Mostrar mensagens com a etiqueta PICO DA PEDRA. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta PICO DA PEDRA. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 6 de junho de 2012

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Cristóvão e Francisco de Aguiar em Francês "Catarse"

 L’incipit de Catarse

L’ordinateur est déjà installé dans mon nouvel appartement. L’adresse électronique ne change pas. Le technicien à peine parti, j’ai entrepris tout de suite de voir mon courrier. Il y en avait. Comme l’on pouvait prévoir, le  premier message que j’ouvris était de toi… J’aime habiter dans mon nouvel appartement. À vrai dire j’ai tout en ordre, il me faut juste installer la chaîne stéréo. Je me sens fatigué, mais de bonne humeur. Je vais maintenant à la fête des finalistes de mon Lycée.

La lettre que je viens de lire m’a été agréable, car tu t’adaptes bien à ton nouveau petit coin, the corner of your own1. En même temps, cette lettre m’a donné l’occasion de me rappeler une foule de souvenirs, à moitié oubliés, mais latents, liés aux maisons et aux déménagements respectifs et à leurs complications […]. Ton changement de maison et de ville a dû être la meilleure et la plus sage décision que tu aies prise ces dernières années. Il devenait insupportable et déprimant d’habiter, durant quatre décennies environ, dans la même petite ville où tu as tant souffert, physiquement et psychologiquement ! […] La maison est notre miroir, ou, comme le dit un proverbe anglais : An Englishman’s home is his castle2 … Et ta nouvelle maison, située loin des souvenirs massacrants, non souillée par des amertumes ou des esprits, deviendra ton refuge… N’accroche pas aux murs les portraits des fantômes qui te tourmentent. Range tes affaires lentement, cette tâche est un calmant, mets tes livres à portée de la main et de l’esprit. Ils te tiendront une agréable compagnie, silencieusement (mieux encore), qui sait s’ils ne t’offriront pas une intimité affectueuse, précisément parce qu’ils sont naturellement aveugles, sourds et muets. Dans un resserrement plus aigu de solitude, tu sais qu’ils sont là à ta disposition et tu pourras, à tout moment, leur poser les questions les plus absurdes, ils ne se fâcheront pas ni ne bouderont si tes visites sont espacées.  Ils n’arrosent pas la fleur de la jalousie et écoutent encore moins les mauvaises langues. Grâce à leur nature et à leur rôle, ils sont tolérants et ne se plaignent jamais. Si quelque souvenir des plus vifs vient subitement frapper à ta porte, mets-le dehors et sors : marche, va à la piscine, évoque un souvenir agréable et demande-lui d’expulser le mauvais… Je suis sûr que ce changement de maison et de ville sera le commencement d’une nouvelle phase dans ta vie. Savoure-la en toute plénitude. Lorsque tu ouvriras la porte, n’oublie pas de nettoyer tes pieds, pour qu’aucune poussière obstinée de ta mémoire perturbée ne puisse y entrer. Difficile? Sans aucun doute! Mais l’impossible n’est pas, ni n’a jamais été, domicilié dans le royaume de la volonté. Tu dois te souvenir que tu m’as téléphoné la veille de ton déménagement. Tu t’en souviens sans doute.  Touchée par l’ombre ta voix ne m’a pas trompée. Cela m’a perturbé : j’ai pressenti une rechute de dernière heure… Je me suis contenu juste à temps, je ne pouvais pas te le révéler dans l’intonation de ma voix, qu’une inquiétude soudaine m’avait envahie […]. Chaque fois qu’ils déménageaient, certains membres de notre famille la plus proche étaient enclins à souffrir de graves troubles psychologiques. Tu te souviens de Maria Manuela, surnommée Mané, la fille de tante Maria da Ascensão ? Avant de partir en Amérique, elle a déménagé sept fois! Pour paraphraser le poète Manuel Alegre, on dirait qu’elle était à la recherche de la maison qui n’existe pas

J’ai eu de la chance de ne pas être entré dans un tel tourment héréditaire : seul le fantôme de la villa de l’Alto da Granja m’a poursuivi pendant quelque temps, surtout dans mes rêves et dans mes cauchemars. Au final, avec une demi-douzaine de sorties en haut, tôt le matin, pour faire du jogging, j’ai affronté le spectre qui me rongeait les viscères les plus nobles et, peu à peu, le spectre de la mémoire affective s’est éteint. Je fus exorcisé de l’apparition impertinente.

Avant cela, et alors que j’étais encore étudiant, j’ai changé de chambre et de rue au moins trois fois et cela ne m’a pas surpris. Ma maison sur l’île, qui donnait sur la mer et qui se trouvait en face d’une autre sœur jumelle, me servit d’ « ersatz », ou si tu préfères, de placébo. »

 (Cristóvão de Aguiar e Francisco de Aguiar, Catharsis. Dialogue épistolaire en forme de roman, Lápis de Memórias, avril 2011, pp.11-12-13-14).

Fonte:



Em colaboração com os Colóquios da Lusofonia EM 2012 os estudantes de Mestrado, coordenados pela incansável Rosário Girão (Universidade do Minho, Departamento de Estudos Românicos no seu Mestrado de Tradução e Comunicação Multilingue) estão a trabalhar traduções em Francês de vários excertos de autores açorianos contemporâneos (ou o princípio ou o fim de cada obra selecionada) pelo que aqui publicaremos essas traduções depois de enviadas para os autores apreciarem. Chrys Chrystello AICL
Étudiante : Virginia Henry Martins
28.3.12

sábado, 17 de dezembro de 2011

Duarte e Círiaco - "Naufrágio" letra de Cristóvão Aguiar. Single 1969.




A história que eu vou contar
ouvi-a na minha aldeia
onde à noite a voz do mar
murmura canções na areia.


História de pescadores
do cais negro da Pontinha
onde há grandes senhores
que bocejam à noitinha.


Foi o barco do Zé Tordo
partiu na noite para o mar
e na madrugada ao porto
o seu barco sem chegar.

Encheu-se a praia de gritos
de gente da minha aldeia
ao ver o corpo do Zé
trazido na maré cheia.

Ouvem-se vozes, coitado
cinco filhos e mulher
sem uma côdea de pão
sem um abrigo sequer.

E no enterro à viuva,
levando ao Zé muitas flores,
prometeram-lhe a sua ajuda
o povo e os grandes senhores.

Mas dois anos já são passados
e na praia da minha aldeia
vêem-se cinco crianças
brincando nuas na areia.


E da moral desta história
tirem vossas conclusões
uma família não vive
só de boas intenções.


(Cristóvão de Aguiar)

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Eduardo Brum conversa com Cristóvão de Aguiar no Mundo Açoriano

Conversa
Os ilhéus são um
bocado bazofeiros
talvez por viverem
rodeados de mar
O escritor picopedrense conversa com Eduardo Brum sobre a sua obra, os Açores, Coimbra, a ilha do Pico, S. Miguel, o liceu de Ponta Delgada, as humilhações da infância e da adolescência...


A tua obra “Raiz Comovida” não gerou consenso quando foi inicialmente publicada…
Para além da surpresa de ter utilizado, como escrita literária, o léxico da Ilha, houve quem se entretivesse a discutir, teoricamente, se o livro caía no domínio do romance ou não. A chamada discussão sobre o sexo dos anjos… Havia dúvidas quanto à classificação clássica, que distingue entre romance, novela e conto. Gaspar Simões, o crítico mais semanal da imprensa portuguesa, escreveu que se tratava de um colar de pérolas ao qual faltava o fio! (Risos). Foi um grande elogio, sobretudo porque, além de vir de quem vinha, o crítico debruçava-se sobre outros dois escritores micaelenses, Dinis da Luz e Manuel Ferreira, e a apreciação sobre ambos não era muito favorável. A partir daí gerou-se a dúvida. E eu passei a fintar os críticos: romance ou o que lhe queiram chamar… novela em espiral… conto a que se acrescenta um ponto, etc.

Incomodavam-te as classificações?
As classificações não me incomodavam, porque já se não usam, foi chão que já deu muitas uvas. Já reparaste quão estúpido e difícil se torna distinguir entre conto e novela? Pelo número de páginas? Nunca soube nem curo de saber. No que me diz respeito, essa classificação ou destrinça que o crítico achava por bem fazer ocupava muito espaço antes de entrar no livro propriamente dito…

Quando olhas para trás, hoje, fazes um “balanço” da tua escrita?
Balanço em que sentido?

Que vês na tua escrita observando de longe?
Que vejo na minha escrita? Sou a pessoa menos indicada para discretear sobre este assunto. Normalmente, o escritor é o que sabe menos sobre a sua obra, por mais paradoxal que possa parecer... Mas, se insistes, vejo sobretudo narrativas e outras lérias sem classificação, além de uma poesia péssima, de que não me envergonho por ter sido, como qualquer outro dos meus livros, arrancada de mim… Só que o meu modo de expressão não era esse. Há quem diga que a minha prosa tem mais poesia que os versos. Falando há dias com o tradutor italiano de “Passageiro em Trânsito”, livro tão mal-amado e zurzido por uma luminária da crítica micaelense, dizia-me ele, modéstia à parte, que o livro parece-lhe que tem mais a ver com a poesia do que com a prosa…

És perfeccionista?
Não tenho pejo em afirmar que sou um grande perfeccionista ou narcisista, creio que tanto faz. Escrevo como quem pratica onanismo... Escrevo, emendo, corto, modifico, acrescento, até ficar com a cabeça num labirinto ou num “lavarinto”, como se diz na ilha… Então, quando manuscrevia, era o cabo dos trabalhos, porque não conseguia ver, no papel, emendas: tinha de reescrever tudo e, na reescrita, ia alterando, podando, uma verdadeira enxaqueca daquelas que se sofre durante o pós-guerra…

Corrigir é uma forma de bem escrever…
Pode não ser. Às vezes perde-se a frescura e o encanto das primeiras palavras que o escritor vai descobrindo… Só alguém alheio à criação poderá ver a diferença. O escritor, ao substituir, já está cansado daquelas palavras, podendo muito bem estar a substituí-las por outras com menos frescura… Miguel Torga, na ânsia de aperfeiçoar a sua escrita até ao osso, foi muitas vezes acusado disso. O meu mais recente livro, “Catarse”, foi terminado em Janeiro de 2011, mas em Março ainda estava a ser reescrito, o que não significa que seja uma obra-prima de escrita…

Que vês, então, olhando para trás?
Vejo-me viajante de uma narrativa interior, a viagem mais autêntica que o escritor pode empreender.

Mas há um discurso açoriano na tua escrita?
Com certeza. Um discurso micaelense, talvez seja mais correcto dizer. Açoriano é um adjectivo que não diz nada ou diz muito pouco, uma vez que temos nove realidades distintas no nosso Arquipélago. Não se fala açoriano! Fala-se micaelense, terceirense, etc.. Não se nasce numa ilha em vão. Há uma marca de origem. E é essa marca que vai entroncar na escrita portuguesa dos séculos XVI e XVII. Veja-se os termos “chamatão” e “pêloei”, discreto, no sentido de inteligente (provém do verbo discernir) entre muitíssimos outros, que já caíram em desuso na matriz, mas que ainda se utilizam nos locais mais afastados dos grandes centros, onde a língua se vai adulterando... Agora, com a rapidez dos meios de comunicação, houve uma espécie de nivelamento por baixo, o que leva muita gente a repetir as asneiras linguísticas que os locutores, os políticos e outros figurões vai debitando sem nenhum respeito pela língua, a nossa Pátria, como bem disse Fernando Pessoa.

A ilha de S. Miguel tem um discurso rico?…
O mais rico de todas as ilhas! Alentejano, transmontano… A nossa pronúncia é que nos trai. Comem-se as sílabas, e não raro não se entende. Mas o discurso escrito é rico no léxico e em certos achados linguísticos. Daí que a pronúncia não se pode nem deve confundir com o léxico, que é riquíssimo.

Há uma cultura açoriana bastante estendida no tempo que penetra muito na cultura portuguesa e que não é reconhecida como tal…
Açoriana, portuguesa… Não concordo com a distinção. Acho que a cultura portuguesa é que penetrou na nossa. É natural que tivesse havido muitas adaptações derivadas do meio, do clima, da actividade sísmica (veja-se o Espírito Santo, que se mantém vivo em todas as ilhas, enquanto na matriz de onde proveio há apenas resquícios), e foi essa actividade sísmica que fez perdurar, no tempo, o culto do Espírito Santo.

O estereótipo da cultura açoriana está muito associado a nomes como os de Antero de Quental, Vitorino Nemésio, Natália Correia…
Mas a cultura açoriana não se resume a esses nomes. Haverá, porventura, alguma coisa que lembre a Ilha na obra de Antero? Em Natália Correia, só muito no fim, porque, antes, quando ela deslumbrava toda a Lisboa do seu tempo, não queria, não gostava que lhe lembrassem a sua origem ilhoa. Respondia que tinha daqui saído muito novinha (cinco anos) e não se considerava filha cultural da Ilha onde nasceu… Mais tarde, era chique ser das ilhas, escrever livros ou poemas com fundo ilhéu, mesmo que fosse a martelo, isto é, de fora para dentro. A ilha não fazia parte do sangue. Nemésio, Roberto Mesquita, esses sim. Espelham o viver rodeado de mar por todos os lados… Aqui há uns anos, houve um concurso literário da Secretaria Regional da Cultura, a que podiam concorrer residentes, não residentes, mas cá nascidos, e todos os que falavam a Língua Portuguesa que nunca cá viveram (ridículo!). E mais ridículo ainda era o facto de para os residentes e os açorianos que viviam noutras partes o tema ser livre (jogos florais). Para os não naturais, o fundo das obras tinha de reflectir a ambiência das ilhas (magnífico!) Ganhou, nesse ano, uma escritora coimbrã, com um romance de setenta páginas, sendo o prémio de oitocentos mil escudos, mais de mil por página. Li o livro, tenho-o aqui à minha frente: uma “novelada” (intitula-se novelos), escrito a partir de folhetos turísticos para que houvesse cheirinho a hortênsia, a bosta de vaca, a “bedume” de polpa e a pasto… E o júri composto por altas pensâncias de Lisboa caiu na esparrela como canarinho…

A tua escrita veio “desenterrar” o discurso da cultura açoriana mais profunda…
Não desenterrei coisíssima nenhuma, não fiz investigação linguística e, se o fizesse, a naturalidade da escrita ia-se... Tratava-se de uma questão estética. Eu falava assim, ouvia falar do mesmo modo, e queria transformar o nosso léxico em linguagem literária… Se o consegui, ou não, não me compete dizer.

Se não desenterraste, acabaste por explorar, potenciar…
Como me interesso muito pela Língua Portuguesa, procurava saber por que é que se diz isto, por que é que se diz aquilo… e verifiquei que boa parte do que dizemos em S. Miguel é português arcaico.

A tua escrita tornou-se uma espécie de “ponte” entre vários tempos da cultura portuguesa…
“Raiz Comovida” era incompreensível para Gaspar Simões, mas em regiões como Bragança, Trás-os-Montes em geral, Beira Alta, há pessoas que o entendem e utilizam muitos desses termos incompreensíveis para os salões lisboetas, onde se pronuncia “insêto”, e outras estupidezes... Repara no termo “pitafe”, que se usa também no Alentejo (a nossa matriz linguística) e se aplica a qualquer coisa que tem defeito – esta sopa tem “pitafe”… Provém do termo “epitáfio”. Os açorianos levaram a Língua Portuguesa para o Brasil (a primeira leva de emigrantes que saiu das nossas ilhas para o Brasil data de 1677). No Brasil, fala-se um Português por vezes muito mais correcto do que o que lhe deu origem, sobretudo nos particípios passados dos verbos e na abertura das vogais. Camões recitado por um declamador brasileiro é mais musical, até a métrica fica mais marcada… Não admira. Ficou ilhado, sem receber influências, tal como as nossas ilhas, Trás-os-Montes, Alentejo… Se, por exemplo, quisermos ouvir falar como se falava há cinquenta anos no Pico da Pedra e em Rabo de Peixe só temos de nos deslocar a Fall River, nos EUA. As pessoas não se integraram na cultura norte-americana, formaram um grupo à parte, e congelaram a língua que da ilha trouxeram. Agora o cenário está a mudar por causa da RTP Internacional. Todavia, não advogo que todos falem da mesma maneira. O que dá profundidade cultural a um país é a diversidade.

Há todo um peso cultural que transita para a tua escrita…
Nunca tive pejo de assumir a minha origem de ilhéu micaelense, ao contrário de alguns outros escritores que, só depois da “fundação” da chamada literatura açoriana, principiaram a ter orgulho na sua origem, porque só assim poderiam ficar no retrato de uma novel literatura.

De certa maneira, pareces ser a literatura em forma de pessoa… Ou se a literatura tivesse uma forma humana poderia ser a tua forma…
Não exageremos. Sou um escritor, mais nada. Há um mecanismo de criação que desconhecemos ou que desconheço. Quando estou a escrever, vêm-me à cabeça coisas que em estado de vigília não surgiriam.

É o discurso do inconsciente… discurso do irracional.
É preciso que haja um pretexto para que o inconsciente se manifeste ou exploda.

Qual o teu pretexto?
A guerra, a infância, a adolescência, a ilha, a freguesia onde fui parido, as pessoas que me marcaram, negativa e positivamente, o liceu que, durante nove anos, me marcou e me deixou algumas alegrias e muitas tristezas e amarguras…

O liceu daquele tempo foi uma humilhação?
No liceu, tive duas fases: a da humilhação e a da glória, embora esta última fosse falsa. Se não tivesse ido estudar para Coimbra e tivesse acreditado no que me diziam alguns dos meus mestres de Português, teria ficado convencido de que era um sábio. Ficar na ilha é por vezes uma maneira de julgarmos que somos os maiores do planeta e arredores… Na minha freguesia, fui mesmo humilhado em certas fases da minha vida. Por exemplo, quando chumbei dois anos seguidos no antigo terceiro ano do Liceu. Tuteavam-me quando passava no caminho, mas, quando me tornei bom aluno, nunca ninguém teve o alvedrio de me dar uma palavra de estímulo… Santa freguesia!

E Coimbra?
Em Coimbra, aprendi muito dentro e mais ainda fora da Universidade… Aprendi também a humildade, que era uma atitude que não tinha. Não admira. Era ilhéu, e os ilhéus, como se sabe, sabem tudo... Quando lá cheguei, na companhia de Viriato Madeira, dissemos um ao outro: “Mas nós não sabemos nada! Esta gente fala de outra maneira”. E não era uma questão de sotaque. Vi jovens que avançavam para uma Assembleia Magna e que abordavam os assuntos de forma desassombrada e assombrosa, num discurso que se podia escrever… Manuel Alegre era um deles! O choque foi tal que, a certa altura, quis mesmo vir embora e escrevi uma carta à família com esse intuito. Se fosse hoje, tinham-me respondido: “Vem, querido filho, que aqui estás no teu cantinho, sossegado, fora dessas babilónias de pecado…”

É como se viver na ilha limitasse a capacidade de reflexão ou de expressão?
Não é só isso. É que todos os ilhéus são um bocado bazofeiros, talvez por viverem rodeados de mar. Julgam que o centro do mundo se instalou ou passa pelo seu umbigo... Resolvem tudo… sabem tudo. Até há quem diga: “Se eu fosse primeiro-ministro, punha este país de pé num zape…”, ao que apetece responder: “Muito bem falas, Manel, mas como irás pôr o país em pé, se nem sabes governar a tua casa?”

Há muita falta de humildade…
Com certeza. E o medo de ser frontal. Quem porventura o é pode sofrer alguns amargos de boca… Ser crítico é ser má-língua, ter um feitio insuportável, intransigente, casmurro, explosivo, e tudo de mau que existe debaixo da rota do Sol… Tal como eu, como dizem Onésimo, Daniel de Sá, e outros ilustres intelectuais da nossa praça, o Campo de São Francisco… Custa-me a entender que alguns intelectuais vão ao ponto de criticar quem tem coragem de assumir certas posições diferentes do politicamente correcto. Só conseguem falar por trás, é mais seguro, dá milhões, é-se bem-visto pelas autoridades culturais, dá viagens e outras benesses…

Não será que as pessoas estão “formatadas” para funcionarem segundo determinadas regras, já que nos meios pequenos a noção do outro é muito mais forte do que nos meios maiores? Nas ilhas, há uma noção de vizinhança muito acentuada. Vai-se ao café e o empregado diz-nos: “Que vai ser, vizinho?...”
A vizindade sempre foi muito importante. Ser vizinho é, por vezes, pertencer à mesma família, mas se há malquerenças, é o diabo entre as couves. Já diz o povo: “Antes ter um mau ano que um mau vizinho”.

A proximidade do outro tem muita influência no dia-a-dia…
É verdade. Mas, por vezes, caímos nos estereótipos. Por vezes perguntam-nos: “Como está, como tem passado? Muito bem, obrigado”. Mas se a pergunta for – “estás bem?” – e a resposta – “ão, estou muito mal”, a reacção que obtenho é: “Isso não é nada, isso passa…”, e a pessoa que indagou dá meia volta e vai-se embora. Bebe uns copos, vais ver que ficas rijo! A resposta esperada, sacramental, seria: “Estou muito bem, obrigado!” Ora, isto não é nada, isto não é convivência.

Tu não és assim?
Não sou e por isso apanho cada dissabor…

Essa tua fuga à regra cola-te a uma imagem de conflito e de polémica…
E dizem que perco mais do que ganho com estas coisas. Ganhar o quê? O apreço de medíocres? Tenho escrito em jornais sobre assuntos com os quais discordo. Na ilha do Pico houve pessoas que deixaram de falar comigo por essa razão, algumas delas por medo. É que naquela ilha ainda se fala da justiça da noite…

Como surge o Pico na tua vida?
Eu conhecia o Pico muito mal (fui lá pela primeira vez, durante uma simples manhã, na viagem de finalistas do 7º ano do liceu). Em 1996, juntei, em Coimbra, um grupo de 29 pessoas e combinámos ir ao Pico por 15 dias: sete dias no Pico, dois na Terceira e os restantes em São Miguel. Principiámos pelo grupo central porque tinha a minha fisgada: quando chegássemos a São Miguel seria a apoteose! Quando lá chegámos, fomos percorrer a Ilha e ver os locais mais consabidos… Todos gostavam muito, mas logo a seguir comentavam: “É muito bonito… mas o Pico…”. Um dizia-o, o outro repetia-o e eu próprio dei por mim também a dizer: “É muito belo, mas o Pico…”. Há qualquer coisa naquela ilha que nos atrai…

É verdade.
Até pode ser magnético. Numa noite limpa, as estrelas brilham mais sobre o pico do Pico. Decidi fazer lá uma casa. Ali, eu sentia o arquipélago. É que a ilha em frente, segundo Raul Brandão, é muito importante. Dá-nos a sensação de que há mais mundo, de que não estamos desacompanhados…

É uma sensação completamente diferente de viver em S. Miguel…
É verdade. Para mim, a ilha em frente era a Serra de Água de Pau… Santa Maria só muito raramente se mostrava como uma sombra no horizonte, e quando assim acontecia, tínhamos chuva pela certa. Mas tive sorte. Quando entrei para o liceu, em 1951, as camionetas da Ribeira Grande eram bastante irregulares e avariavam em quase todas as viagens. E então ficou decidido que eu ficaria alojado numa pensão, em Ponta Delgada. Nessa pensão, tive o privilégio de encontrar jovens estudantes de todas as ilhas, mais velhos do que eu, e passei a dar-me conta da geografia, pronúncias e maneiras de pensar diferentes. Só conhecias as ilhas pelo mapa…

Não te esqueças de que estávamos a falar da tua decisão de fazer uma casa no Pico…
Ah, pois. Arranjei um terreno, em S. Miguel Arcanjo, de onde se via a ilha de S. Jorge de ponta a ponta! Era um pasto. Perguntei ao vizinho se a propriedade estava para venda. “Não sei”, respondeu ele. “Isso é de um senhor que está no Canadá. Mas, se quiser saber, pode falar com a cunhada, que mora aqui mais acima. É procuradora e contacta com ele todas as semanas”. E assim fiz. Dias depois, soube que o proprietário estava na disposição de vender o terreno. Aceitei o preço, não regateei, e fechei negócio. Disseram-me que era muito caro, mas eu não quis saber. Comecei logo a fazer a casa. À moda antiga do Pico, de acordo com as leis anti-sísmicas

Miguel Torga é importante na tua vida…
É, com certeza. Tem uma escrita telúrica, na qual arranca às pedras de Trás-os-Montes aquela concisão, aquela secura… aquele não desperdício de palavras.

Em tempos, li bastante da sua obra, mas hoje não o voltaria a fazer…
Uma pessoa também não pode estar sempre agarrada ao mesmo escritor… O que é preciso é saber se a nova geração o lê ou não.

Eu deixei de ler o Torga, mas não deixei de ler o Eça…
Torga reflecte na sua escrita um Portugal que, em parte, já não há, mas a mentalidade do povo continua: os seus vícios, defeitos, manhas, esperteza saloia, comuns a todos os povos. Por isso, a sua obra continua válida (pelo menos para mim) e universal.

Torga não deu o salto para a contemporaneidade…
Não sei muito bem o que é a modernidade. Badala-se tanto sobre ela, que acabo confundido. Será a modernidade sinónimo de tecnologia avançada, comunicações instantâneas? E o homem, como se encontra nos seus instintos? Teria evoluído a par de toda essa parafernália tecnológica? Ou terá ficado, no íntimo, igual ao seu antepassado das cavernas? Mata-se hoje em dia com a mesma crueldade com que se fazia há milhares de anos. Talvez haja mais requinte derivado da modernidade e das suas consequências. É evidente que a escrita e a arte em geral devem acompanhar esse desenvolvimento. Mas, se reflectem o Homem na sua humanidade, os temas são sempre os mesmos: a morte, o amor, o ódio, e tudo o resto que o ser humano carrega dentro de si desde que apareceu à face da Terra…

Hoje, prefiro ler um livro teu do que um livro do Torga. Tens uma capacidade de abertura que ele não tem.
Não sei aonde pôr as palavras com essa tua afirmação! Torga é Torga e eu, à sua ilharga, sou um pigmeu. Convivi com o Torga durante um ano e tal. Todos os dias ia buscá-lo ao consultório para irmos dar uma volta por Coimbra ou arredores. “Ó Cristóvão, podemos ir ali a cima?” Eu percebia o que ele queria. “Vamos ali àquele miradouro…”. Lá íamos. Tinha com certeza um poema a pedir para nascer… Vivia única e exclusivamente para a literatura. Transformava tudo em literatura. Disse à mulher em vésperas do casamento: “Vou procurar ser um bom marido, mas digo-te com toda a franqueza – em qualquer circunstância, troco-te por um verso!” Disse-o e escreveu-o. Esta era a sua têmpera. Quis ser escritor por vontade e fazia da escrita um sacerdócio laico. Um dia, contei-lhe certos passos da minha vida. Ouviu-me com muita atenção. Quando terminei, disse-me: “Por que não escreve tudo o que me contou? Talvez desse uma espécie de “Criação do Mundo…” Salvo as devidas proporções, digo agora eu.

Durante vários anos, Torga chegou a ser candidato ao Nobel…
Estou muito contente por termos um Nobel da Literatura português, mas penso, sinceramente, que o prémio tinha ficado muito mais bem entregue a Miguel Torga do que a Saramago. A sua escrita tem muito lugar-comum…

Saramago é um lugar-comum…
Pois…

Terminemos, voltando à terra onde nasceste: que representam os Açores, hoje, para ti?
Os Açores, para mim, hoje… são uma memória afectiva. Sou um misto de Açores e de Coimbra, embora eu não queira nem consiga distinguir entre ambos. Quando uma pessoa sai da sua terra desenraíza-se…

Deixa de ter pátria…
Passa a ter raízes aéreas. Perde o chão. E nunca está bem em parte nenhuma. Agora, estou mais calmo, mas no tempo de estudante, quando estava de férias em São Miguel, cheguei a voltar mais cedo para Coimbra. Todavia, uma vez lá chegado, arrependia-me! Havia uma dualidade, um conflito interior. Mas houve uma coisa interessante que aconteceu comigo: vim a São Miguel em 1994 e não fui ao Pico da Pedra. Nessa altura, senti-me muito melhor na ilha.

O Pico da Pedra era uma opressão…
Exactamente. A causa do meu mal-estar era o Pico da Pedra da minha infância e da minha adolescência. Comparando com a actualidade, eu diria que o Pico da Pedra tinha os seus talibãs! Ir estudar para Coimbra foi a oportunidade que tive para me desligar de tudo isso.
Cristóvão de Aguiar
Escritor
Natural de S. Miguel, residente em Coimbra e Pico

Mundo Açoriano

























sábado, 14 de maio de 2011

Catarse ou a escrita mano a mano de Cristóvão e de Francisco de Aguiar, por Victor Rui Dores

“A minha vida não tem idade: tem tempo”

Vitorino Nemésio, Eu Comovido a Oeste

As recordações dos verdes anos avivam-se à medida que vamos ficando mais vividos e menos jovens… A nossa existência é uma perpétua dialéctica: saudades do futuro e sauda¬des do passado

Catarse (Editora Lápis de Memórias, Coimbra, 2011) é um livro sobre a infância e a adolescência insulares enquanto busca de um tempo irremediavelmente perdido. Os autores, irmãos no sangue e nas emoções, protagonistas - narradores, revisitam, pela escrita, tempos, lugares, pessoas e memórias que povoam o seu imaginário. Vivendo em diferentes espaços geográficos, e através de um conjunto de cartas que vão tro-cando, recordam bons tempos que não foram tempos bons. “A vida, em S. Miguel era muito cainha” (pág. 20) porque esses eram os tempos de misérias várias e de repressões variadas de uma sociedade patriarcal – o salazarismo, o subdesenvolvimento, a hipocrisia social, a pobreza, a intolerância, a emigração, a guerra colonial…

A luta contra o esquecimento é a razão primeira da literatura em qualquer uma das suas formas e géneros, sendo que, no caso do livro em apreço, estamos perante um “diálogo epistolar em forma de romance”. Eis uma escrita de inquérito ao subconsciente, através da qual os autores, em diferentes registos e de forma sincera e sentida, travam intensos diálogos e partilham memórias surpreendentes.

Santa Luzia é o microcosmo de referência desta obra, constituindo-se como espaço onde pulsa todo o universo e toda a geografia sentimental e afectiva da ilha de São Miguel, de onde a acção parte viajando para outros lugares: Santa Maria, Terceira, Madeira, Lisboa, Coimbra, Guiné, Américas, Faial, Pico…

Por conseguinte, este livro dá conta de impressões do vivido e do sentido, isto é, das sensações e dos sentimentos que ficaram enraizados nas memórias dos autores. Essas memórias ora são muito positivas (a recordação das figuras tutelares da Mãe, dos Avós e outros familiares, amigos e conhecidos que surgem do fundo dos tempos como uma aparição de ternura no meio das ruínas da vida), ora são terrivelmente negativas (por exemplo, a memória magoada das tiranias do Pai, os ritos e os rituais da iniciação sexual que, nesse tempo de obscurantismo, descambavam invariavelmente para actos de pedofilia, violação e muitas outras formas de violência).

As deambulações dos narradores são fascinantes e lemos este livro como se de um romance se tratasse. Dando conta dos seus “eus” angustiados na sua relação conflituosa com a vida e com os outros, Cristóvão e Francisco, através de viagens interiores e narrativas justapostas, lançam olhares sobre o tempo do fascínio e do sortilégio (porque iniciático) do despertar para a vida, para os amores, para o mundo e para o conhecimento das coisas. E narram reminiscências e histórias das suas vidas com os outros. A prosa de um é sentida na pessoa do outro. E, pela escrita, fazem uma verdadeira catarse. Escreve Francisco, na página 304:

“Desculpa ter estado a escarafunchar coisas do passado, mas estou a passar por uma fase de despejar tudo aquilo que devia ter despejado na altura certa”.

Escreve Cristóvão:

“E que são estas cartas senão um exercício de psicanálise? Desde ontem já recebi três textos teus, qual deles o mais espirituoso! Vou, nas minhas respostas, procurar dar-lhes mais pormenores que os complementarão. Devido à diferença de idade entre nós, e ainda que tenhamos uma grande fatia de passado em comum, possuímos experiências desiguais e diversas histórias para contar, mas as personagens são praticamente as mesmas que conheci nos primeiros vinte anos que permaneci na ilha, só as mais novas me escapam.” (pág. 236)

As memórias sucedem-se com um ritmo perfeito e a descrição das pessoas evocadas – tanto a física como a psicológica – é um primor de minúcia. Desfila um universo de venturas malogradas perante nós. Vivências comuns confluem de página em página para nos recriarem um tempo (praticamente todo o século XX) que nos parece já tão distante mas que a geração dos autores não esquece nem desvaloriza como não glorifica em falsas nostalgias.

Esse foi um tempo de “brandos costumes”, de muitas inquietações e poucas alegrias, de muitas dúvidas e poucas certezas, um tempo marcado por sonhos e desejos, paixões e temores, partidas e chegadas, separações e reencontros.

Mas atenção: estes olhares retroactivos não visam um mero exorcismo da saudade. Os autores respondem a uma verdadeira “prise de conscience”. Por isso, estas páginas são, acima de tudo, lugar de confronto, de denúncia (dos mecanismos dos poderes políticos e religiosos) e de renúncia às máscaras de um quotidiano alienante, até porque os autores foram vítimas desse estado de coisas e sofreram na pele as consequências desse tempo português fascizante.

Catarse constitui uma narrativa coesa e consistente, perfeitamente equilibrada e apoiada em dois eixos narrativos: coloquialidade, prosa enxuta e leveza de estilo por parte de Francisco de Aguiar (texto em itálico). Virtuosismo verbal e manejo robusto da linguagem por parte de Cristóvão de Aguiar (de antologia são as páginas 313 e 314: “Os meus mortos…”). Francisco era até agora escritor adiado. Cristóvão é o autor consagrado da Raiz Comovida, ficcionista de méritos reconhecidos. O primeiro é o comparsa municiador de memórias; o segundo é o criador – arquitecto da narrativa. Ambos se complementam e, numa escrita que mistura memória, diário e discurso literário, falam do problema do destino do homem e do sentido da vida. Em páginas humaníssimas que em nós causam uma imediata adesão afectiva.


Victor Rui Dores

sábado, 30 de abril de 2011

"Catarse". Cristóvão de Aguiar e Francisco de Aguiar dedicam obra a Viriato Madeira. in Diário dos Açores.

O escritor açoriano Cristóvão de Aguiar e o seu irmão Francisco de Aguiar lançam no próximo dia 20 de Maio, na Ribeira Grande, o livro "Catarse, Diálogo Epistolar em forma de Romance", em homenagem à memória de Viriato Madeira, um ribeiragrandense que sempre lutou pela melhoria da qualidade de vida da comunidade nortenha.

O livro da Editora Lápis de Memórias é lançado pelas 21h00, no Salão Nobre dos Paços do Concelho, numa cerimónia presidida pelo presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande, sendo apresentado por Eduardo Jorge Brum. (Director do Semanário Expresso das Nove)

Viriato Hermínio Rego Costa Madeira, que faleceu no passado dia 15 de Janeiro, dedicou toda a sua vida profissional e pessoal pela luta por um maior equilíbrio social, pela defesa dos direitos dos trabalhadores, mesmo em detrimento de promoções pessoais e profissionais. Foi um apaixonado e empenhado sindicalista regional e nacional, e um dos fundadores da Comissão de Trabalhadores da SATA, tendo exercido, por diversas vezes, cargos na referida comissão, até à sua aposentação.

Para além disso, Viriato Madeira foi um dos colaboradores do "Primeiro Plano de Estudo Económico Estratégico" da companhia e do "Plano para a Segurança". Fez, ainda, parte da Direcção do Clube Desportivo e Recreativo da empresa.

Tendo as preocupações sociais sempre um elevado peso no seu percurso de vida, nos finais da década de 80 foi o fundador da delegação ribeiragrandense do C.A.R.A. – Clube dos Alcoólicos Recuperados dos Açores.

Um amante da leitura e da escrita, deixou o seu contributo para a literatura açoriana com textos inéditos que ainda não foram publicados, embora durante muitos anos tenho dado forma a crónicas e artigos de opinião na imprensa regional. Animou, ainda, uma "tertúlia" ribeiragrandense, com análises entusiastas dos mais variados escritores nacionais, regionais e estrangeiros.

Fez, ainda, parte do Círculo de Amigos da Ribeira Grande e, desde 2000 até à data da sua morte foi Presidente da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários da Ribeira Grande, tendo lutado pela construção do respectivo quartel e da piscina, novamente na senda pela melhoria da qualidade de vida de toda uma comunidade.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

(2008) Cristóvão de Aguiar, Braço Tatuado. Lisboa, Dom Quixote. Crítica literária de Manuel Tomás. In Boletim do Núcleo Cultural da Horta. n.º 448

Braço Tatuado, é um “livro negro da guerra”, como vem afirmado na dedicatória com que o autor me honrou. “Retalhos da guerra colonial” é a expressão que surge inscrita como subtítulo ou complemento para
o entendimento do romance que vai ao mais profundo de uma guerra, injusta como todas elas são, ao âmago da profundidade psicológica de cada participante e à dimensão sociológica do grupo que luta em “comboio humano, agarrados uns aos outros pela cintura”.
Braço Tatuado é a recriação de uma dolorosa vivência pessoal de Cristóvão de Aguiar, durante a guerra colonial na Guiné. Essa experiência deu origem ao livro Ciclone de Setembro (1985), tendo uma das suas partes se autonomizado, posteriormente, com o título de Braço Tatuado (1990), saindo agora em uma nova versão (2008), para mostrar, de uma forma irónica e trágica, como se vivia a guerra, pois “só nos era permitido fazer manguitos por dentro ou roer as unhas de memória até ao sabugo; chorar não podíamos, nem, se calhar, teríamos lágrimas disponíveis no canto do saco– estávamos, exteriormente, em sentido e essa posição era sagrada”. Esta era a situação à partida, enquanto o capelão fazia o apelo ao patriotismo dos “bravos rapazes”. À saída do teatro de guerra, a ausência psicológica é ainda maior e ao discurso do governador militar, de copo na mão, só os “farrapos das palavras” são apanhados, cá-e-lá, e só são inteligíveis por quem esteja “animado de um profundo amor à pátria do copo”.
O livro escrito de rajada, como afirmou Carlos Ascenso André, in Jornal de Letras (23 de Abril de 2008), também é lido nesse mesmo impulso que não dá lugar a paragens e saltamos de página em página, ora procurando a emboscada, ora fugindo-lhe no matagal da angústia de algo que se faz para salvar a pele, mas o inesperado, maiorainda do que a emboscada do inimigo militar, de um caso pessoal pode virar tudo do avesso, onde já nada está às direitas, e esse inesperado vai causar o maior embaraço da missão, porque uma relação amorosa se perdeu na ausência de quem partiu para a guerra e se perdeu por completo na mistura de pânicos de guerra, com o pânico interior de um amor perdido. Na guerra, só se vive em pleno clímax de tudo e de todas as acções e recordações. Na guerra, “estamos cansados de tudo. Até de regressar. Tantas vezes foi este mágico verbo transitivo e intransitivo conjugado que se gastou tal qual um pataco…”, diz-nos o narrador que, às vezes, está a dar‑nos uma imagem visual e realista das operações em curso, obrigando-nos a visualizar toda a acção e a senti-la nos seus cheiros, sons e arrepios em momentos de vigoroso pânico derramado pelo ambiente onde se desenrolam as operações militares. Este forte e provocante realismo visualista revela-nos algumas atrocidades inimagináveis em seres humanos, mesmo em ambiente de guerra. O tenente Roberto, as suas atrocidades e o envolvimento educativo de seus filhos em uma autêntica barbárie evidenciam-nos, claramente, que aqueles são lugares de massacre tão violentos que o autor de tantas e malvadas acções criminosas actua de uma forma tão cruel que só no próprio enforcamento é que acha a solução para a previsível e desejável traição de sua mulher que, tempos mais tarde, há-de receber, como viúva, as insígnias dos grandes feitos de seu enforcado marido.
É de absurdos impostos, como dever, por um regime despótico e anacrónico, fazendo tantas vítimas, que Cristóvão de Aguiar nos dá conta, talvez com uma fidelidade sentida de tal modo que só mesmo a ficção nos poderia aproximar tanto da realidade e qualquer coincidência com essa realidade longínqua da Guiné-Bissau, mas ainda presente e não exorcizada totalmente na sociedade portuguesa, não será fruto de nenhum acaso.
Não fui à guerra colonial, mas não sou capaz de imaginar alguém a escrever ficção de esta maneira sobre ela sem por lá ter passado.

Manuel Tomás.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

CORREIO DOS AÇORES ENTREVISTA: Tertúlia Açoriana - Cristóvão de Aguiar, escritor e poeta : Escrever por amor à literatura

Tertúlia Açoriana - Cristóvão de Aguiar, escritor e poeta : Escrever por amor à literatura


28 Janeiro 2010 [Cultura]

“Hoje em dia fala-se em narrativa ou ficção, embora continue a haver romance e conto, e até prosa poética, poema em prosa, o que significa que as fronteiras entre os géneros literários se diluíram. Quanto a mim, será difícil catalogar. Talvez a narrativa seja o que melhor se coaduna com o que tenho publicado, embora haja entre a minha obra diários, contos…”


Correio dos Açores - Nome, naturalidade, cidade e país onde reside?

Cristóvão de Aguiar, de nome completo Luís Cristóvão Dias de Aguiar, nado e criado (até aos vinte anos) na freguesia de Pico da Pedra, de onde saí para Coimbra em 1960, com destino à Faculdade de Letras. Desde então, e com pequenas intermitências (Guerra Colonial, Leiria), aqui tenho vivido, exercido a minha profissão docente (Leitor de Língua Inglesa da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra) durante 32 anos. Encontro-me aposentado desde 2002, mas continuo a viver em Coimbra, agora em part time, visto que passo longas temporadas na Ilha do Pico, lugar de São Miguel Arcanjo, onde mandei construir uma casa.

O Primeiro livro que leu?

O primeiro livro que ouvi ler foi a Bíblia. Depois, logo que me apetrechei com as ferramentas da leitura, continuei na Bíblia; no Liceu, no antigo 3.º ano, o professor de Português, Dr. Ângelo Raposo Marques, mandou-nos ler a Morgadinha dos Canaviais, leitura obrigatória. Talvez tenha sido o primeiro que li. Encantou-me de tal maneira que, ainda hoje, o releio uma vez por outra, a ver se recupero o paraíso perdido…

Versos de pé quebrado

Quando sentiu o chamamento para a escrita?

Principiei, como não podia deixar de ser, pelos versos de pé-quebrado. Meu Avô materno e um Tio, filho dele, eram poetas repentistas. Meu Tio escrevia para o Diário dos Açores não só quadras e sextilhas mas também a correspondência do Pico da Pedra. Nessa altura chamava-se correspondente do jornal, uma honra, além de se receber o jornal de graça. Quis imitá-lo, tudo a escrita principia por uma imitação, e, anos depois de ele ter embarcado para a América, também me tornei correspondente do Diário dos Açores e depois do Correio dos Açores. Naquele publiquei uns versos, na página de Letras, creio que em Setembro de 1957, no último, no tempo do Dr. Read Henriques, tornei-me colaborador, mesmo depois de vir para Coimbra. Também escrevi versos e prosa no semanário A Ilha, de Manuel Barbosa. Tudo para esquecer…


Qual é o seu género literário?

Hoje os géneros literários não estão ba lizados. No meu tempo de estudante liceal, distinguia-se entre romance, novela conto, na prosa; na poesia, entre soneto de verso heróico e alexandrino, quadra de redondilha maior e menor, respectivamente de sete e cinco sílabas, sextilhas, quintilhas, oitava rima… Uma dor de cabeça para quem os tinha de estudar. Hoje em dia fala-se em narrativa ou ficção, embora continue a haver romance e conto, e até prosa poética, poema em prosa, o que significa que as fronteiras entre os géneros literários se diluíram. Quanto a mim, será difícil catalogar. Talvez a narrativa seja o que melhor se coaduna com o que tenho publicado, embora haja entre a minha obra diários, contos…


Na escola primária era habitual ter boas classificações nas redacções?

Só não era bom aluno em desenho à vista, um pesadelo de caçarolas e vasos e jarras… As redacções, na instrução primária, eram uma espécie de chapa: o professor explicava o que devíamos escrever e o resultado era uma espécie de vasos comunicantes, ou de Comunicação dos Santos. Ficava tudo mais ou menos igual. Só no Liceu, já no Curso Complementar de Letras, é que o meu professor de Português, o Doutor Almeida Pavão, elogiava a minha maneira de escrever.


Sonetos, de Antero


Há algum livro dos seus que gostaria de reescrever?

Tenho reescrito todos eles com o afã de quem os escreve pela primeira vez e altero muito, a ponto de alguns críticos, como Luiz Fagundes Duarte, dizerem ou escreverem que se trata de um livro novo, como aconteceu com Marilha, sequência narrativa que inclui Grito em Chamas e Ciclone de Setembro, publicados muito antes, separadamente, e por ordem cronológica inversa.


Quais os livros que publicou e o mais recente?

Quer mesmo a lista completa? Não será fastidioso para os leitores; que não têm nenhuma culpa dos meus pecados mortais? Já que insiste; lá vão eles; por ordem cronológica e por ela se vê o último que dei a lume: Mãos Vazias; O Pão da Palavra; Sonetos de Amor Ilhéu (poesia); Breve Memória Histórica da Faculdade de Ciências; Alguns Dados sobre a Emigração Açoriana; Raiz Comovida (trilogia romanesca); Ciclone de Setembro (romance ou o que lhe queiram chamar); Com Paulo Quintela À Mesa da Tertúlia; Passageiro em Trânsito; Braço Tatuado; Emigração e Outros Temas Ilhéus; A Descoberta da Cidade e Outras Histórias; Grito em Chamas; Relação de Bordo I, II e III (diário ou nem tanto ou talvez muito mais); Trasfega; casos e contos; Marilha; sequência narrativa; A Tabuada do Tempo; Charlas Sobre a Língua Portuguesa; Cães Letrados… Ainda há as traduções: A Riqueza das Nações; de Adam Smith; A Nobre Arquitectura, poemas de António Arnaut, traduzidos para inglês… Eu bem o avisei da chateza…


Indique-me um livro de um escritor açoriano de que gostaria de ter sido o autor?

Sonetos, de Antero de Quental.


A ‘casa de putas’


Como se relaciona com outros escritores?

Com os poucos com quem me relaciono, muito bem. Mas a chamada República das Letras mais parece uma “casa de putas”…


Pensa enriquecer como escritor?

Em Portugal só enriquecem os escritores bestsellers, como os Saramagos, Lobo Antunes, José Rodrigues dos Santos, e os ou as da profundíssima literatura cor-de-rosa, a que é conhecida por light; os outros, como eu, nem às vezes os direitos de autor recebem. Seja tudo pelo amor da Literatura…


Que livro nunca recomendaria a um amigo?

Preferia recomendar a desaconselhar… Mas não recomendaria nenhum dos livros da Margarida Rebelo Pinto.

Que livro gostaria de deixar e que ainda não escreveu?

Não vou com certeza escrever mais nenhum livro como a trilogia romanesca Raiz Comovida. Assim sendo, será este, portanto, que gostaria que ficasse como testemunho. Até já deu o nome a uma rua do Pico da Pedra…

afonsoquental@hotmail.com

sábado, 12 de dezembro de 2009

Cristóvão de Aguiar, por Chrys Crystello. 8.º Colóquio Anual de Lusófonia, 2009.

MESA QUADRADA SOBRE TRADUÇÃO E LITERATURA DE MATRIZ AÇORIANA

Grandes vultos das letras e das artes nasceram nos Açores como Gaspar Fructuoso, o conde de Ávila, Manuel de Arriaga, Antero de Quental, Teófilo Braga, Roberto Ivens, Tomás Borba, Francisco de Lacerda, Canto da Maya, Domingos Rebelo, Vitorino Nemésio, António Dacosta, Carlos Wallenstein, Victor Câmara e Carlos Carreiro. Dos autores contemporâneos de que falarei aqui, selecionei aqueles por quem nutro apreciação. Acolho como premissa o conceito de açorianidade de Martins Garcia que, admite uma literatura açoriana «enquanto superstrutura emanada dum habitat, duma vivência e duma mundividência» . A açorianidade literária (termo cunhado por Vitorino Nemésio, na revista Insula, em 1932) não está exclusivamente relacionada com peculiaridades regionais, nem com temas comummente abordados na literatura, tais como a solidão, o mar, a emigração. Martins Garcia não se mostra empenhado em definir a literatura açoriana, mas a sua qualidade estética. Na obra “Para uma literatura açoriana” (1987) afirma: “...utilizar um conceito antropológico de cultura para provar a diferença entre os Açores e o Continente é admitir que um traço distintivo venha a justificar uma autonomia, quando, na realidade, são as diferenças culturais que formam um acréscimo que dão identidade, seja a uma literatura, seja a um povo .
Em “Constantes da insularidade numa definição de literatura açoriana” J. Almeida Pavão (1988) diz “...sobre a existência de uma Literatura Açoriana...assume-se tal Literatura com o estatuto de uma autonomia, consentânea com uma essencialidade que a diferencia da Literatura Continental. No polo positivo de um extremo, enquadrar-se-ia a posição de Borges Garcia e no outro extremo situar-se-ia o polo, naturalmente contestário, formado por Gaspar Simões e Cristóvão de Aguiar. Isto, sem falarmos de outros tantos depoimentos, compendiados na obra A Questão da Literatura Açoriana, de Onésimo de Almeida (1983) .”
Depois de, no meu fervor iniciático, ter sido um adepto da Literatura Açoriana, à medida que lia os mais consagrados e badalados, ficava com uma sensação amarga. Há muitos, mas de qualidade irregular, dir-se-ia duvidosa. Sorri da minha ingenuidade. Ao ler Dias de Melo, guardei as baleias, o livro intimista “À Boquinha da Noite (2001) e poucos mais. Lera mas não gostara doutros com um neorrealismo primário que nada tem a ver com os livros mais antigos sobre os baleeiros. Onésimo fora um desapontamento mas como croniqueiro eram notáveis as piadas que sempre o caracterizaram. Daniel de Sá tem talvez como uma das suas melhores obras, a novela “O Pastor das Casas Mortas” e obras mais antigas (sobretudo “Ilha grande fechada” (1992). Dele, ressalvam-se bons textos nos últimos anos, em livros ou guias de turismo como “Santa Maria Ilha-Mãe”, “S. Miguel, a ilha esculpida” e outro sobre a Terceira (a publicar em breve, todos da VerAçor). Entretanto, JC lera outros poetas e escritores açorianos espantosos de quem poucos falavam. Martins Garcia era um deles...
Como tradutor no seio desta geografia idílica, não busquei a essência do ser azórico em miríades de variações nem cuidei de saber se o homem se adaptou às ilhas ou se estas condicionaram a presença humana, para evidenciar a sua especificidade ou açorianidade. Deduzi no decurso da sua tradução características relevantes para a açorianidade:
1. O clima inculca um caráter de torpor e de morosidade;
2. Os povos quedam hoje, física e culturalmente, quase tão distantes de Portugal como há séculos atrás;
3. O recorte dos estratos sociais: é ainda vincadamente feudal apesar do humanismo que a revolução de 1974 alegadamente introduziu nas relações sociais e familiares;
4. A adjacência das gentes à terra persiste ainda imune a aculturações, fora das pequenas metrópoles que comandam a vida em cada ilha, opondo-se ao centralismo autofágico e macrocéfalo, que regem esses dois submundos como vasos não-comunicantes.
Daniel de Sá dedicou “O Pastor das Casa Mortas” “às mulheres e aos homens que ainda acendem o lume nas últimas aldeias de Portugal. O herói busca um amor perdido no léxico e na sintaxe dos montes escalavrados da Beira Alta. Por entre o pastoreio, calcorreia paixões sofridas, numa apologia da solidão. O retrato de Manuel Cordovão, lusitano de um amor só, é uma ode ao açoriano apartado de si e do mundo por um amor impossível inconcretizado. Trata-se de uma visita ao Portugal profundo, interior e inacessível. Aqui não se fala do “despovoamento das ilhas” antes se resgata o imaginário coletivo na erudição improvável de um mero apascentador de cabras. Em “Santa Maria ilha-mãe” Daniel de Sá viaja ao passado mítico, refulgente de nostalgia lírica por uma infância despretensiosa. Visita o isolamento de séculos, permeado por ataques de piratas, a inculcar mais vincadamente as crenças religiosas. O título gerou controvérsia mas o autor notaria: “Não se trata de "mãe" adjetivo, mas sim de dois substantivos. É uma ilha que é mãe também...” As personagens são credíveis e transportam-nos a partilhar sentimentos com os interlocutores. Como magistralmente disse a escritora canadiana Ann-Marie MacDonald, “A tradução é uma arte e uma maestria, com um toque de alquimia. Quando o autor e o tradutor se reúnem, o resultado pode ser inspirador. As nuances traduzem a língua numa forma de arte
Dias de Melo escrevia sobre os baleeiros, como se da sua “Cabana do Pai Tomás”, no Alto da Rocha do Canto da Baía, na Calheta de Nesquim na açoriana ilha do Pico, vigiasse os botes e as lanchas da Calheta baleando contra os Vilas e os Ribeiras. A escrita embrenha-se como o nevoeiro em que os trancadores se debatiam na luta inglória para ganhar a vida. Resumo o autor a uma frase: Injustiça Social. É da sua denúncia que trata ao abordar a emigração, as realidades sociais e económicas, a repressão do Estado Novo e os dramas humanos, na linguagem simples dos homens do mar. Fica-se com a sensação de uma sociedade arbitrária e perversa. Coube-lhe a sorte de ter recebido homenagens públicas nos últimos meses de vida, quando a VerAçor re-editou alguns dos seus livros. Como espetador atento da luta quotidiana e da condição humana, nunca se coibiu de a viver e contar. Cumpre evitar que essa memória se esvaneça e porfiar para que seja lido pelas novas gerações, pois, como ele escreveu: “A esperança num mundo melhor já não será para mim, nem para nenhum de nós e eu revolto-me com o que vejo à volta de mim”
Nas ilhas existem interesses esconsos e panelinhas em que pontificam menos valias com fama fácil e nomes menores da literatura local. Com a paixão de descobrirmos estes autores, olvidamos o conhecimento dos restantes. Deixamo-nos embalar pela açorianidade, a diegese das ilhas, seus costumes ancestrais, o canto das suas sereias...Lemos outros açorianos espantosos de que ninguém fala como José Martins Garcia . Sobre ele escreveu David Mourão-Ferreira “Se não vivêssemos, vicentinamente, num País em que a "barca do purgatório" anda sempre mais carregada que as outras duas, o [seu] nome deveria ser hoje saudado como o do escritor mais completo e mais complexo que no último decénio entre nós se revelou; (...) com igual mestria tanto abrange os registos da mistificação narrativa como os da exegese crítica, tanto os da desmistificação satírica como os da transfiguração telúrica, e que sem dúvida não encontra paralelo, pela convergência e concentração de todos estes vetores, na produção de qualquer outro seu coetâneo ”. E Maria Lúcia Lepecki acrescenta "É a arte de narrar "em puro" que Martins Garcia cultiva: de modo que opta por não fazer quaisquer tipos de experimentações. Vai sempre re-experimentando, e confirmando, o contar histórias."
Côrtes-Rodrigues é outro nome juntamente com Emanuel de Sousa poeta e autor de Eurídice com prefácio de Natália Correia; e autor de Ariadne , Saiu agora uma rica edição de uma antologia de contos de Martins Garcia. A coleção intitula-se Biblioteca Açoriana e é dirigida por Urbano Bettencourt e Carlos Alberto Machado . Já foram publicados, nesta coleção, em 2009: Almas Cativas e Poemas Dispersos, de Roberto de Mesquita ; A Moldura, de Conceição Maciel; Português, Contrabandista, de José Martins Garcia, antologia de contos, a maior parte inexistente no mercado, com um posfácio de Urbano Bettencourt. Há mais três nomes a não esquecer: Vasco Pereira da Costa, poeta, romancista, nascido em Angra em 1948. Além disso é pintor com o pseudónimo de Manuel Policarpo. A sua Exposição de Pintura no Museu dos Baleeiros das Lajes do Pico em Junho, foi para a Terceira, e está agora nas Portas do Mar, em Ponta Delgada. Intitula-se As Ilhas Conhecidas - Cartografia e Iconografia. Os quadros relativos ao culto do Espírito Santo são uma forte crítica não só ao culto da terceira pessoa como à sociedade...Há ainda Eduardo Jorge Brum (fundador e diretor do Semanário "Expresso das Nove") poeta, contista e romancista, nascido em Rabo de Peixe. Escritor maldito, na linha de Luiz Pacheco. As suas principais obras foram todas publicadas na Europa-América, com exceção de uma, que saiu na Vega , e por último, Marcolino Candeias, nascido em Angra em 1952. Poeta de um só livro, embora se tivesse estreado aos 16 anos com um livro Por Ter Escrito Amor que terá repudiado, pois não consta na sua bibliografia. A 2.ª edição intitula-se: Na Distância deste Tempo . Como se pode ver há muito para além das hortênsias e dos romeiros, tema desesperado de tanto aspirante a escritor numa eterna antologia de autores açorianos, mas nem todos eles serão obreiros de verdadeira literatura.
Deixei premeditadamente para o fim Cristóvão de Aguiar , um escritor incómodo. Não só se libertou das grilhetas do cativeiro confinado da ilha como demonstrou com a sua prolífica publicação aquilo que mais se entreteve a negar: a existência de uma literatura açoriana. Exigente consigo e com os outros, com fama de intransigente, não se inibe com polémicas e controvérsias. Domina a língua como só os grandes escritores almejam, enquanto se deixa consumir na incandescente falta de confiança genética de ilhéu. Eterno insatisfeito burila as filigranas letras com que nos enleia no basalto da sua ilha adotiva, o Pico. Como visitou e viveu para lá da fronteira invisível do grande Mar Oceano olha retrospetivamente para o Pico da Pedra, em São Miguel, onde nasceu, e vislumbra a pequenez das gentes encarceradas nas ilhas, contentadas com qualquer emigração económica e a canga feudal que persiste. Pedaços de gente dura e impiedosa cumprindo rituais. Intolerante, devota e invejosa na sua ânsia de emigrar. Depois, o regresso de aparência gloriosa, mas sem acarrearem na desafogada bagagem algo de valor. Apenas dinheiro e bens materiais. Sobre a sua marilha natal, diz Cristóvão:

São Miguel já não é a mesma Ilha onde fui nado e criado e vivi até à arrogância dos vinte anos. Pude verificá-lo, há pouco, durante o 4.º Encontro Açoriano da Lusofonia, em que, para regozijo meu, não encontrei os costumeiros intelectuais de pacotilha, que sabem tudo quanto no Universo se passa, com retrato de pose na galeria dos imortais há muito mumificados…Nem é sequer a mesma Ilha que foi, até há poucos anos, muito nublada, já não digo por um nevoeiro absoluto, mas por alguns resquícios aparentados a certas pesporrências de má memória. Temos, porém, de convir que, durante séculos, certas forças religiosas, conluiadas com todos os poderes, foram o sustentáculo da ignorância abençoada pela trilogia Deus, Pátria e Rei de outros tempos, e Deus, Pátria e Família, do tempo de muitos de nós. Direi como Mestre Gil Vicente: E assim se fazem as cousas. Levou tempo, mas o inevitável aconteceu. Acaba sempre. O medo e outras rançosas virtudes impostos ao espírito e nele lavrado em sulcos mais ou menos profundos (nem toda a terra consente a ignomínia), com relhas enferrujadas e passadistas, têm destes percalços - no ápice de um instante imprevisto esse terreno enfastiado de tanta aridez fementida e coerciva, súbito se devolve à sua límpida condição de húmus que favorece a estrutura do solo e do subsolo e do infra-subsolo: o consciente, o subconsciente e o inconsciente.

Cristóvão é um permanente “Passageiro em trânsito”, título do seu mais benquisto livro na rota do inconformismo. É a voz ininterrupta de uma consciência coletiva que não se asfixia. Granjeou o direito a chamar os bois pelo nome sem se deter nas finuras das convenções do parece bem. É crítico impiedoso do destino que alguns queriam eterno, da subserviência e submissão aos senhores das ilhas, descendentes diretos dos feudais opressores da gleba. Narrativas dissecantes que se assemelham a uma técnica de travelling em filmagem. Grandes planos, zooms, e paragens esmiuçadas nos rostos e mentes dos atores principais dos seus diários, intitulados Relação de Bordo (trilogia) e A Tabuada do Tempo. A câmara detém-se e escalpeliza a alma daqueles que filma com palavras aceradas. Dói e magoa como o vento mata-vacas que sopra do Nordeste. Psicanalisando as gentes e a terra que o viram nascer adotou uma nova ilha mátria, em 1996.

A Ilha do Pico faz-me as vezes de mulher amada. Desvenda-se aos poucos, em erótico vagar, para se lhe descobrir os recantos e sortilégios mais íntimos. E nunca se chega, nem se precisa, ao cerne do feitiço... Meio encoberta, meio desnudada, sempre ataviada de cheiros exóticos e eróticos, faz com que se abram as narinas de cio. Colhem os olhos as tonalidades indefiníveis de seus roxos e azuis, o cinza entorresmado de seus mistérios, seus verdes percorrendo toda a escala cromática, vertidos na paleta primigénia de que se serviu o Criador para matizar a tela da Natureza. Sempre que caem sobre o mar do canal, cavado e furioso ou espelho de Narciso, a Ilha de São Jorge, nua e arroxeada, a garantir mais mundo, os olhos coalham-se de espanto em face do mistério de assistirem ao primeiro dia da Criação...Não cabe no olhar a Montanha bíblica. Extravasa a humana retina. Bíblica. Acredito ter sido em seu cimo, que roça o Céu, que Moisés recebeu as Dez Tábuas da Lei. E de um penedo fez jorrar a água que saciou a sede do seu Povo.

Cristóvão de Aguiar não é um autor fácil nem facilita o léxico para leitores de pacotilha. Amaldiçoado mas nunca maldito, outros o forjaram malquisto. Acossado por tudo e por todos. Exige tanto dos seus leitores como de si. As suas palavras pungentes estão gravadas visceralmente num granito alheio às ilhas que se encontra na trilogia Relação de Bordo. No último volume, deparámos com uma interminável história de amor sem que os leitores enxerguem esses arroubos. Ele é o magma de que são feitas as gentes de bem. Terei encontrado o escritor neste amigo novo? Este autor que ora descobri como se o conhecesse há muito, como se tivesse sido irmão caçulo ou compagnon de route 66 à la Jack Kérouac, iluminando o túnel das ideias . Navego imerso na sua escrita tateando como um recém-nascido fora do ventre materno. Aprendo com este mestre contemporâneo da literatura de matriz açoriana. Muito apoucado me aquilato em tão ínclita companhia.

Nestas navegações literárias, uma pessoa não lê apenas Cristóvão de Aguiar, empreende uma viagem tridimensional repleta de sentidos. Confluem na escrita como lava “pahoe-hoe” (pron. pah hoi-hoi) de aparência viscosa mas fluida, prateada e entrançada como cordas de baleeiro. Outros autores aparentam lava tipo “A a” (ah ah), grossa e áspera, magma de rochas solidificadas impulsionadas. Em Cristóvão de Aguiar nada é impelido embora por vezes se assemelhe na sua descrição e nos contornos emocionais à pedra-pomes, piroclasto dominante das rochas traquíticas. A observação de qualquer pedaço de basalto revela-nos, quase sempre, a existência de vesículas disseminadas na rocha, de tal modo estanques, que esta pode flutuar na água por largos períodos. Resultam de gases separados do magma que, não tendo escapado para a atmosfera, ficaram aprisionados na rocha sob a forma de bolhas onde também ficam retidos ad eternum todos os leitores. A escrita lávica de Cristóvão fica a boiar no nosso espairecido imaginário. Foi ela que nos instigou a rabiscar esta lamentação com o frémito ciumento dos que não conseguem escrever da forma única e inimitável como só ele sabe e sente sobre os Açores. Essa a forma de amar e de ressarcir a terra que o viu nascer... As ilhas irão, um dia, desatar as grilhetas que as enjaulam no passado e Cristóvão ficará então desobrigado da tarefa hercúlea de acarrear a sua ilha como um fardo ou amor enjeitado, que nisto de ilharias há muitas paixões não correspondidas.

Dias de Melo e Daniel de Sá já foram traduzidos e “O Pastor das Casas Mortas” vai surgir em castelhano. Cristóvão não foi traduzido. Além dele há outros escritores e poetas que teremos de divulgar e traduzir. Isto sim é um crime de lesa literatura. Iremos concentrar os esforços dos Colóquios em editá-lo no Brasil e tê-lo traduzido na Bulgária, Roménia, Polónia e Eslovénia. Todos nós, meros mortais, teremos de ler os restantes e apreciar a sua universalidade, apesar da matriz açoriana que a todos permeia. Sei que incorremos numa grave omissão se não conseguirmos lançar em novos mercados e traduzir “A TABUADA DO TEMPO”, “TORGA LAVRADOR DAS LETRAS”, “MARILHA”, “RAIZ COMOVIDA”, “RELAÇÃO DE BORDO I, II, III”. Este o desafio que lanço, hoje, como um repto que ninguém recusará, estou certo.

Dr. Chrys Crystello.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

TURISMO COIMBRA: "Cozinha de escritores" Eça; Torga e Cristóvão de Aguiar à mesa de 22 restaurantes de Coimbra, de 3 a 12 de Julho.

Escrito por Andrea Trindade
Coimbra animada em Julho
"Cozinha de escritores"

«Consolava-se então com regalos de gulodice. Durante todo o dia debicava sopinhas, croquetes, pudinzinhos de batata. Tinha no quarto gelatina e vinho do Porto. Em certos dias mesmo queria caldos de galinha à noite». Assim escrevia Eça de Queirós em “O Primo Basílio”, numa das muitas referências que, na sua obra, faz aos prazeres da boa mesa. A gastronomia e a sua arte pontuam também a escrita literária de Miguel Torga ou, nos contemporâneos, de Cristóvão de Aguiar. Todos têm em comum uma ligação à cidade do Mondego e foi por isso que as suas obras foram escolhidas como mote para a primeira edição da “Cozinha de Escritores”, um evento organizado pela empresa municipal Turismo de Coimbra (TC).

A semana gastronómica decorre de 3 a 12 de Julho e conta já com a adesão de 22 restaurantes da cidade, que vão recriar e reinventar os pratos tradicionais portugueses descobertos na obra destes três escritores.

Reiterando a importância da gastronomia na promoção turística, Luís Alcoforado, presidente da TC, explicou ontem, na sessão de apresentação do evento, que esta «ideia agregadora, mobilizadora e expressiva» surge da colaboração com o Mestrado de História da Alimentação da Faculdade de Letras de Coimbra (FLUC), da disponibilidade da Escola de Hotelaria e ainda da adesão da Associação de Industriais de Hotelaria e Restauração do Centro.

O responsável desta associação, José Pires, aplaudiu a iniciativa - «ainda mais importante no tempo de crise que atravessa a restauração» - e lançou o desafio de participação a todos os colegas do sector. «É bom que Coimbra acorde e trabalhe a gastronomia», sublinhou.
Albano Figueiredo, docente da FLUC e responsável pela investigação literária, garantiu que, do arroz de favas que Eça descrevia em “A cidade e as Serras” ao arroz doce e aos pêssegos abobrados, passando pelos carolos e pão de trigo de Torga ou os charrinhos assados na sertã de Cristóvão Aguiar, «há dezenas de pratos para todos os gostos e para todas as bolsas».

Restaurantes assinalados
Ao chefe Luís Lavrador coube pegar na recolha feita e sistematizá-la transformando-a em receitas. Ainda assim, o desafio de recriar fica entregue a cada um dos restaurantes, que apresentarão diariamente dois ou três pratos diferentes, dentro da “Cozinha de Escritores”, e ao preço que estipulem. Os restaurantes aderentes estão dispersos por Coimbra e exibirão uma sinalética alusiva ao evento no exterior, disponibilizando a quem degusta os pratos as respectivas passagens literárias onde surgem mencionados.[...]
In Diário de Coimbra de 19-06-2009.
RESTAURANTES ADERENTES
Panorama | Hotel D. Luis
Quinta da Várzea
3040-091 Coimbra
T. 239 802 120 | M. mauro.mota@hoteldluis.Diariamente das 12h30 às 15h30 e das 19h30 às 22h30

Magistrado | Hotel Tryp Coimbra
Av. Armando Gonsalves, LT. 20
3000-049 Coimbra
T. 239 484 658 | M. elisabete.magistradohotel@sapo.pt
Diariamente das 12h30 às 15h e das 19h30 às 22h

Colo da Garça | Hotel D. Inês
Rua Abel Dias Urbano, Nº 12
3000-001 Coimbra
T. 239 855 800 | M. direccao@hotel-dona-ines.pt
Aberto 24h

Porta Férrea | Hotel Tivoli Coimbra
Rua João Machado, Nº 4-5
3000-226 Coimbra
T. 239 826 934
Diariamente das 12h30 às 15h e das 19h30 às 22h

Arcadas da Capela | Hotel Quinta das Lágrimas
Rua António Augusto Gonçalves
3041-901 Coimbra
T. 239 802 380
Diariamente das 12h30 às 14h30 e das 19h30 às 22h30

A Petisqueira do Terreiro
Terreiro da Erva, 20. r/c
3000-153 Coimbra
T. 918 928 796
Diariamente das 9h às 24h

Adega Típica A Pharmácia – 7 Sabores de Aldeia
Rua do Brasil, 81/85
3030 – 175 Coimbra
T. 239 703 193
Diariamente das 12h às 2h

A Taberna
Rua dos Combatentes da Grande Guerra, 86
3000 – 181 Coimbra
T. 239 716 265 | M. ataberna25anos@gmail.com
Das 12h30 às 15h e das 19h30 às 22h30; encerra domingo ao jantar e segunda ao almoço

Cantinho do Reis
Terreiro da Erva, 16
3000 – 153 Coimbra
T. 239 824 116
De segunda a sábado das 12h às 16h e das 18h às 24h

Carmina de Matos
Praça 8 de Maio, 2-10
3000 – 300 Coimbra
T. 239 823 510 | M. carminadematos@iol.pt

Das 9h às 24h

Churrasqueira da Cidreira
Estrada Nacional 111 – Cidreira
3025 – 654 Coimbra
T. 239 961 215
Das 7h às 24h

Colher de Pau
Rua do Brasil, 56
3000 – 775 Coimbra
T. 239 403 544 | M. j-merces@hotmail.com
Diariamente das 12h às 16h e das 19h às 23h

Cova Funda “O Espanhol”
Rua da Sofia, 117
3000 – 390 Coimbra
T. 239 825 195
Diariamente das 8h às 24h

D. Pedro
Av. Emídio Navarro, 58
3000 – 150 Coimbra
T. 239 829 108
Diariamente das 10h às 24h

La Fiesta
Rua do Carmo, 54 - Loja 4
3000 – 064 Coimbra
T. 239 821 246 | M. rest.lafiesta@gmail.com
De segunda a sábado, das 10h às 24h

Nacional
Rua Mário Pais, 12 - 1º
3000 – 300 Coimbra
T. 239 829 420 | M. restaurantenacional@sapo.pt

De segunda a sábado das 12h às 15h e das 19h às 24h

Novo Rest | Eurest/Makro
Vale das Flores, Edifício Makro
3030 – 191 Coimbra
T. 239 702 056 | M. novorest.coimbra@eurest.pt
Diariamente das 7h às 22h

O Porquinho
Quinta da Ribeira, 1 Coselhas
3000 – 125 Coimbra
T. 239 494 036 | M. geral@oporquinho.com
Diariamente das 12h às 15h e das 17h às 24h

Praça do Marisco
Rua João de Deus Ramos, 145
3030 - 328 Coimbra
T. 239 403 384 |M. pracadomarisco@hotmail.com
Diariamente das 12h às 15h e das 18h às 24h

Quinta da Romeira
Rua António Pinho Brojo, lote 56 - Urb. da Romeira
3030 – 116 Coimbra
T. 239 781 301 | M. quintadaromeira@sapo.pt
De terça a sexta das 19h30 às 23h30 (almoços para grupos mediante reserva); sábado e domingo das 12h30 às 15h30 e das 19h30 às 23h30

A Portuguesa
Parque Verde
3000 – 476 Coimbra
T. 239 842 140

Restaurante da Escola de Hotelaria e Turismo de Coimbra
Quinta da Boavista
3000 – 076 Coimbra
T. 239 007 000 | M. ehtcoimbra@turismodeportugal.pt
De segunda a sexta-feira, das 13h às 15h

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006