em Chamas; Relação de Bordo I, II e III (diário ou nem tanto ou talvez muito mais); Trasfega; casos e contos; Marilha; sequência narrativa; A Tabuada do Tempo; Charlas Sobre a Língua Portuguesa; Cães Letrados… Ainda há as traduções: A Riqueza das Nações; de Adam Smith; A Nobre Arquitectura, poemas de António Arnaut, traduzidos para inglês… Eu bem o avisei da chateza…
Indique-me um livro de um escritor açoriano de que gostaria de ter sido o autor?
Sonetos, de Antero de Quental.
A ‘casa de putas’
Como se relaciona com outros escritores?
Com os poucos com quem me relaciono, muito bem. Mas a chamada República das Letras mais parece uma “casa de putas”…
Pensa enriquecer como escritor?
Em Portugal só enriquecem os escritores bestsellers, como os Saramagos, Lobo Antunes, José Rodrigues dos Santos, e os ou as da profundíssima literatura cor-de-rosa, a que é conhecida por light; os outros, como eu, nem às vezes os direitos de autor recebem. Seja tudo pelo amor da Literatura…
Que livro nunca recomendaria a um amigo?
Preferia recomendar a desaconselhar… Mas não recomendaria nenhum dos livros da Margarida Rebelo Pinto.
Que livro gostaria de deixar e que ainda não escreveu?
Não vou com certeza escrever mais nenhum livro como a trilogia romanesca Raiz Comovida. Assim sendo, será este, portanto, que gostaria que ficasse como testemunho. Até já deu o nome a uma rua do Pico da Pedra…
afonsoquental@hotmail.com
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sexta-feira, 3 de julho de 2009
Diário Económico. 03-06-2009. Entrevista de Aguiar-Conraria.
"Devíamos baixar os impostos"
sexta-feira, 03-07-2009
Diário Económico
"Devíamos baixar os impostos"
O especialista em macroeconomia não culpabiliza este Governo, mas identifica pelo menos um erro crasso.
Margarida Peixoto margarida.peixoto@economico.pt
Luís Aguiar-Conraria, professor na Universidade do Minho, identifica os principais problemas da economia portuguesa e aponta alguns caminhos para a saída da crise.
DE- Como deverá ser o plano de saída da crise do próximo Governo?
AC- Portugal vive duas crises: a internacional, que começou no ano passado, e a nacional, que vinha desde 2001. As medidas para sair de uma crise, agravam a outra.
DE- Pode dar um exemplo?
AC- Todos os grandes investimentos do Estado - TGV, aeroporto, auto-estradas -, são a receita típica macroeconómica: em períodos de crise, com taxas de juro muito baixas, aumenta-se o investimento público. O problema desta solução é que vai agravar a crise nacional.
DE- Porquê?
AC- Se não existisse a crise internacional, Portugal precisava de investir fortemente em sectores de bens transaccionáveis, para exportar mais e importar menos. Com as grandes obras, aposta em sectores que não concorrem com o exterior.
DE- Em que é que o país se devia concentrar?
AC- Devíamos guardar o que temos para solidariedade, garantindo o acesso ao subsídio de desemprego para todos. Não podemos resolver a crise internacional, por isso devemo-nos preocupar com a nacional e evitar que milhares de pessoas entrem na pobreza. Em vez dos grandes investimentos públicos, devíamos praticar uma política expansionista: baixar os impostos, para aumentar o rendimento disponível.
DE- Mas se as pessoas pouparem mais, o consumo não cresce...
AC- É verdade. Mas se baixar impostos apenas aos mais pobres isso já não acontece. Por exemplo, criar um escalão negativo de IRS, para salários muito baixos em que as pessoas sejam subsidiadas pelo Estado, aumenta o consumo. Outra hipótese, adoptada no Reino Unido, é baixar o IVA apenas por um ano: para usufruir da baixa do IVA, os consumidores gastam.
DE- O que se pode fazer do lado das empresas?
AC- O IVA já tem um efeito: podem vender os produtos mais baratos, ou aumentar as margens de lucro. De resto, não há muitas mais possibilidades. As taxas de juro já estão o mais baixo possível.
- Quais são os principais desafios da próxima legislatura?
- O problema microeconómico é a falta de produtividade. O desafio macroeconómico é o brutal desequilíbrio externo, conjugado com o desemprego e o défice elevado. Não tenho a receita para isto. Sempre que penso numa política adequada para resolver uma destas frentes, parece-me que prejudica as outras. Eu não gostava de ser político.
- Este Governo deixou uma herança pesada?
- A herança é pesada. Mas se fosse outro Governo, também seria. Não o culpabilizo. Este Governo fez algumas reformas que podem ser positivas, como a da Administração Pública, consoante os resultados da implementação.
- E houve algum erro crasso?
- O erro mais óbvio foi ter-se avançado para o TGV. Não encontro nenhuma racionalidade económica.
Luís Aguiar-Conraria
Professor Auxiliar
Departamento de Economia
Universidade do Minho
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quinta-feira, 5 de junho de 2008
Expresso das Nove entrevista Cristóvão de Aguiar, 24-02-2006, por Tibério Cabral.
"Liberdade de expressão não pode ser posta em causa"
Foi recentemente homenageado pelos seus 40 anos de vida literária. Portugal está a perder o mau hábito de se lembrar apenas dos mortos?
Uma andorinha não faz a Primavera, mas é, sem dúvida, um começo. Se, por um lado, é reconfortante ser homenageado em vida, como foi o caso pela passagem dos 40 anos da minha vida literária, e sobretudo por partir da iniciativa de uma instituição como a Universidade de Coimbra; por outro, abriu-se-me no íntimo uma clareira de angústia existencial que me tem perturbado o seu tanto. Fiquei com a sensação de que fui invadido por um deserto que me aguçou a consciência dos limites cada vez mais acanhados do tempo e ainda não consegui obter resposta à pergunta insistente que se me põe amiúde: "E agora?". Tudo tem o seu reverso e uma homenagem em vida não foge à excepção.
O facto de a sua obra estar a ser estudada em várias universidades é a prova da qualidade da sua escrita?
A qualidade e a profundidade de uma obra não se medem apenas pela razão de ser objecto de estudo ou análise literária numa qualquer universidade. Com os autores contemporâneos até pode ser uma questão de moda ou mesmo de compadrio. E poderá mesmo produzir efeito contrário, como sucedeu a muitas gerações com "Os Lusíadas" e outras obras clássicas da nossa Literatura. Em Espanha aconteceu o mesmo com o D. Quixote de La Mancha, obra imortal que já perfez quatro séculos de existência... Mas sempre lhe quero dizer que é saboroso saber que se é estudado numa universidade. Quando tomei conhecimento, por mero acaso, e através da Internet, de que os meus contos estavam a ser objecto de uma tese de mestrado no Departamento de Estudos Portugueses da Universidade de Aveiro, senti-me estupefacto e ao mesmo tempo inundado de uma grande alegria interior...
O acto da escrita é para si um acto de prazer ou é também um processo doloroso, angustiante?
Tenho-me debruçado com frequência, sobretudo na "Relação de Bordo", sobre o acto da escrita. Uma vez escrevi: "Escrever é abrir o fleimão com a lanceta bem afiada. Fica-se mais leve e pronto a fazer peito à próxima onda."
A leveza que se sente, porém, é breve e o prazer na mesma. Estou a falar de mim. Pode haver, e há decerto, escritores que sentem mais intensamente o prazer da escrita, ou o gozo de escrever, se é que ele existe de facto. No meu caso é tão fugaz que se não compara com a angústia de perfurar o poço de onde retiro a matéria, por vezes ígnea, com que vou lavourando as palavras. Escrevo com o fito de exorcizar a caterva de fantasmas que me persegue. Mas, quanto mais escrevo, tanto mais tenho para exorcizar.
Porque está constantemente a reescrever os seus romances? Assume-se como perfeccionista?
É uma questão de temperamento que me escapa a qualquer explicação racional. Há quem diga que se trata de narcisismo ou de perfeccionismo. Poderá ser! Sinto-me bem a reescrever um livro. É como se o escrevesse pela primeira vez. E nesta matéria, ressalvando as devidas distâncias, estou muito bem acompanhado: Miguel Torga, Eça de Queirós, Carlos de Oliveira... Se podar, nas páginas de um livro, galhos secos, e mondar uma ou outra erva daninha é ser perfeccionista, então dou com muito gosto a mão à palmatória...
"Raiz Comovida" é a sua obra emblemática? Neste romance vai fundo na linguagem popular. Foi uma forma de captar ou perder leitores?
Apesar de ser considerada uma obra emblemática da literatura de significação açoriana, não é a minha preferida. Cada escritor ama um determinado livro que escreveu acima dos outros, o que não significa que ele tenha razão. Para mim, e talvez pelo facto de ele ter apanhado uma grande tareia de um crítico açoriano, o meu livro preferido é o "Passageiro em Trânsito". Cada página desse livro foi parida com muita dor, pois trata-se de um ajuste de contas comigo mesmo e com a Ilha ou o fantasma dela em mim alojado. Mas, e voltando à "Raiz Comovida", ela não me fez perder leitores. Antes pelo contrário. No Continente, a obra foi bem aceite, sobretudo na província, porque o léxico lá empregado é português de lei, dos séculos XV e XVI, tal como Aquilino nas "Terras do Demo", cujo vocabulário é também, e em parte, comum ao nosso. Caiu em desuso nas grandes metrópoles, mas continuou a usar-se nas zonas mais insuladas, que funcionaram, por assim dizer, como frigoríficos que conservaram durante muito mais tempo o léxico arcaico. Se quisermos ouvir falar como se falava nas Ilhas há quarenta ou cinquenta anos, o melhor é dar um salto à América, onde os nossos emigrantes utilizam ainda muitos vocábulos que nas Ilhas, e mercê dos "media" e de um isolamento mais mitigado, já caíram em desuso.
João Gaspar Simões saudou muito bem o livro "Raiz Comovida", fazendo mesmo um paralelismo com Aquilino Ribeiro. O que sentiu?
João Gaspar Simões foi durante cerca de meio século o papa da crítica em Portugal. Instituiu a crítica semanal, primeiro no Diário de Lisboa e por fim no Diário de Notícias. Acertou muitas vezes nos seus juízos de valor, mas também errou bastante. Quanto ao meu caso, de facto saudou o primeiro volume de "Raiz Comovida", mas foi adiantando que o tipo de regionalismo utilizado não tinha futuro, à semelhança de Aquilino das Terras do Demo e de Vitorino Nemésio dos contos de Paço do Milhafre. Para Gaspar Simões, o universal media-se pela tradutibilidade da obra. Creio que será um critério muito estreito. Há obras intra- duzíveis que são universais. Já Miguel Torga escreveu que "o universal é o local sem paredes" e Aquilino considerava mais ou menos isto: "quanto mais local for uma obra, tanto mais universal é ela". Apesar de todas as reticências de JGS, considerou "Raiz Comovida" como "um colar de pérolas a que lhe falta o fio", querendo com isto significar que se não tratava de um romance, como eu inadvertidamente o subintitulei, mas de um embrechado de histórias que se encadeiam umas nas outras por meio de uma palavra puxa palavra da linguagem popular.
"Passageiro em Trânsito" é também uma crítica à nossa diáspora?
Considerar que "Passageiro em Trânsito" é apenas uma crítica contundente à nossa comunidade emigrante luso-americana, por quem tenho muito respeito, até porque sou filho, neto e sobrinho de muitos emigrantes, é reduzir o livro a uma dimensão mesquinha. Foi isto que entendeu o tal crítico açoriano, na altura radicado na América, mas dá-me a ideia de que não percebeu patavina do que leu. De facto, existe crítica a uma certa mentalidade própria de determinado emigrante bazofeiro, mas daí a afirmar-se que ofendi a condição do emigrante não é justo. O livro é, sim, um ajuste de contas ou, se preferir, um frente-a-frente comigo mesmo e a Ilha, assim em maiúscula, por ser uma entidade mítica que contém todos os afectos e desafectos, amores e desamores de um ilhéu desilhado que eu sou. É este o destino dessa raça de gente: se volta não se adapta, mas também não se adapta totalmente no húmus para onde foi transplantado. Ficou com as raízes aluídas num chão pouco firme...
Conviveu com Paulo Quintela e com Miguel Torga. Tem saudades dos seus tempos de Coimbra?
Quem haverá por aí que não tenha saudades dos seus 20 anos? No entanto, não sou muito dado à saudade lamecha e coimbrinha que, por vezes, cons- titui doença crónica de milhares de bacharéis que se formaram na Lusa Atenas e enxameiam os quatro cantos do País, tentando, debalde, aprisionar o tempo. Vivi numa república de açorianos, os Corsários das Ilhas, e durante o tempo em que lá permaneci tive muitos momentos de alegria, ensombrada sempre pelo fantasma da guerra colonial, que rebentou poucos meses depois de ter chegado como caloiro a Coimbra. Vinha da Ilha como um bicho-de-conta, metido consigo, pensando que sabia alguma coisa, mas não. Nesse longínquo ano de 1960, a lonjura entre o Continente e as ilhas era realmente um grande obstáculo. Hoje, feliz ou infelizmente, já não. Os estudantes andam numa roda-viva ilha vai, ilha vem, com o maior dos à-vontades. Nesse tempo, a perspectiva era de pelo menos um ano a remoer saudades da Ilha e do que lá tinha ficado à nossa espera. Ter saudades seria, para mim, uma força de expressão, porque adoptei Coimbra como minha segunda pátria. De facto, tive o privilégio de conviver intimamente com Paulo Quintela, meu Mestre de Germanística e de muitos outros saberes aprendidos à mesa da tertúlia. De resto, saiu agora um livrinho, em edição refundida e aumen-tada, de minha autoria, publicado pela Imprensa da Universidade de Coimbra, que celebra o primeiro centenário do seu nascimento, ocorrido no passado mês de Dezembro, a que dei o título de "Com Paulo Quintela à Mesa da Tertúlia". Também convivi episodicamente com o poeta Miguel Torga.
"Culturas ocidental e islâmica estão a desmoronar-se"
Fale-nos da sua experiência no teatro de guerra na Guiné e da sua transposição para a escrita. Ainda hoje é importunado pelos fantasmas da guerra colonial?
Está ainda muito presente. Há milhares de ex-combatentes a sofrer sequelas da guerra colonial. Embora já haja uma mão cheia de grandes livros sobre a guerra colonial. Basta atentar nos exemplos de Manuel Alegre, Álamo Oliveira, João de Melo e Lobo Antunes, entre outros. A minha experiência de guerra deu-me também, 18 anos depois do regresso, um livro. "No Princípio" constituía uma das três partes de "Ciclone de Setembro". Mais tarde, em 1990, desenvolvi-o e autonomizei-o em livro que titulei de "O Braço Tatuado". Foi muito bem recebido pela crítica, mas foi pouco divulgado, uma vez que a editora que o deu a lume abriu falência pouco tempo depois. Será este livro um dos meus próximos trabalhos de reescrita.
A propósito dos cartoons sobre Maomé, como conciliar liberdade de imprensa e de expressão e respeito pelas crenças religiosas?
O que se passou com a reacção muçulmana aos cartoons de Maomé não se pode admitir, nem sequer pôr em causa a liberdade de expressão. Nem ninguém tem de pedir desculpas. Muito menos Portugal, numa declaração infeliz de Freitas do Amaral. Os primeiros cartoons foram publicados em Setembro por um jornal dinamarquês. Foi para tribunal, que não deu seguimento ao processo. Só agora a barbárie entrou a matar. Não quero com isto dizer que concordo com os cartoons. Nem com o preservativo no nariz do Papa João Paulo II, em cartoon publicado há anos pelo Expresso. O que penso é que há outras maneiras de reagir àquilo com que se não concorda sem ser com violência desabrida. Mas, repito, a liberdade de expressão não pode de modo nenhum ser posta em causa. São culturas diferentes, sempre o foram, e ambas estão a desmoronar-se: a ocidental e a outra. Enquanto não houver tolerância de parte a parte, nada feito. Recentemente, por ocasião do doutoramento Honoris causa de um líder espiritual muçulmano, na Universidade de Évora, o imã frisou bem este ponto e a pluralidade de opiniões.
Tibério Cabral
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sexta-feira, 4 de abril de 2008
domingo, 9 de março de 2008
quarta-feira, 5 de março de 2008
REVISTA OS MEUS LIVROS. MARÇO DE 2008. ENTREVISTA A CRISTÓVÃO DE AGUIAR.
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sábado, 1 de março de 2008
17 Perguntas a Cristóvão de Aguiar. SEMANÁRIO O DESPERTAR 29-02-2008:

17 PERGUNTAS A CRISTÓVÃO DE AGUIAR
Cristóvão de Aguiar, 67 anos
Nasceu na Ilha de São Miguel, nos Açores, e tem actualmente residência em Coimbra e Ilha do Pico. É escritor. É divorciado e tem três filhos
E-mail: cristovaodeaguiar@gmail.com
Melhores recordações da infância: R: Vivo ainda nesse reino encantado!
O que mais aprecia nos seres humanos? R: A amizade
E o que mais detesta? R: Hipocrisia
Coimbra em três palavras: R: Cidade do coração
O governo em três palavras: R: Não há alternativa credível
Portugal tem futuro? R: Tem, se o merecer e trabalhar
O melhor do mundo é (são): R: Os livros…
Onde está o mal deste mundo? R: O desconcerto entre as nações, as guerras, o terrorismo e as alterações climáticas
Três títulos para uma primeira página ideal: R: Palestinianos e Israelitas finalmente em paz!
Terminou a guerra no Iraque! Americanos Levantam Bloqueio a Cuba
A fórmula do sucesso: R: Suor, muito trabalho e alguma sorte também
Desporto favorito: R: Andar a pé…
Filme que gostaria de rever 10 vezes: R: A Quimera do Ouro
Uma data marcante (a nível pessoal): R: 8 de Setembro
Uma data marcante (país): R: 25 de Abril
Uma data marcante (mundo): R: 11 de Setembro
Um sonho por concretizar: R: Todos…
Um pesadelo que o atormente: R: A morte…
29.02.08
CW: Zilda Monteiro
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quinta-feira, 27 de dezembro de 2007
#Cristóvão de Aguiar, Escritor Universal, por Rita Basílio in Campeão das Províncias, 10 de Março de 2005 #CristóvãodeAguiar
“Poucos se aventuraram a ser marinheiros. Os que foram ficando em terra abraçaram outras ondas, talvez mais amargas, sem barcos nem navios. Quanto a mim, cumpri o meu destino: trago uma Ilha servindo-me de lastro num dos porões abalroados da proa deste velho navio onde navego e me viajo”.
Não poderia ser mais inconfidente a pena de Cristóvão de Aguiar nesta passagem de «Marilha», título que, por estes dias a D. Quixote irá lançar. Aderir à leitura da obra do escritor, nascido em 1940 no lugar de Pico da Pedra, Ilha de São Miguel, e “refugiado” em Coimbra desde os turbulentos anos 60, é entrar no âmago da sua experiência mental e emocional.
Por uma razão simples. Escrever, argumenta no seu sotaque carregado, “é um exercício autobiográfico. O que acontece é que todo o autor altera cenários, personagens e mente. Quanto mais mentir, melhor!”
Numa palavra, Cristóvão é o criador e o protagonista das suas histórias. Desde a «Raiz Comovida», o primeiro volume a romper a barreira do conhecimento e a merecer uma distinção de peso – o Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências de Lisboa, em 1978 –, até «Trasfega: casos e contos», título com que arrecadou o Prémio Miguel Torga, em 2002.
Reconhece-se na escrita “como, e enquanto, pessoa-escritor”, atesta, por seu lado, Ana Paula Arnaut. A sua prosa, prossegue a docente da Faculdade de Letras de Coimbra, é “uma catarse onde se misturam tempos e vivências, espaços e recordações, pessoas e amores perdidos ou encontrados, mundos experimentados ou imaginados”. Mas universos recriados de dentro para fora, como bem testemunha «Trasfega», colectânea de histórias com perfume insular. Nesta, salienta Ana Paula Arnaut, ele “se perde e se encontra em casos e contos que, embora diferentes no que respeita à temática particular, parecem ser presididos pelo mesmo espírito e por uma mesma preocupação”. A saber: “dar conta das teias em que o Homem se vê enredado”.
É exactamente por isso que José Medeiros Ferreira considera Cristóvão um nome incontornável da produção literária contemporânea:
“Está para os Açores como Almeida Garrett está para a literatura portuguesa do século XIX”. Começou, retrata, por “mergulhar na memória ficcionada, assentando, depois, no registo diário e aderindo, mais tarde, à dimensão onírica, através do relato dos sonhos”, mas, em qualquer uma dessas fases, “tornou erudita a linguagem popular”.
Quatro décadas de vida literária.
Tal como a escrita, quase sempre mais sofrida do que prazenteira, também a vida não trouxe a Cristóvão de Aguiar só alegrias. Originário de uma família de camponeses e artífices, só prosseguiu os estudos para além da primária graças ao sacrifício do pai, que se empregou na base militar do arquipélago para fazer face às despesas crescentes.
Foi bom aluno, interessado, desde o berço, na literatura e até o responsável pela ausência de Medeiros Ferreira nos campos de futebol. Contagiou-o a tal ponto com o vício da Biblioteca do Liceu de Ponta Delgada que, anos mais tarde, inauguraram ambos uma colaboração literária n’«O Correio dos Açores», como uma página dedicada a Eça de Queirós.
À boleia de uma bolsa de estudo, viaja, findo o liceu até Coimbra, para cursar Filologia Germânica e só à custa de uma extraordinária resistência ao doloroso sentimento da solidão não regressou, pouco depois, ao regaço familiar. Valeu-lhe a imersão na vida cultural da cidade e nas tertúlias de figuras eminentes, onde sempre preferiu falar menos e escutar mais.
Apaixonou-se por essa efervescência intelectual e não mais se ausentou da cidade meses a fio a não ser por culpa da guerra. Fê-lo interromper o curso, atirou-o para a Guiné e pô-lo de rastos durante os anos seguintes à comissão.
Pelo meio nasceram-lhe dois dos seus três filhos. O primogénito, concebido em África e crescido com os olhos colados na sua obra, chegou a vender os seus livros porta a porta, promovendo-o como um autor que “não pede meças aos grandes nomes da literatura portuguesa”.
Hoje, José Manuel Aguiar, advogado de profissão, aprecia a sua obra como se de um tratado multidisciplinar se tratasse. “Ela abarca a História, a sociologia, o fascismo, a vida académica de Coimbra, a portugalidade e, acima de tudo, a alma do povo açoriano”.Curiosamente, o primeiro registo que o antigo redactor da revista «Vértice» escolheu para se expressar foi a poesia. Antes mesmo de se licenciar, de dar aulas em Leiria e de se tornar director de Inglês na Faculdade de Ciências de Coimbra – funções que desempenhou durante 30 anos e até se aposentar –, estreou-se com um livro de poemas. Hoje, vê esse «Mãos Vazias», surgido em 1965, como “mau, muito mau”. O único valor que lhe vislumbra é o de assinalar o início da sua vida literária.
Volvidos 40 anos, a Faculdade de Letras de Coimbra prepara-se para o homenagear. Sob a coordenação de Ana Paula Arnaut, está a ser forjado um livro que reúne grande parte das críticas que, ao longo destas décadas, foram sendo dirigidas à sua obra. São, ao todo, mais de dezena e meia de títulos nascidos da pena de um homem com o coração dividido. Ama os Açores, mas só deste lado do Atlântico, a uma distância espacial e emocional vasta e sentida, consegue ficcionar as suas experiências de ilhéu.
A sua matriz, porém, é a identidade de um povo. Já o disse o ensaísta Aníbal Pinto de Castro quando, no prefácio ao seu «Relação de Bordo II», afirma que observa a “realidade vivida por si com as lentes de uma agudíssima poética de dimensão universal”.
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Secção: entrevistas, Jornais, Marilha, PICO DA PEDRA
sábado, 20 de outubro de 2007
António Manuel Rodrigues, in Diário de Coimbra, 4 de Março de 2004.

Nascido nos Açores em 1940, mas radicado em Coimbra há 44 anos, onde se licenciou em Filologia Germânica, Cristóvão de Aguiar dá agora à Literatura Portuguesa uma Nova Relação de Bordo, último volume da trilogia de diários. Segue-se mais “trabalho e persistência”, sem se preocupar com prémios ou que há-de vir. O escritor, que amanhã, pelas 16h30, ouvirá Ana Paula Arnaut (Professora de Literatura da Faculdade de Letras), apresentar, na Casa Municipal da Cultura e no âmbito da Mostra Cultural da Universidade, a sua nova obra, tem sido assemelhado a grandes vultos da literatura, mas considera-se um “simples mortal”.
Simples sim, nota-se nesta entrevista, mortal também, naturalmente, mas, pela obra literária, indiscutivelmente invulgar.
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Secção: COIMBRA, entrevistas, Jornais, Relação de Bordo III
sábado, 8 de setembro de 2007
CRISTÓVÃO DE AGUIAR ENTREVISTADO POR ANTÓNIO MANUEL RODRIGUES DO DIÁRIO DE COIMBRA
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Secção: entrevistas, Relação de Bordo III
TANTO MAR
do qual este poema começou a nascer.
Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.
Manuel Alegre
Pico 27.07.2006



























