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quarta-feira, 6 de junho de 2012

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Cristóvão e Francisco de Aguiar em Francês "Catarse"

 L’incipit de Catarse

L’ordinateur est déjà installé dans mon nouvel appartement. L’adresse électronique ne change pas. Le technicien à peine parti, j’ai entrepris tout de suite de voir mon courrier. Il y en avait. Comme l’on pouvait prévoir, le  premier message que j’ouvris était de toi… J’aime habiter dans mon nouvel appartement. À vrai dire j’ai tout en ordre, il me faut juste installer la chaîne stéréo. Je me sens fatigué, mais de bonne humeur. Je vais maintenant à la fête des finalistes de mon Lycée.

La lettre que je viens de lire m’a été agréable, car tu t’adaptes bien à ton nouveau petit coin, the corner of your own1. En même temps, cette lettre m’a donné l’occasion de me rappeler une foule de souvenirs, à moitié oubliés, mais latents, liés aux maisons et aux déménagements respectifs et à leurs complications […]. Ton changement de maison et de ville a dû être la meilleure et la plus sage décision que tu aies prise ces dernières années. Il devenait insupportable et déprimant d’habiter, durant quatre décennies environ, dans la même petite ville où tu as tant souffert, physiquement et psychologiquement ! […] La maison est notre miroir, ou, comme le dit un proverbe anglais : An Englishman’s home is his castle2 … Et ta nouvelle maison, située loin des souvenirs massacrants, non souillée par des amertumes ou des esprits, deviendra ton refuge… N’accroche pas aux murs les portraits des fantômes qui te tourmentent. Range tes affaires lentement, cette tâche est un calmant, mets tes livres à portée de la main et de l’esprit. Ils te tiendront une agréable compagnie, silencieusement (mieux encore), qui sait s’ils ne t’offriront pas une intimité affectueuse, précisément parce qu’ils sont naturellement aveugles, sourds et muets. Dans un resserrement plus aigu de solitude, tu sais qu’ils sont là à ta disposition et tu pourras, à tout moment, leur poser les questions les plus absurdes, ils ne se fâcheront pas ni ne bouderont si tes visites sont espacées.  Ils n’arrosent pas la fleur de la jalousie et écoutent encore moins les mauvaises langues. Grâce à leur nature et à leur rôle, ils sont tolérants et ne se plaignent jamais. Si quelque souvenir des plus vifs vient subitement frapper à ta porte, mets-le dehors et sors : marche, va à la piscine, évoque un souvenir agréable et demande-lui d’expulser le mauvais… Je suis sûr que ce changement de maison et de ville sera le commencement d’une nouvelle phase dans ta vie. Savoure-la en toute plénitude. Lorsque tu ouvriras la porte, n’oublie pas de nettoyer tes pieds, pour qu’aucune poussière obstinée de ta mémoire perturbée ne puisse y entrer. Difficile? Sans aucun doute! Mais l’impossible n’est pas, ni n’a jamais été, domicilié dans le royaume de la volonté. Tu dois te souvenir que tu m’as téléphoné la veille de ton déménagement. Tu t’en souviens sans doute.  Touchée par l’ombre ta voix ne m’a pas trompée. Cela m’a perturbé : j’ai pressenti une rechute de dernière heure… Je me suis contenu juste à temps, je ne pouvais pas te le révéler dans l’intonation de ma voix, qu’une inquiétude soudaine m’avait envahie […]. Chaque fois qu’ils déménageaient, certains membres de notre famille la plus proche étaient enclins à souffrir de graves troubles psychologiques. Tu te souviens de Maria Manuela, surnommée Mané, la fille de tante Maria da Ascensão ? Avant de partir en Amérique, elle a déménagé sept fois! Pour paraphraser le poète Manuel Alegre, on dirait qu’elle était à la recherche de la maison qui n’existe pas

J’ai eu de la chance de ne pas être entré dans un tel tourment héréditaire : seul le fantôme de la villa de l’Alto da Granja m’a poursuivi pendant quelque temps, surtout dans mes rêves et dans mes cauchemars. Au final, avec une demi-douzaine de sorties en haut, tôt le matin, pour faire du jogging, j’ai affronté le spectre qui me rongeait les viscères les plus nobles et, peu à peu, le spectre de la mémoire affective s’est éteint. Je fus exorcisé de l’apparition impertinente.

Avant cela, et alors que j’étais encore étudiant, j’ai changé de chambre et de rue au moins trois fois et cela ne m’a pas surpris. Ma maison sur l’île, qui donnait sur la mer et qui se trouvait en face d’une autre sœur jumelle, me servit d’ « ersatz », ou si tu préfères, de placébo. »

 (Cristóvão de Aguiar e Francisco de Aguiar, Catharsis. Dialogue épistolaire en forme de roman, Lápis de Memórias, avril 2011, pp.11-12-13-14).

Fonte:



Em colaboração com os Colóquios da Lusofonia EM 2012 os estudantes de Mestrado, coordenados pela incansável Rosário Girão (Universidade do Minho, Departamento de Estudos Românicos no seu Mestrado de Tradução e Comunicação Multilingue) estão a trabalhar traduções em Francês de vários excertos de autores açorianos contemporâneos (ou o princípio ou o fim de cada obra selecionada) pelo que aqui publicaremos essas traduções depois de enviadas para os autores apreciarem. Chrys Chrystello AICL
Étudiante : Virginia Henry Martins
28.3.12

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Insígnias Autonómicas de Reconhecimento para Cristóvão de Aguiar, dia 28 de Maio de 2012

A cerimónia oficial do Dia dos Açores, que decorre na próxima segunda-feira, dia 28 , Segunda-Feira do Espírito Santo, terá lugar, este ano, na Vila da Povoação, ilha de S. Miguel.

Nestas cerimónias, organizadas conjuntamente pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores e pelo Governo Regional, com o apoio da Câmara Municipal da Povoação, serão agraciadas com insígnias regionais de mérito diversas personalidades e instituições da Região, em cerimónia que contará com as intervenções dos presidentes do parlamento açoriano e do Governo Regional.

O Dia dos Açores, que se destina a comemorar a açorianidade e a Autonomia, foi instituído pelo parlamento açoriano em 1980 (Decreto Regional nº 13/80/A, de 21 de Agosto).

Serão homenageadas várias personalidades a título póstumo, e também figuras como Renato Moura, das Flores, o realizador da RTP Açores, Zeca Medeiros, ou o escritor Cristóvão de Aguiar, Ricardo Serrão Santos, que dirigiu o Departamento de Oceanografia e Pescas, na Horta, por mais de 14 anos, Luíz António de Assis Brasil (Porto Alegre), empresários como José da Costa Franco (estabelecimento comercial Riviera, em Ponta Delgada) e instituições como a Kairós ou a Federação de Bombeiros dos Açores.

(Fonte: Assembleia Legislativa Regional dos Açores)


Insígnia Autonómica de Reconhecimento
Destina-se a distinguir os actos ou conduta de excepcional relevância de cidadãos portugueses ou estrangeiros que:
É constituída por três peças (pescoço, peito e roseta).

terça-feira, 15 de maio de 2012

A UNIÃO Jornal online. Biblioteca troca livros dia 22 de Maio.

Mais de três centenas de livros de autores portugueses vão estar disponíveis para troca no próximo dia 22 de Maio, às 10hh0, na Praça Francisco Ornelas da Câmara, numa iniciativa promovida pela Câmara Municipal da Praia da Vitória, através da Biblioteca Silvestre Ribeiro.
A iniciativa, intitulada “Dar Uma Nova Casa ao Seu Livro” e preparada para assinalar o Dia do Autor Português, permitirá que cada visitante troque livros que possui por livros disponíveis na banca montada na Praça Francisco Ornelas da Câmara naquele dia.
Os livros à disposição são exemplares repetidos do acervo da Biblioteca Municipal Silvestre Ribeiro.
Estarão disponíveis livros de Alice Vieira, Clara Pinto Correia, Luísa Dacosta, José Jorge Letria, Cristóvão de Aguiar, Teófilo Braga, Raúl Brandão, Luís de Camões, Camilo Castelo Branco, David Mourão-Ferreira, Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Agustina Bessa-Luís, José Rodrigues Miguéis, Vitorino Nemésio, Fernando Namora, Eça de Queiroz, Aquilino Ribeiro, Miguel Torga, Pe. António Vieira, entre outros.
Segundo a organização, a cargo da Biblioteca Municipal Silvestre Ribeiro, estarão disponíveis romances, contos e ensaios de autores portugueses, assim como exemplares de literatura infantil e juvenil.
Com esta iniciativa, a Câmara Municipal da Praia da Vitória assinalará o Dia do Autor Português, além de procurar promover a leitura de textos portugueses que marcam a Literatura nacional.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Duarte e Círiaco - "Naufrágio" letra de Cristóvão Aguiar. Single 1969.




A história que eu vou contar
ouvi-a na minha aldeia
onde à noite a voz do mar
murmura canções na areia.


História de pescadores
do cais negro da Pontinha
onde há grandes senhores
que bocejam à noitinha.


Foi o barco do Zé Tordo
partiu na noite para o mar
e na madrugada ao porto
o seu barco sem chegar.

Encheu-se a praia de gritos
de gente da minha aldeia
ao ver o corpo do Zé
trazido na maré cheia.

Ouvem-se vozes, coitado
cinco filhos e mulher
sem uma côdea de pão
sem um abrigo sequer.

E no enterro à viuva,
levando ao Zé muitas flores,
prometeram-lhe a sua ajuda
o povo e os grandes senhores.

Mas dois anos já são passados
e na praia da minha aldeia
vêem-se cinco crianças
brincando nuas na areia.


E da moral desta história
tirem vossas conclusões
uma família não vive
só de boas intenções.


(Cristóvão de Aguiar)

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Eduardo Brum conversa com Cristóvão de Aguiar no Mundo Açoriano

Conversa
Os ilhéus são um
bocado bazofeiros
talvez por viverem
rodeados de mar
O escritor picopedrense conversa com Eduardo Brum sobre a sua obra, os Açores, Coimbra, a ilha do Pico, S. Miguel, o liceu de Ponta Delgada, as humilhações da infância e da adolescência...


A tua obra “Raiz Comovida” não gerou consenso quando foi inicialmente publicada…
Para além da surpresa de ter utilizado, como escrita literária, o léxico da Ilha, houve quem se entretivesse a discutir, teoricamente, se o livro caía no domínio do romance ou não. A chamada discussão sobre o sexo dos anjos… Havia dúvidas quanto à classificação clássica, que distingue entre romance, novela e conto. Gaspar Simões, o crítico mais semanal da imprensa portuguesa, escreveu que se tratava de um colar de pérolas ao qual faltava o fio! (Risos). Foi um grande elogio, sobretudo porque, além de vir de quem vinha, o crítico debruçava-se sobre outros dois escritores micaelenses, Dinis da Luz e Manuel Ferreira, e a apreciação sobre ambos não era muito favorável. A partir daí gerou-se a dúvida. E eu passei a fintar os críticos: romance ou o que lhe queiram chamar… novela em espiral… conto a que se acrescenta um ponto, etc.

Incomodavam-te as classificações?
As classificações não me incomodavam, porque já se não usam, foi chão que já deu muitas uvas. Já reparaste quão estúpido e difícil se torna distinguir entre conto e novela? Pelo número de páginas? Nunca soube nem curo de saber. No que me diz respeito, essa classificação ou destrinça que o crítico achava por bem fazer ocupava muito espaço antes de entrar no livro propriamente dito…

Quando olhas para trás, hoje, fazes um “balanço” da tua escrita?
Balanço em que sentido?

Que vês na tua escrita observando de longe?
Que vejo na minha escrita? Sou a pessoa menos indicada para discretear sobre este assunto. Normalmente, o escritor é o que sabe menos sobre a sua obra, por mais paradoxal que possa parecer... Mas, se insistes, vejo sobretudo narrativas e outras lérias sem classificação, além de uma poesia péssima, de que não me envergonho por ter sido, como qualquer outro dos meus livros, arrancada de mim… Só que o meu modo de expressão não era esse. Há quem diga que a minha prosa tem mais poesia que os versos. Falando há dias com o tradutor italiano de “Passageiro em Trânsito”, livro tão mal-amado e zurzido por uma luminária da crítica micaelense, dizia-me ele, modéstia à parte, que o livro parece-lhe que tem mais a ver com a poesia do que com a prosa…

És perfeccionista?
Não tenho pejo em afirmar que sou um grande perfeccionista ou narcisista, creio que tanto faz. Escrevo como quem pratica onanismo... Escrevo, emendo, corto, modifico, acrescento, até ficar com a cabeça num labirinto ou num “lavarinto”, como se diz na ilha… Então, quando manuscrevia, era o cabo dos trabalhos, porque não conseguia ver, no papel, emendas: tinha de reescrever tudo e, na reescrita, ia alterando, podando, uma verdadeira enxaqueca daquelas que se sofre durante o pós-guerra…

Corrigir é uma forma de bem escrever…
Pode não ser. Às vezes perde-se a frescura e o encanto das primeiras palavras que o escritor vai descobrindo… Só alguém alheio à criação poderá ver a diferença. O escritor, ao substituir, já está cansado daquelas palavras, podendo muito bem estar a substituí-las por outras com menos frescura… Miguel Torga, na ânsia de aperfeiçoar a sua escrita até ao osso, foi muitas vezes acusado disso. O meu mais recente livro, “Catarse”, foi terminado em Janeiro de 2011, mas em Março ainda estava a ser reescrito, o que não significa que seja uma obra-prima de escrita…

Que vês, então, olhando para trás?
Vejo-me viajante de uma narrativa interior, a viagem mais autêntica que o escritor pode empreender.

Mas há um discurso açoriano na tua escrita?
Com certeza. Um discurso micaelense, talvez seja mais correcto dizer. Açoriano é um adjectivo que não diz nada ou diz muito pouco, uma vez que temos nove realidades distintas no nosso Arquipélago. Não se fala açoriano! Fala-se micaelense, terceirense, etc.. Não se nasce numa ilha em vão. Há uma marca de origem. E é essa marca que vai entroncar na escrita portuguesa dos séculos XVI e XVII. Veja-se os termos “chamatão” e “pêloei”, discreto, no sentido de inteligente (provém do verbo discernir) entre muitíssimos outros, que já caíram em desuso na matriz, mas que ainda se utilizam nos locais mais afastados dos grandes centros, onde a língua se vai adulterando... Agora, com a rapidez dos meios de comunicação, houve uma espécie de nivelamento por baixo, o que leva muita gente a repetir as asneiras linguísticas que os locutores, os políticos e outros figurões vai debitando sem nenhum respeito pela língua, a nossa Pátria, como bem disse Fernando Pessoa.

A ilha de S. Miguel tem um discurso rico?…
O mais rico de todas as ilhas! Alentejano, transmontano… A nossa pronúncia é que nos trai. Comem-se as sílabas, e não raro não se entende. Mas o discurso escrito é rico no léxico e em certos achados linguísticos. Daí que a pronúncia não se pode nem deve confundir com o léxico, que é riquíssimo.

Há uma cultura açoriana bastante estendida no tempo que penetra muito na cultura portuguesa e que não é reconhecida como tal…
Açoriana, portuguesa… Não concordo com a distinção. Acho que a cultura portuguesa é que penetrou na nossa. É natural que tivesse havido muitas adaptações derivadas do meio, do clima, da actividade sísmica (veja-se o Espírito Santo, que se mantém vivo em todas as ilhas, enquanto na matriz de onde proveio há apenas resquícios), e foi essa actividade sísmica que fez perdurar, no tempo, o culto do Espírito Santo.

O estereótipo da cultura açoriana está muito associado a nomes como os de Antero de Quental, Vitorino Nemésio, Natália Correia…
Mas a cultura açoriana não se resume a esses nomes. Haverá, porventura, alguma coisa que lembre a Ilha na obra de Antero? Em Natália Correia, só muito no fim, porque, antes, quando ela deslumbrava toda a Lisboa do seu tempo, não queria, não gostava que lhe lembrassem a sua origem ilhoa. Respondia que tinha daqui saído muito novinha (cinco anos) e não se considerava filha cultural da Ilha onde nasceu… Mais tarde, era chique ser das ilhas, escrever livros ou poemas com fundo ilhéu, mesmo que fosse a martelo, isto é, de fora para dentro. A ilha não fazia parte do sangue. Nemésio, Roberto Mesquita, esses sim. Espelham o viver rodeado de mar por todos os lados… Aqui há uns anos, houve um concurso literário da Secretaria Regional da Cultura, a que podiam concorrer residentes, não residentes, mas cá nascidos, e todos os que falavam a Língua Portuguesa que nunca cá viveram (ridículo!). E mais ridículo ainda era o facto de para os residentes e os açorianos que viviam noutras partes o tema ser livre (jogos florais). Para os não naturais, o fundo das obras tinha de reflectir a ambiência das ilhas (magnífico!) Ganhou, nesse ano, uma escritora coimbrã, com um romance de setenta páginas, sendo o prémio de oitocentos mil escudos, mais de mil por página. Li o livro, tenho-o aqui à minha frente: uma “novelada” (intitula-se novelos), escrito a partir de folhetos turísticos para que houvesse cheirinho a hortênsia, a bosta de vaca, a “bedume” de polpa e a pasto… E o júri composto por altas pensâncias de Lisboa caiu na esparrela como canarinho…

A tua escrita veio “desenterrar” o discurso da cultura açoriana mais profunda…
Não desenterrei coisíssima nenhuma, não fiz investigação linguística e, se o fizesse, a naturalidade da escrita ia-se... Tratava-se de uma questão estética. Eu falava assim, ouvia falar do mesmo modo, e queria transformar o nosso léxico em linguagem literária… Se o consegui, ou não, não me compete dizer.

Se não desenterraste, acabaste por explorar, potenciar…
Como me interesso muito pela Língua Portuguesa, procurava saber por que é que se diz isto, por que é que se diz aquilo… e verifiquei que boa parte do que dizemos em S. Miguel é português arcaico.

A tua escrita tornou-se uma espécie de “ponte” entre vários tempos da cultura portuguesa…
“Raiz Comovida” era incompreensível para Gaspar Simões, mas em regiões como Bragança, Trás-os-Montes em geral, Beira Alta, há pessoas que o entendem e utilizam muitos desses termos incompreensíveis para os salões lisboetas, onde se pronuncia “insêto”, e outras estupidezes... Repara no termo “pitafe”, que se usa também no Alentejo (a nossa matriz linguística) e se aplica a qualquer coisa que tem defeito – esta sopa tem “pitafe”… Provém do termo “epitáfio”. Os açorianos levaram a Língua Portuguesa para o Brasil (a primeira leva de emigrantes que saiu das nossas ilhas para o Brasil data de 1677). No Brasil, fala-se um Português por vezes muito mais correcto do que o que lhe deu origem, sobretudo nos particípios passados dos verbos e na abertura das vogais. Camões recitado por um declamador brasileiro é mais musical, até a métrica fica mais marcada… Não admira. Ficou ilhado, sem receber influências, tal como as nossas ilhas, Trás-os-Montes, Alentejo… Se, por exemplo, quisermos ouvir falar como se falava há cinquenta anos no Pico da Pedra e em Rabo de Peixe só temos de nos deslocar a Fall River, nos EUA. As pessoas não se integraram na cultura norte-americana, formaram um grupo à parte, e congelaram a língua que da ilha trouxeram. Agora o cenário está a mudar por causa da RTP Internacional. Todavia, não advogo que todos falem da mesma maneira. O que dá profundidade cultural a um país é a diversidade.

Há todo um peso cultural que transita para a tua escrita…
Nunca tive pejo de assumir a minha origem de ilhéu micaelense, ao contrário de alguns outros escritores que, só depois da “fundação” da chamada literatura açoriana, principiaram a ter orgulho na sua origem, porque só assim poderiam ficar no retrato de uma novel literatura.

De certa maneira, pareces ser a literatura em forma de pessoa… Ou se a literatura tivesse uma forma humana poderia ser a tua forma…
Não exageremos. Sou um escritor, mais nada. Há um mecanismo de criação que desconhecemos ou que desconheço. Quando estou a escrever, vêm-me à cabeça coisas que em estado de vigília não surgiriam.

É o discurso do inconsciente… discurso do irracional.
É preciso que haja um pretexto para que o inconsciente se manifeste ou exploda.

Qual o teu pretexto?
A guerra, a infância, a adolescência, a ilha, a freguesia onde fui parido, as pessoas que me marcaram, negativa e positivamente, o liceu que, durante nove anos, me marcou e me deixou algumas alegrias e muitas tristezas e amarguras…

O liceu daquele tempo foi uma humilhação?
No liceu, tive duas fases: a da humilhação e a da glória, embora esta última fosse falsa. Se não tivesse ido estudar para Coimbra e tivesse acreditado no que me diziam alguns dos meus mestres de Português, teria ficado convencido de que era um sábio. Ficar na ilha é por vezes uma maneira de julgarmos que somos os maiores do planeta e arredores… Na minha freguesia, fui mesmo humilhado em certas fases da minha vida. Por exemplo, quando chumbei dois anos seguidos no antigo terceiro ano do Liceu. Tuteavam-me quando passava no caminho, mas, quando me tornei bom aluno, nunca ninguém teve o alvedrio de me dar uma palavra de estímulo… Santa freguesia!

E Coimbra?
Em Coimbra, aprendi muito dentro e mais ainda fora da Universidade… Aprendi também a humildade, que era uma atitude que não tinha. Não admira. Era ilhéu, e os ilhéus, como se sabe, sabem tudo... Quando lá cheguei, na companhia de Viriato Madeira, dissemos um ao outro: “Mas nós não sabemos nada! Esta gente fala de outra maneira”. E não era uma questão de sotaque. Vi jovens que avançavam para uma Assembleia Magna e que abordavam os assuntos de forma desassombrada e assombrosa, num discurso que se podia escrever… Manuel Alegre era um deles! O choque foi tal que, a certa altura, quis mesmo vir embora e escrevi uma carta à família com esse intuito. Se fosse hoje, tinham-me respondido: “Vem, querido filho, que aqui estás no teu cantinho, sossegado, fora dessas babilónias de pecado…”

É como se viver na ilha limitasse a capacidade de reflexão ou de expressão?
Não é só isso. É que todos os ilhéus são um bocado bazofeiros, talvez por viverem rodeados de mar. Julgam que o centro do mundo se instalou ou passa pelo seu umbigo... Resolvem tudo… sabem tudo. Até há quem diga: “Se eu fosse primeiro-ministro, punha este país de pé num zape…”, ao que apetece responder: “Muito bem falas, Manel, mas como irás pôr o país em pé, se nem sabes governar a tua casa?”

Há muita falta de humildade…
Com certeza. E o medo de ser frontal. Quem porventura o é pode sofrer alguns amargos de boca… Ser crítico é ser má-língua, ter um feitio insuportável, intransigente, casmurro, explosivo, e tudo de mau que existe debaixo da rota do Sol… Tal como eu, como dizem Onésimo, Daniel de Sá, e outros ilustres intelectuais da nossa praça, o Campo de São Francisco… Custa-me a entender que alguns intelectuais vão ao ponto de criticar quem tem coragem de assumir certas posições diferentes do politicamente correcto. Só conseguem falar por trás, é mais seguro, dá milhões, é-se bem-visto pelas autoridades culturais, dá viagens e outras benesses…

Não será que as pessoas estão “formatadas” para funcionarem segundo determinadas regras, já que nos meios pequenos a noção do outro é muito mais forte do que nos meios maiores? Nas ilhas, há uma noção de vizinhança muito acentuada. Vai-se ao café e o empregado diz-nos: “Que vai ser, vizinho?...”
A vizindade sempre foi muito importante. Ser vizinho é, por vezes, pertencer à mesma família, mas se há malquerenças, é o diabo entre as couves. Já diz o povo: “Antes ter um mau ano que um mau vizinho”.

A proximidade do outro tem muita influência no dia-a-dia…
É verdade. Mas, por vezes, caímos nos estereótipos. Por vezes perguntam-nos: “Como está, como tem passado? Muito bem, obrigado”. Mas se a pergunta for – “estás bem?” – e a resposta – “ão, estou muito mal”, a reacção que obtenho é: “Isso não é nada, isso passa…”, e a pessoa que indagou dá meia volta e vai-se embora. Bebe uns copos, vais ver que ficas rijo! A resposta esperada, sacramental, seria: “Estou muito bem, obrigado!” Ora, isto não é nada, isto não é convivência.

Tu não és assim?
Não sou e por isso apanho cada dissabor…

Essa tua fuga à regra cola-te a uma imagem de conflito e de polémica…
E dizem que perco mais do que ganho com estas coisas. Ganhar o quê? O apreço de medíocres? Tenho escrito em jornais sobre assuntos com os quais discordo. Na ilha do Pico houve pessoas que deixaram de falar comigo por essa razão, algumas delas por medo. É que naquela ilha ainda se fala da justiça da noite…

Como surge o Pico na tua vida?
Eu conhecia o Pico muito mal (fui lá pela primeira vez, durante uma simples manhã, na viagem de finalistas do 7º ano do liceu). Em 1996, juntei, em Coimbra, um grupo de 29 pessoas e combinámos ir ao Pico por 15 dias: sete dias no Pico, dois na Terceira e os restantes em São Miguel. Principiámos pelo grupo central porque tinha a minha fisgada: quando chegássemos a São Miguel seria a apoteose! Quando lá chegámos, fomos percorrer a Ilha e ver os locais mais consabidos… Todos gostavam muito, mas logo a seguir comentavam: “É muito bonito… mas o Pico…”. Um dizia-o, o outro repetia-o e eu próprio dei por mim também a dizer: “É muito belo, mas o Pico…”. Há qualquer coisa naquela ilha que nos atrai…

É verdade.
Até pode ser magnético. Numa noite limpa, as estrelas brilham mais sobre o pico do Pico. Decidi fazer lá uma casa. Ali, eu sentia o arquipélago. É que a ilha em frente, segundo Raul Brandão, é muito importante. Dá-nos a sensação de que há mais mundo, de que não estamos desacompanhados…

É uma sensação completamente diferente de viver em S. Miguel…
É verdade. Para mim, a ilha em frente era a Serra de Água de Pau… Santa Maria só muito raramente se mostrava como uma sombra no horizonte, e quando assim acontecia, tínhamos chuva pela certa. Mas tive sorte. Quando entrei para o liceu, em 1951, as camionetas da Ribeira Grande eram bastante irregulares e avariavam em quase todas as viagens. E então ficou decidido que eu ficaria alojado numa pensão, em Ponta Delgada. Nessa pensão, tive o privilégio de encontrar jovens estudantes de todas as ilhas, mais velhos do que eu, e passei a dar-me conta da geografia, pronúncias e maneiras de pensar diferentes. Só conhecias as ilhas pelo mapa…

Não te esqueças de que estávamos a falar da tua decisão de fazer uma casa no Pico…
Ah, pois. Arranjei um terreno, em S. Miguel Arcanjo, de onde se via a ilha de S. Jorge de ponta a ponta! Era um pasto. Perguntei ao vizinho se a propriedade estava para venda. “Não sei”, respondeu ele. “Isso é de um senhor que está no Canadá. Mas, se quiser saber, pode falar com a cunhada, que mora aqui mais acima. É procuradora e contacta com ele todas as semanas”. E assim fiz. Dias depois, soube que o proprietário estava na disposição de vender o terreno. Aceitei o preço, não regateei, e fechei negócio. Disseram-me que era muito caro, mas eu não quis saber. Comecei logo a fazer a casa. À moda antiga do Pico, de acordo com as leis anti-sísmicas

Miguel Torga é importante na tua vida…
É, com certeza. Tem uma escrita telúrica, na qual arranca às pedras de Trás-os-Montes aquela concisão, aquela secura… aquele não desperdício de palavras.

Em tempos, li bastante da sua obra, mas hoje não o voltaria a fazer…
Uma pessoa também não pode estar sempre agarrada ao mesmo escritor… O que é preciso é saber se a nova geração o lê ou não.

Eu deixei de ler o Torga, mas não deixei de ler o Eça…
Torga reflecte na sua escrita um Portugal que, em parte, já não há, mas a mentalidade do povo continua: os seus vícios, defeitos, manhas, esperteza saloia, comuns a todos os povos. Por isso, a sua obra continua válida (pelo menos para mim) e universal.

Torga não deu o salto para a contemporaneidade…
Não sei muito bem o que é a modernidade. Badala-se tanto sobre ela, que acabo confundido. Será a modernidade sinónimo de tecnologia avançada, comunicações instantâneas? E o homem, como se encontra nos seus instintos? Teria evoluído a par de toda essa parafernália tecnológica? Ou terá ficado, no íntimo, igual ao seu antepassado das cavernas? Mata-se hoje em dia com a mesma crueldade com que se fazia há milhares de anos. Talvez haja mais requinte derivado da modernidade e das suas consequências. É evidente que a escrita e a arte em geral devem acompanhar esse desenvolvimento. Mas, se reflectem o Homem na sua humanidade, os temas são sempre os mesmos: a morte, o amor, o ódio, e tudo o resto que o ser humano carrega dentro de si desde que apareceu à face da Terra…

Hoje, prefiro ler um livro teu do que um livro do Torga. Tens uma capacidade de abertura que ele não tem.
Não sei aonde pôr as palavras com essa tua afirmação! Torga é Torga e eu, à sua ilharga, sou um pigmeu. Convivi com o Torga durante um ano e tal. Todos os dias ia buscá-lo ao consultório para irmos dar uma volta por Coimbra ou arredores. “Ó Cristóvão, podemos ir ali a cima?” Eu percebia o que ele queria. “Vamos ali àquele miradouro…”. Lá íamos. Tinha com certeza um poema a pedir para nascer… Vivia única e exclusivamente para a literatura. Transformava tudo em literatura. Disse à mulher em vésperas do casamento: “Vou procurar ser um bom marido, mas digo-te com toda a franqueza – em qualquer circunstância, troco-te por um verso!” Disse-o e escreveu-o. Esta era a sua têmpera. Quis ser escritor por vontade e fazia da escrita um sacerdócio laico. Um dia, contei-lhe certos passos da minha vida. Ouviu-me com muita atenção. Quando terminei, disse-me: “Por que não escreve tudo o que me contou? Talvez desse uma espécie de “Criação do Mundo…” Salvo as devidas proporções, digo agora eu.

Durante vários anos, Torga chegou a ser candidato ao Nobel…
Estou muito contente por termos um Nobel da Literatura português, mas penso, sinceramente, que o prémio tinha ficado muito mais bem entregue a Miguel Torga do que a Saramago. A sua escrita tem muito lugar-comum…

Saramago é um lugar-comum…
Pois…

Terminemos, voltando à terra onde nasceste: que representam os Açores, hoje, para ti?
Os Açores, para mim, hoje… são uma memória afectiva. Sou um misto de Açores e de Coimbra, embora eu não queira nem consiga distinguir entre ambos. Quando uma pessoa sai da sua terra desenraíza-se…

Deixa de ter pátria…
Passa a ter raízes aéreas. Perde o chão. E nunca está bem em parte nenhuma. Agora, estou mais calmo, mas no tempo de estudante, quando estava de férias em São Miguel, cheguei a voltar mais cedo para Coimbra. Todavia, uma vez lá chegado, arrependia-me! Havia uma dualidade, um conflito interior. Mas houve uma coisa interessante que aconteceu comigo: vim a São Miguel em 1994 e não fui ao Pico da Pedra. Nessa altura, senti-me muito melhor na ilha.

O Pico da Pedra era uma opressão…
Exactamente. A causa do meu mal-estar era o Pico da Pedra da minha infância e da minha adolescência. Comparando com a actualidade, eu diria que o Pico da Pedra tinha os seus talibãs! Ir estudar para Coimbra foi a oportunidade que tive para me desligar de tudo isso.
Cristóvão de Aguiar
Escritor
Natural de S. Miguel, residente em Coimbra e Pico

Mundo Açoriano

























segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Crítica literária do livro Miguel Torga o Lavrador das Letras, in Campeão das Províncias.

É um livrinho pequeno mas rico em testemunho. Em “Miguel Torga. O Lavrador das Letras. Um Percurso Partilhado” Com Chancela da Almedina, o escritor açoriano Cristóvão de Aguiar reúne excertos das suas publicações diarísticas—“Relação de Bordo” I e II, e a “Tabuada do Tempo—A Lenta narrativa dos dias”_, nos quais existem referências a Miguel Torga, fruto da convivência e do intercâmbio que ambos tiveram mais de um ano.

“ Os laços afectivos e literários que me enleiam à obra do poeta e escritor Miguel Torga Datam de há mais de 40 anos”, refere recordando as primeiras impressões da obra do médico, fruto de leituras ainda na ilha de São Miguel, enquanto jovem.”

Na altura leitor assíduo de Eça de Queiroz, Cristóvão de Aguiar confessa que, “pelo pouco que havia lido, notara logo que o estilo de Miguel Torga era totalmente distinto do cinzelado nas obras do pobre homem da Póvoa de Varzim—mais enxuto, descarnado e de uma seriedade granítica. Ali não se vislumbrava um pingo de ironia.”

Foi já em Coimbra, onde se instalou na década de 60, que Cristóvão de Aguiar conheceu verdadeiramente a obra do escritor transmontano. “Só em Coimbra, após a guerra colonial, e já numa idade mais amadurecida, me encafuei de tal forma na obra torguiana, que ainda hoje, passados todos estes anos, continuo a frequentá-la com uma assiduidade de devoto que ainda não esfriou a sua fé”, admite.

“ Esta paixão deve ter tido origem não só na prosa apurada com que o escritor lavra a página de cada livro e me fascina pela simplicidade trabalhada até à placenta da palavra mas também no facto de a ambiência espelhada nos “Contos” e sobretudo em  “A Criação do Mundo” ser idêntica, ou muito semelhante, ao pequeno grande mundo da Ilha onde fui nado e criado”, justifica.

Aida hoje, confessa ainda o escritor, ” a (re)leitura dos livros de Miguel Torga invade-me de uma paz rústica, genuíno oásis neste mundo barulhento e transmuda-se num conchego caldeado de uma ansiedade mansa”. Torga, acrescenta, “é uma personalidade rebelde e inquieta e refelecte-a como poucos em toda a sua vasta obra.
1.º Centenário do seu nascimento.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Lançado livro de Cristóvão de Aguiar em homenagem a Viriato Madeira, in azores digital

O presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande, Ricardo Silva, presidiu sexta-feira à noite, ao lançamento do livro "Catarse, Diálogo Epistolar em forma de Romance, da autoria do escritor açoriano Cristóvão de Aguiar e do seu irmão Francisco de Aguiar.

O livro "Catarse, Diálogo Epistolar em forma de Romance", é também uma homenagem à memória de Viriato Madeira, falecido a 15 de Janeiro deste ano, que dedicou boa parte da sua vida à melhoria da qualidade de vida da comunidade nortenha, tendo sido presidente da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários da Ribeira Grande.

Uma homenagem que Cristóvão de Aguiar quis prestar a "um Amigo que me acompanhou ao longo da vida. Sem­pre foste um ho­mem com muitas virtu­des e outros tantos defei­tos, como qual­quer ser humano. Somos e seremos feitos do mesmo barro bí­blico", como referiu na cerimónia de lançamento.
O livro que testemunha a "amizade entre Viriato Madeira e Cristóvão de Aguiar", como diria Ricardo Silva, foi apresentado no Salão Nobre dos Paços do Concelho, que naquela noite foi pequeno para receber familiares e amigos de Viriato Madeira e também o escritor. Na abertura do lançamento do livro e numa cerimónia carregada de emoção e saudade, o presidente da autarquia leu um texto que Viriato Madeira, em Maio de 2007, dedicou a Cristóvão de Aguiar, aquando de uma exposição bibliográfica do autor, que decorreu no Teatro Ribeiragrandense, inserida no programa comemorativa dos 500 anos de elevação da Ribeira Grande a concelho.

Neste texto e em traços gerais, Viriato Madeira afirmou acreditar que (…amanhã, quando a passageira alucinação e paixão pelo esoterismo passar, o seu nome ficará indelevelmente gravado na história da literatura portuguesa, com ressaibos dum açorianismo autêntico, mas sem as negativas fronteiras que tantas vezes querem impor, mas como uma parte dum todo da lusitana maravilhosa expressão escrita).
O livro "Catarse, Diálogo Epistolar em forma de Romance", da Editora Lápis de Memórias foi apresentado por Eduardo Jorge Brum.

Em "Catarse", revela Eduardo Jorge Brum, "Cristóvão e Francisco falam de si (como indica o título "Catarse"), mas, falando de si, falam de todo um povo, esse "Outro" que é toda a gente e em cuja história nos pensamos, nos revemos, nos conciliamos".

"Catarse" e nas palavras de Eduardo Jorge Brum "é a história de S. Miguel nos anos 50 e 60 do século XX. A história de uma ilha pobre que viu os seus filhos emigrarem ou partirem para a guerra. Um passado com dois caminhos apenas: partir para recomeçar ou partir para morrer e matar".
A obra fala ainda "de amor, sentimento de inimagináveis destinos, por tantas serem as suas formas, valências, possibilidades. Nós, açorianos; nós micaelenses, vivemos e crescemos no meio de um amor, que não poucas vezes encontrou o seu alimento na agressão". Esta agressão, segundo o orador era "em nome da educação, em nome do respeito, em nome da preservação de valores. Crescemos no meio de um amor de verdasca, pontapé, bofetada. Amor de pancadaria". Mas hoje, "vivemos tempos em que o amor já não se traduz em pancadaria. Até porque a lei não o permite. Mas nos anos 50 e 60, nos Açores, bater nas crianças e nas mulheres era uma atitude comum, pelo menos nas zonas rurais. Era uma "tradição". Uma "educação".



JOSÉ GARCIA

sábado, 30 de abril de 2011

"Catarse". Cristóvão de Aguiar e Francisco de Aguiar dedicam obra a Viriato Madeira. in Diário dos Açores.

O escritor açoriano Cristóvão de Aguiar e o seu irmão Francisco de Aguiar lançam no próximo dia 20 de Maio, na Ribeira Grande, o livro "Catarse, Diálogo Epistolar em forma de Romance", em homenagem à memória de Viriato Madeira, um ribeiragrandense que sempre lutou pela melhoria da qualidade de vida da comunidade nortenha.

O livro da Editora Lápis de Memórias é lançado pelas 21h00, no Salão Nobre dos Paços do Concelho, numa cerimónia presidida pelo presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande, sendo apresentado por Eduardo Jorge Brum. (Director do Semanário Expresso das Nove)

Viriato Hermínio Rego Costa Madeira, que faleceu no passado dia 15 de Janeiro, dedicou toda a sua vida profissional e pessoal pela luta por um maior equilíbrio social, pela defesa dos direitos dos trabalhadores, mesmo em detrimento de promoções pessoais e profissionais. Foi um apaixonado e empenhado sindicalista regional e nacional, e um dos fundadores da Comissão de Trabalhadores da SATA, tendo exercido, por diversas vezes, cargos na referida comissão, até à sua aposentação.

Para além disso, Viriato Madeira foi um dos colaboradores do "Primeiro Plano de Estudo Económico Estratégico" da companhia e do "Plano para a Segurança". Fez, ainda, parte da Direcção do Clube Desportivo e Recreativo da empresa.

Tendo as preocupações sociais sempre um elevado peso no seu percurso de vida, nos finais da década de 80 foi o fundador da delegação ribeiragrandense do C.A.R.A. – Clube dos Alcoólicos Recuperados dos Açores.

Um amante da leitura e da escrita, deixou o seu contributo para a literatura açoriana com textos inéditos que ainda não foram publicados, embora durante muitos anos tenho dado forma a crónicas e artigos de opinião na imprensa regional. Animou, ainda, uma "tertúlia" ribeiragrandense, com análises entusiastas dos mais variados escritores nacionais, regionais e estrangeiros.

Fez, ainda, parte do Círculo de Amigos da Ribeira Grande e, desde 2000 até à data da sua morte foi Presidente da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários da Ribeira Grande, tendo lutado pela construção do respectivo quartel e da piscina, novamente na senda pela melhoria da qualidade de vida de toda uma comunidade.

sábado, 9 de outubro de 2010

"Passageiro em Transito" de Cristóvão de Aguiar está a ser traduzido em ITALIANO, FRANCES, ROMENO, POLACO, , RUSSO, E BÚLGARO (e possivelmente Esloveno)


[...]A obra de escritores açorianos, CRISTÓVÃO DE AGUIAR, DIAS DE MELO, DANIEL DE SÁ, E VASCO PEREIRA DA COSTA, entre outros, está a ser estudada em mestrados e doutoramentos na Universidade de Constança (Constanz), na Roménia, e no Instituto de Estudos Ibéricos e Ibero-americanos da Faculdade de Novas Filologias da Universidade de Varsóvia, na Polónia, havendo já parcerias com tradutores colaboradores dos colóquios para a tradução da obra “O Passageiro em Transito de Cristóvão de Aguiar) ser traduzido em ITALIANO, FRANCES, ROMENO, POLACO, , RUSSO, E BÚLGARO (e possivelmente Esloveno). Espera-se que este trabalho esteja concluído dentro de dois anos, seguindo-se a tradução de Daniel de Sá (O Homem que queria ser Deus) e da poética de VASCO PEREIRA DA COSTA. Estas traduções serão, posteriormente, editadas naquelas línguas com o apoio do INSTITUTO CAMÕES (Portugal). [...]

Chrys Chrystello

Presidente da Comissão Executiva, Colóquios da Lusofonia, em artigo especial para o Mundo Lusíada.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Expresso das Nove 20.º aniversário: “Desafios dos Açores para o Século XXI”, publicados em livro, com um texto de Cristóvão de Aguiar.

Veja o texto aqui

Adicionar legenda
A edição, que reúne textos de 100 personalidades açorianas e comemora o 20º aniversário do Expresso das Nove, pode ser adquirida na Livraria Solmar.

O livro que assinala os 20 anos do Expresso das Nove já se encontra à venda na Livraria Solmar, em Ponta Delgada.

A publicação inclui a totalidade dos textos das 100 personalidades que participaram na edição especial do jornal, subordinada ao tema “Desafios dos Açores para o Século XXI”, que foi para as bancas no passado dia 26 de Março.

Da lista de personalidades que aceitaram pensar a Região e as suas potencialidades à luz de um mundo global nas décadas que se avizinham, constam nomes como os de Álvaro Monjardino, João Bosco Mota Amaral, José Medeiros Ferreira, José Manuel Monteiro da Silva, Mário Fortuna, Cristóvão de Aguiar, Gustavo Moura, entre muitos outros.

Todos os escritos estão agora disponíveis em livro de capa dura, que pode ser adquirido, em Ponta Delgada, pelo preço de 20 euros.

O Expresso das Nove foi fundado a 22 de Março de 1990, então com o nome de Jornal de Ponta Delgada.

Jornal Diario

2010-10-01 18:00:05

terça-feira, 31 de agosto de 2010

“Naufrágio”, de Cristóvão Aguiar, foi cantado por Duarte e Ciríaco com a música popular terceirense Charamba


Naufrágio

A história que eu vou contar
ouvi-a na minha aldeia
onde à noite a voz do mar
murmura canções na areia.

História de pescadores
do cais negro da Pontinha
onde há grandes senhores
que bocejam à noitinha.

Foi o barco do Zé Tordo
partiu na noite para o mar
e na madrugada ao porto
o seu barco sem chegar.

Encheu-se a praia de gritos
de gente da minha aldeia
ao ver o corpo do Zé
trazido na maré cheia.

Ouvem-se vozes, coitado
cinco filhos e mulher
sem uma côdea de pão
sem um abrigo sequer.

E no enterro à viuva,
levando ao Zé muitas flores,
prometeram-lhe a sua ajuda
o povo e os grandes senhores.

Mas dois anos já são passados
e na praia da minha aldeia
vêem-se cinco crianças
brincando nuas na areia.

E da moral desta história
tirem vossas conclusões
uma família não vive
só de boas intenções.

(Cristóvão de Aguiar)

sábado, 28 de agosto de 2010

PELA ILHARGA ESQUERDA – SOBRE A ESCRITA DE CRISTÓVÃO DE AGUIAR, A PROPÓSITO DE CÃES LETRADOS, por Carlos Alberto Machado

PELA ILHARGA ESQUERDA – SOBRE A ESCRITA DE CRISTÓVÃO DE AGUIAR,

A PROPÓSITO DE CÃES LETRADOS1

por Carlos Alberto Machado

AS PALAVRAS

As palavras armazenam-se como ladrões maduros

São flexíveis à memória são marinheiros em terra

Acontece dizer: levantem-se e caminhem

Mas quem somos e que hábito envergamos?

As palavras entontecem

Quando dispersas levantam rumos vários.

Zeca Afonso, Poemas e Canções

I shall never get you put together entirely,

Pieced, glued, and properly jointed.

(Nunca conseguirei juntar-te todo,

compor-te, colar-te e unir-te devidamente.)

Sylvia Plath, The Colossus (trad. Maria de Lourdes Guimarães)

[embaraço]

Falar de alguém. Falar sobre o que alguém escreveu. Em público. “Sempre que alguém me faz essa intimação fico sem saber aonde pôr as palavras. (…) Não sei onde as pôr. Rodo-as, camponesamente, entre as mãos, como o aldeão ao chapéu em casa de gente de cerimónia.2” Mas avanço. Fecho os olhos e avanço com uma voz inventada, “em punhal, de encontro ao lugar comum do peito, a ilharga esquerda.3” Nossas debilidades – ou fortalezas.

[inquirição]

Não irei “inquirir acerca das [suas] origens, das raízes que [o] fascicularam pela vida fora. De como foi possível arrancá-las e carregá-las depois na carroça de outro destino. Se houve ou não uma raiz literária que [lhe] deslavou a vida com metáforas…4”

1 Editora Calendário, 2008.

2 M/CS: 168-169.

Aconselho já os leitores a não se preocuparem em seguir as origens das chamadas para notas de rodapé, pois apenas distraem a leitura, que se quer proveitosa – a esmagadora maioria delas são, como se explicará, de Cristóvão de Aguiar.

3 M/CS: 164.

4 PT: 171.

Não. Escolhi o fascínio de viajar pelas palavras de Cristóvão de Aguiar – e é esse fascínio que desde logo afasta qualquer intento bisbilhoteiro. Empreendo a viagem, humildemente, com a esperança de poder sentir o que de outro modo seria impossível sentir: os encontrões inadvertidos das suas palavras, as suas lâminas ainda demasiado afiadas e a sua dureza rude – as suas palavras ainda antes de serem matéria narrativa, as palavras antes de (aparentemente) estabilizarem no devir das linhas paralelas de um texto.

[ideias]

Sinto que neste preciso momento devo partilhar convosco umas poucas ideias que hão-de evoluir por aí abaixo e, a modos de jangada, nos manterem à tona do entendimento: – a escrita não é encarada como “distracção”, divertimento” ou “habilidade circense”, para isso, procure-se na Internet um qualquer “professor Marcelo”; – “Por trás de cada linha ou verso escrito, muita dor sublimada se encontra latente. E sacrifício. E sofrimento.5” A escrita de Cristóvão de Aguiar exige dele, então, dor e sacrifício – mas não necessariamente do leitor, pergunto? “Quem escreve, disse alguém, escreve-se. (…) Recria-se a partir do intimamente vivido. Ou do revivido, ainda com mais intensidade, na arena de desforço onde a memória aguça e esgrime as suas armas de ataque e de defesa…6”; a memória, ainda: mesmo para haver algo de novo a dizer, é preciso “que se desça aos infernos do íntimo e se escarafunche o que lá possa haver (e há) de original, no sentido de que é só nosso.7”; - e, tão importante, o esforço persistente à procura da perfeição inalcançável, demanda sem descanso, polindo “cada palavra ou frase que consert[a] na bigorna da perseverança. E da paciência.8”

5 T: 15.
6 T: 15.
7 T: 15.
8 TT: 97.

[a procura da perfeição]

Retomo: Cristóvão de Aguiar diz-nos quase até à exaustão: a escrita é coisa de causar “instantes de um prazer rasante à dor”9. Não se trata aqui, obviamente, de querer elevar o acto criativo a coisa divina, de considerar a escrita como matéria exclusiva de eleitos ou de iluminados. Não. Cristóvão de Aguiar sabe, como poucos, do que se trata: de uma procura daquilo que sabemos, tragicamente, não se poder alcançar – é o que nos diz, por palavras semelhantes, Eduardo Lourenço, a propósito de uma possível definição de poesia e da sua inevitável tragicidade. Cristóvão de Aguiar, artesão honesto e honrado do dizer escrito, não pode deixar de o saber e de o sentir, e de o dizer descarnadamente: “Penélope desfazia para enganar os pretendentes. Eu para iludir o tempo e procurar uma perfeição que nunca se deixa apanhar. Situa-se sempre um pouco mais além.”10. Marca maior da sua escrita é a que releva da sua consciência aguda de ser uma nova “Penélope de pacotilha11”, nesse interminável fazer e desfazer os fios da vida e da escrita, em “constante dobadoira a remendar e a estraçoar os livros que componho com muito trabalho e suor” – palavras suas12. Uma luta “agónica para atingir a perfeição da escrita”, como acentua Eloísa Alvarez, na apresentação de A Tabuada do Tempo.

[afectos]

É agora o momento de dizer que Cristóvão de Aguiar, ao mesmo tempo que expõe e se expõe no labor miudinho de entrelaçar vida e literatura, demarca-se com clareza dos “marajás da crítica13”: “só eu é quem sabe as linhas com que coso ou cozo a minha escrita…”14. Por vezes é preciso dizer as coisas com os nomes certos: “Os escritores passam a vida, por via da inspiração, a roer em público o plástico traseiro da esferográfica. Os críticos fazem os seus biscates semióticos, e acabam por publicar autênticas peças sinfónicas em si maior – a chamada crítica em si.15”

9 TT: 318.
10 TT: 97-98.
11 CL, Nota Prévia: 9.
12 CL, Nota Prévia: 9.
13 Eduardo Lourenço, “Ficção e realidade da crítica literária”, in Eduardo Lourenço, O canto do signo. Existência e
literatura (1957-1993), Lisboa, Presença, 1994: 15 [A situação do crítico pareceu-se durante séculos à do marajá caçando o tigre real do alto da torre confortável e segura de um elefante.]
14 CL, Nota Prévia: 9.
15 PT: 162.
Num pequeno texto da década de cinquenta, Maurice Blanchot16 reflecte sobre a necessária impureza da crítica e em como nessa impureza se revela justamente a sua razão de ser. Se as obras são de uma infinita solidão, como dizia Rilke, nada há de pior para elas do que a crítica ao chamar a atenção sobre as obras, ao fazê-las sair desse ponto de fascinante discrição onde elas se formaram e onde gostariam de se fechar, ao abrigo de toda a curiosidade pública. Mas a crítica é uma força que passa rápida e na força da sua soberania introduz, sem precauções, as obras nas mãos do mundo. A essência do crítico moderno é ele estar ligado ao instante, à acção, ao quotidiano fugitivo, à instantaneidade. O crítico não deve ter arte própria nem talento pessoal, ele não deve ser o centro. É certamente um olhar, mas um olhar anónimo, impessoal, vagabundo. A obra, na sua intimidade fechada, é ciumenta, desejosa de negar o exterior: a tarefa da crítica não pode deixar de ser a de seu antagonista. Mas para contrariar a obra de arte, a crítica deve ao mesmo tempo aproximar-se dela, de a compreender, de a trair, não porque não a compreenda, mas exactamente porque ela é um esforço muito grande de compreensão. Mas a interpretação mais fiel é também a mais infiel, porque ele expõe completamente a obra à verdade do dia banal quando a natureza da obra é a de escapar à verdade.17 No fundo, aquilo que é a verdade da obra é inalcançável ou não existe. Como sublinha Eduardo Lourenço, o “(…) discurso dos outros só se aproximará da verdade da obra se tomar consciência da sua impossível formulação da verdade, ou da sua nãoverdade essencial”.18
Isto ajuda-me a dizer que nesta “apresentação”, como já se deverá ter percebido, não assumo o papel do crítico todo-poderoso, do crítico dono-da-verdade. Contudo, falar de alguém ou de uma obra é sempre um falar-sobre. Ora, este falarsobre assume também ele o risco da interpretação, o risco de dizer, mesmo sem o dizer: isto quer dizer aquilo. Como a ultrapassagem ou a fuga a este estigma será improvável, há quem escolha, como eu, dizer claramente duas coisas: a primeira, é a 16 Maurice Blanchot, «La condition critique», in Trafic, Revue de Cinéma, Paris, nº 2, Printemps 1992: 140-142. O texto foi originalmente publicado em L’Observateur, nº 6, de 18 de Maio de 1950. 17 Extracto do meu livro Teatro da Cornucópia. As Regras do Jogo, Prefácio de Alexandre Melo, Lisboa, frenesi, 1999.
18 José Gil, “O ensaísmo trágico”, in José Gil e Fernando Catroga, O ensaísmo trágico de Eduardo Lourenço, Lisboa,Relógio D’Água, 1996: 14. de que se está a falar de uma obra ou de um autor de quem se gosta – o que desde logo afasta qualquer máscara de “imparcialidade”; portanto, já fui, e serei, “parcial”,
é, pois, uma questão de afecto; a segunda, é que este falar, mesmo a “favor” do autor e da obra, é sempre um falar de um indivíduo que, como defende António Pinto Ribeiro, está historicamente situado, porque “toda a escrita sobre arte (…) é sempre determinada pelo local e pela época precisos em que é produzida, ou seja, deriva do ‘estado do sítio’ em que historicamente aconteceu.”19. «O que transportará consigo (…) o escritor que escreve sobre objectos ou situações de arte? Tudo o que ele próprio é e tudo o que sabe. Transporta consigo um conjunto de dados, determinados pontos de vista, um número limitado de preconceitos, algumas estratégias de análise o sexo, a sua sexualidade, algumas crenças (…).”20; portanto, este escriba que aqui hoje vos fala da obra de Cristóvão de Aguiar é um ser, como todos nós, sujeito às mesmas boas e más consequências de estar vivo e estar vivo num determinado local e numa determinada época. Por isso… Então, o que para trás ficou dito e o que se seguirá é, tão só, um testemunho de leitura – valha isto o que valer – e um desafio de partilha: muito de que aqui vos digo é dito através das palavras concretas de Cristóvão de Aguiar. Como alguém disse, a melhor crítica de um texto é o mesmo texto dito em voz alta.

[maravilhamento]

Os obras de Cristóvão de Aguiar são de uma enorme riqueza vocabular – que não se restringe ou deixa armadilhar em regionalismos, tenham eles deitado raízes atrás dos séculos ou não –, de muito variadas fontes, e passadas pelo filtro finíssimo do homem que sempre considerou “a escrita [como] a única maneira válida de [s]e apresentar documentado na vida.21” Mas este rico e variado universo vocabular nunca por si só faria literatura. O que seguramente aí nos atrai e maravilha é a desconcertante variedade de danças com que esse mundo imenso de palavras nos brinda, um aluvião de combinatórias que têm também o condão de evitar mostrar-nos os seus modos de fazer, 19 António Pinto Ribeiro, «Novas lógicas, novos sentidos», in Maria de Lourdes Lima dos Santos (coord.), Cultura e economia - Actas do Colóquio realizado em Lisboa, 9-11 de Novembro de 1994, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, col. Estudos e Investigações, nº 4, 1995: 91-96.

20 Idem, pg. 91.
21 RL-I: 304.

os seus esqueletos ou ossaturas – mas não evita, para nosso prazer, de mostrar a sua presença como distanciamento irónico, como por exemplo naquele que é para mim uma obra notável de inventividade, Passageiro em Trânsito: “(…) Afrânio (…) esgueira-se com certeza para as linhas desta escrita.” (33); “(…) tenciono ainda apanhá-lo no alto mar, se o tempo e a prosa estiverem de ficção.” (102). “(…) Agora vou puxar o senhor Afrânio padrinho para dentro do rego desta história.” (103) Resistindo, então, à vaidade de nos mostrar as suas habilidades construtivas, Cristóvão de Aguiar dá-nos em oferenda fluxos de palavras sem sobressaltos, dorsos nem sempre dóceis de sons e sentidos que nos impelem a viajar para espaços de ser até aí sequer imaginados. Mas surge sempre uma ocasião em que um pequeno escolho interrompe a marcha e então voltamos atrás para refazer caminho – que nunca se repete. E a cada regresso os trilhos aparentemente conhecidos fazem-se outros. E depois de muito caminhar cada palavra torna-se uma pedra em que nos refazemos e refazemos o mundo. E depois ainda deixamos de saber afinal que “história” ele estava a contar-nos e é então quando se dá em toda a sua magnificência o “alumbramento” da palavra, quando ela tem o atrevimento de querer ser, na qual e pela qual a vida se dá a partilhar.

[a construção de si]

Cristóvão de Aguiar desce “aos seus infernos do íntimo” e lá “escarafuncha o que lá é mais original”, no sentido do que possa ser apenas seu. Tal como Dom Quixote desce à caverna de Montesinos e de lá sai, vitorioso, com uma “história” que é só sua, assim faz Cristóvão de Aguiar quando desce ao seu “inferno íntimo”22. Embora aos olhos dos incrédulos “sanchos” estas “histórias” possam ser alucinações ou mentiras, o que é certo é que as “histórias” de ambos são na verdade absolutamente verdadeiras. E são-no porque pertencem a um outro patamar, a outra natureza, aquela que advém de uma paciente, e tantas vezes dolorosa, fabricação de si mesmo. Um homem – Miguel de Cervantes ou Cristóvão de Aguiar – elabora milhares de páginas escritas que mais não são que um processo de criação e de união de pontos que apenas no fim da obra justificam um nome. Cervantes no Dom Quixote não criou a figura, “Dom Quixote”, 22 Creio que Cristóvão de Aguiar é, aliás, leitor assíduo de Cervantes e do seu Quixote: ver por exemplo: TT: 73. mas sim a figura “Miguel de Cervantes”, tal como Cristóvão de Aguiar faz desde a primeira Relação de Bordo até a A Tabuada do Tempo – apenas para referir a sua escrita diarística, mas que a ela não se restringe. Com todos os livros que escreveu, não é apenas o trabalho laborioso da escrita em busca de uma impossível perfeição – de escrita e de literatura. O que sempre demandou, e ainda demanda, creio, é a sua própria (impossível) perfeição como ser humano, como homem. Mas isto não no sentido de algum dia vir a descobrir quem (na verdade) é, como se se tratasse de um tesouro ciosamente escondido por Deus, não. Não é um “procura-te e encontra-te”, ou um encantatório jogo infantil de “escondidas”, não. Trata-se, pelo contrário, de um processo de construção, no qual são usadas matérias bem à mão de semear: as palavras e a memória, mas uma memória que não se limita a rondar escaninhos mais ou menos obscuros do passado e a reavivá-los, mas uma memória que opera processos recombinatórios do vivido, os escolhe e monta e remonta sob um prisma que não é apenas devedor de uma hipotética verdade pessoal (e, no caso de Cristóvão de Aguiar, familiar). Imaginemos que a nossa vida certo dia se fragmentava em milhares de minúsculos pedaços e que nos era oferecida uma derradeira possibilidade de voltar a fazer deles um ser – de preferência cada um de nós mesmos em “versão aperfeiçoada”... – isto é, algo que de alguma forma voltasse de novo a fazer sentido. Sem livro de instruções – apenas Deus tem o seu e usou-o para fazer o mundo – que ou quem nos guiaria nesse empreendimento? Juntar às cegas os pedaços? Ao acaso? Cristóvão de Aguiar resolveu seguir outra “instrução”: a cada pedaço colou um nome, uma palavra; depois, foi experimentando juntar cada destes pedaços uns a seguir a outros, experimentou sequências curtas e longas; repetições; retornos; alguns pedaços foram abandonados ou desperdiçados, outros alcandorados a chaves-mestras das sequências de nomes e palavras, algumas delas novas, outras com novos usos que as posições relativas lhes ofereciam. Muito tempo demorou ele a fazer nova configuração dos fragmentos estilhaçados da sua vida – provavelmente ainda e sempre incompleta. Ou com tantas faces quantas lhe pode oferecer cada volta completa da roda de oleiro.

[obsessões]

Não gostaria de lhe chamar obsessões, mas por vezes parecem-se com isso. Algumas delas foram já afloradas, tais como a busca da perfeição, a busca da sua própria construção (ou a sua identidade, se se quiser), e a sua relação com a crítica. Acrescento à digressão uma espécie de montagem com as palavras do autor – as suas obsessões ou inquietações –, extraídas daquela espécie de oficina de escrita que é toda a sua produção diarística: o escrever-se com a plasmação da sua memória (de elefante); o incansável labor sobre a matéria palavra (rigor, precisão, esforço, dor, angústia, depressão, júbilo…).
Permitam-me chamar aqui uma voz que o próprio Cristóvão de Aguiar convoca para o seu primeiro Relação de Bordo: o poeta Joaquim Manuel Magalhães. É, para mim, este belíssimo poeta que, de tudo o que li sobre o nosso autor, aquele que, precisamente como poeta, isto é, como cúmplice da escrita, mais luz nos oferece para ler Cristóvão de Aguiar ainda com mais prazer. Diz ele – e desculpem-me a citação longa: “Um romance que parta da ligação entre um local de comportamentos e um contínuo fluxo verbal, desenfreado de memória, enternecido de situações e carregado de um ritmo transbordante não podia deixar de agradar mesmo a quem não lê um romance a não ser com uma certa distância. Fascinou-me muito mais o seu romance que Casas Pardas da Velho da Costa ou Directa de Nuno Bragança. A sua “istora” (termo sedutor) de reminiscências é muito importante. Deixe-me acentuar três pontos: – lembrou-me o António Manuel Pires Cabral a sua “matança” açoriana. Lembrou-me porque gostei muito de ambas; a emigração, dada sem demagogia nem complacências, antes como ir-se embora, com a consciência dos limites económicos duma colectividade; – a poesia narrativa dos corpos, dos desejos, das células familiares. – O processo: um encadeamento, menos narrativo que designativo da situação; quero dizer, o que conduz a istora não é um enredo, mas impulsos organizados a partir de momentos da memória, ligado sempre a situações sociais e comportamentais.”23 “Sinto pavor à morte.24”, diz Cristóvão de Aguiar. E quando a sua avó Hermínia ainda em vida se despede dele como se estivesse morta, ele fica “sem saber onde pôr as
23 RL-I: ???.
24 RL: 310.
palavras (…).25” Toda a sua escrita está marcada desde muito cedo, aliás, por este pavor, como ele próprio regista em nota de diário datada de 7 de Abril de 1965, quando escreve sobre a sua intenção de publicar o seu primeiro livro, de poemas: “(…) se morrer na guerra fico com descendência.26” (o livro, entenda-se). “Sempre tiveste um medo pânico da morte.27”, diz, mais tarde, de si para si.
O sofrimento de Cristóvão de Aguiar não é, seguramente, motivo de autocomiseração ou de exibição gratuita, mas não pode nunca deixar de gritar quando a dor lhe dói, e, quando alguma vez deixou de a passar a escrito, vem o inevitável queixume: “(…) talvez tivesse ficado com menos agrafos no corpo e decerto menos agravos na alma.28”
Para Cristóvão de Aguiar, escrever é na verdade um modo de se resolver,29 e é deste modo que ele o exprime: “(…) o modo de te resolveres por escrito (…)”. Que é como quem diz, uma espécie de renascimento. Como creio que já vos disse, em Cristóvão de Aguiar trata-se sempre, ou quase sempre (é preciso ter cuidado com as certezas), de uma eterna renovação: “É urgente reconstruíres-te. Trasfegares-te como teu avô fazia ao vinho novo. Desentulha-te dos montes de destroços e ruínas que te impedem o acesso à unidade original, à clarividência dos gestos, à limpidez da entrega. O melhor é escreveres-te. Necessitas de palavras. De muitas palavras em brasa, amadurecidas, capazes de te limpar de uma vida que se te azedou. Colhe o fruto sazonado que o tempo põe todos os dias ao teu alcance…30” O seu ofício é um “ofício de trevas31” E a divisa de Goethe poderia ser a sua: “Se tens um monstro, escreve-o.32” Para ele, “Escrever é um acto solitário, de introspecção profunda (…) não se compadece com o sol brilhante da chamada felicidade. Exige, sim,25 RL-I: 38. 26RL-I: 39. 27 T: 17. 28 TT: 195, sobre dever ter escrito há mais tempo sobre a sua dor da ausência do filho mais moço. 29 RL-I: 308. 30 T: 23-24. 31 RL-II: 110. 32 RL-II: 150. um estado psíquico de penumbra, situado entre a saúde e a doença, entre a mágoa e uma alegria meio triste. Era este o estado tranquilo que eu gostava de alcançar.33”, um “(…) estado de doce tensão interior (…)34” Apesar da sua persistência, não são poucos os momentos de desânimo, na sua procura incessante de perfeição: “O que tenho andado escrevinhando neste caderno mete-me nojo. Aliás, tudo quanto tenho feito ultimamente em matéria de escrita me desgosta.35” E nos piores momentos “Cresce-[lh]e a alma de um só lado.36” “Já não tenho que escrever. Fui esgotando o que julgava haver em mim depositado, à espera de uma inteligência que lhe desse uma ordem, um rumo, um vazão. Mas, também ela, me tem sido curta e madrasta – não lhe soube dar o uso e o óleo que ela requereria. E as coisas, como se sabe, embotam e embrutam por falta de serventia.”37 E desabafa: “(…) nunca acerto com a justa medida.38” “O ofício da palavra rende pouco e dá suores de aflição. Trabalhar. Trabalhar.39”
Não será estranho ouvir dizer a alguém tão perfeccionista: “(…) tenho pavor às palavras. Não sei se sabes que elas têm o condão de transfigurar coisas e criaturas. Bafeja-as de um sopro de vida verdadeira, transformando-as em seres de um outro mundo mais real e plausível do que este. Só de íntimo lavado e de ânimo aquecido consigo abeirar-me da palavra, quer para lhe rasgar o ventre, arredondar-lhe o corpo, afiar-lhe os gumes e os cumes, quer ainda para com ela travar uma luta, a que, não raro, só os alvores da madrugada vêm pôr ponto final. Nunca para adulá-la, porque, se o silêncio é de ouro, de mais valioso ouro será ainda a palavra gerada, amadurecida e parida na maternidade do verbo.”40

33 TT: 88.

34 TT: 78.

35 RL-I: 325.

36 RL-II: 106.

37 RL-II: 72-73.

38 TT: 37.

39 TT: 304.

40 RL-I: 340.

Cristóvão de Aguiar sabe que “(…) não po[de] negar que, por vezes, encontr[a] na escrita uma certa paz interina. Mas dá-[lhe]e também muita guerra…41” “Por trás de cada linha ou verso escrito, muita dor sublimada se encontra latente. E sacrifício. E sofrimento. Claro que já sofreste. E a maduridade e a distanciação? Quem escreve, disse alguém, escreve-se. (…) Recria-se a partir do intimamente vivido. Ou do revivido, ainda com mais intensidade, na arena de desforço onde a memória aguça e esgrime as suas armas de ataque e de defesa… (…) Exageras… Há sempre alguma coisa nova a dizer. É mister que se desça aos infernos do íntimo e se escarafunche o que lá possa haver (e há) de original, no sentido de que é só nosso. Tudo isto leva tempo, muito tempo. Tens de atravessar vastos desertos, sofrer muitas angústias, derramar suor em abundância. (…) Nada te detém quando galopas à garupa da imaginação e da fantasia.
Desde que te fervilha um poema ou uma história, pedindo forja, grosa e o demais ferramental com que a escrita se afeiçoa (…).42” Mas é “Caprichosa, a escrita. Deleita-se em vingar-se de quem dela se abeira de coração inseguro e de mãos limpas.43” Pacientemente, embora às vezes se sinta “(…) enjoado do mar encapelado em que a escrita se transforma (…)44”, Cristóvão de Aguiar persiste no seu trabalho interminável “de coligir, podar e limar centenas de páginas (…)45”, de as “ir colocando, obedientes, dentro do sistema nervoso da frase.46”, labor que noutras ocasiões parece descoroçoante: “(…) seis magras páginas em sete horas e picos de severa aplicação (…)47”; “Aqui em frente do ecrã do computador há não sei quanto tempo e sem conseguir pescar uma palavra das muitas que sinto correr pela ribeira que nasce e desagua em mim.48”; “[um dia em que] (…) só escutei as minhas vozes de dentro, quase sempre muito exigentes e duras comigo, não têm a mínima condescendência nem transigem um cisquinho no que diz respeito ao trabalho de escrita e a outros pontos da gramática de viver.49”

41 TT: 195.
42 T: 15.
43 TT: 17.
44 M/CS: 171.
45 TT: 74.
46 RL-I: 262
47 TT: 111.
48 TT: 72.
49 TT: 96.

[este livrinho]

“Os textos que compõem este livrinho, que ora vos apresento, foram extraídos, com ligeiras alterações, de vários livros meus [boa parte deles, por exemplo, d’A Tabuada do Tempo e de Ciclone de Setembro] onde essas histórias sobre cães e cadelas se encontram — os inseparáveis e afectuosos companheiros da minha infância e juventude.”50. Esta pequena declaração de Cristóvão de Aguiar pode servir-nos como guia de leitura de toda a sua obra. Em poucas palavras direi que se trata do complexo entrelaçar, quase promiscuidade, entre a escrita dita diarística e a escrita de ficção. É sempre Cristóvão de Aguiar homem/escritor que nesses dois registos se encontra e desencontra. De tal maneira e tão radicalmente o faz que diria que, com essa atitude, é a própria fronteira de géneros que se esbate, ou, num certo sentido, se clarifica e aprofunda aquela que para muitos é a mais forte possibilidade (ou validade) da narrativa ficcional: a implicação autobiográfica como derradeira possibilidade. Esta perspectiva, sobreleva e arrasta outra questão, que é a da tendencial anulação de fronteiras entre o real e o ficcional, isto é, de fazer derivar a diferença para outro patamar, onde são bem distintos os valores em causa, como seja, por exemplo, a possibilidade de considerar igualmente o real sensível como algo que se constrói autoralmente, e, assim, ser possível modelar o experienciado e o imaginado com as mesmas regras que a ficção utiliza.
Isto que parece apenas teoria é absolutamente claro na prosa de Cristóvão de Aguiar. Hei-de dar-vos um exemplo no final destas notas quando vos ler um trecho de um dos seus livros e vos convidar a reflectir a que tipo de obra do autor ele pertence. E acrescento ainda isto, que é claro e público: o primeiro Relação de Bordo, livro em jeito de diário que relata os anos 1964-1988, foi pacientemente escrito nos finais da década de 1990, com o auxílio da sua prodigiosa memória, de notas de época, cartas e, acrescento eu como óbvio corolário, do uso da mesma oficina em que se fabrica toda e qualquer ficção. “A minha escrita tem de ser coada pela memória afectiva.51” “Tenho de facto facilidade em me transportar a outras épocas da minha vida
50 CL, Nota Prévia: 10.
51 RL-II: 42.

e revivê-las quase com a mesma intensidade com que as vivi. Basta-me um incentivo que incendeie a memória.52”, diz-nos o autor com toda esta clareza. Os diários ou quasediários Relação de Bordo I e II, Nova Relação de Bordo e A Tabuada do Tempo são exemplares e eloquentes. Tal como as ficções Passageiro em Trânsito, Trasfega e Ciclone em Setembro. Podemos talvez dizer isto: Cristóvão de Aguiar é tão verdadeiro nuns como noutros livros. E a literatura ficcional é tão excelente tanto nuns como noutros. Ele sabe que as suas razões são “(…) razões que, por serem imaginadas, correm o risco de se tornar verídicas…53”
Os contos de Cães Letrados são, como disse, extraídos de vários livros do autor: e não errarei muito se afirmar que mais de metade destas pequenas ficções pertencem…aos seus livros ditos não ficcionais – os diários. Quem leu os livros anteriores só tem a ganhar em ler esta sequência – como nova. Aos leitores que só agora chegam ao mundo de Cristóvão de Aguiar, Cães Letrados é um saboroso aperitivo, recheado de bons sabores e bem nutrientes! Os contos podem agrupar-se em dois latos conjuntos: um, integra as estórias que o autor nos diz que vivenciou (mas só ele saberá a verdade – ou não…); outros, em que os cães são vestidos com um pêlo mais alegórico e por aí ironizam com figuras (supostamente não caninas) – cães polícias e polícias cães, cães universitários… – que todos podemos facilmente reconhecer no nosso quotidiano. Para Cristóvão de Aguiar, os cães têm sido “(…) povoadores de solidões acumuladas.54” Boa companhia, portanto. E agora, peço a vossa atenção para o trecho de que vos falei.

[prazer rasante à dor]

“A vontade de escrever sentida não me é bissexta como a escrita; só quando, nos anos do rei, executa a dança do ventre me caem todas as defesas: deixo então de lhe resistir e fico nela enleado como aranhiço em sua própria teia; nesses instantes de um prazer rasante à dor, sinto-me mais rente a mim e acareado por ela (…), atraindo-me
52 TT: 74-75.
53 T: 77.
54 NRL: 211.
para jogos preliminares do banquete dos sentidos que se vai seguir; não sei deslindar qual deles será o mais cativante, talvez ambos, assim como se torna impossível delimitar as fronteiras dos moldes em que será vazada a massa ígnea com que vou lavourando as palavras para se transfigurarem em magma e escrita, ou escrita de magma, cada extrema crescendo para a vizinha, invadindo-se reciprocamente, derriçando-se ou eriçando-se, acasalando-se por amor raramente espúrio, rumo a uma  nebulosa cada vez mais espapaçada de sombra na qual só cabe a morte total de todas as balizas entre suas terras comarcãs. Cuidado, porém: a morte traz no peito uma carta de alforria, no sítio exacto da cicatriz ficada do recontro; nessa sintonia vai originar-se uma ressurreição seguida de outro aniquilamento, e assim por diante, até a nebulosa se tornar no cerne de toda a escrita, sem castas nem marcos, sem sentinelas nem espias.55”

Lajes do Pico, 17 de Dezembro de 2008

ABREVIATURAS DA OBRAS DE CRISTÓVÃO DE AGUIAR UTILIZADAS:
CL = Cães Letrados, s/ l., Calendário, 2008
M/CS = Marilha (Ciclone de Setembro), Lisboa, Dom Quixote, 2003
NRB = Nova Relação de Bordo, Lisboa, Dom Quixote, 2004
PT = Passageiro em Trânsito, Lisboa, Salamandra, 1994
RB I = Relação de Bordo (1964-1988), Porto, Campo das Letras, 1999
RB II = Relação de Bordo II (1989-1992), Porto, Campo das Letras, 2000
T = Trasfega, Lisboa, Dom Quixote, 2005
TT = Tabuada do Tempo, Coimbra, Almedina, 2007
55 TT: 318.

CARLOS ALBERTO MACHADO, poeta, dramaturgo e ensaísta

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006