Comecemos por uma data e por uma cidade. Não poderia ser mais inicial a data: precisamente o primeiro dia do ano de 1964. E a cidade é Coimbra, terra a que sempre regressa aquele que elabora esta Relação de Bordo.
Cristóvão de Aguiar tem o cuidado de avisar quem se apreste a, com ele, viajar pelas páginas deste livro que se trata de um diário ou nem tanto ou talvez muito mais, deste modo alertando o desprevenido navegante para o facto de as rotas não estarem bem definidas na geografia difusa desta aventura literária, pelo contrário, serão determinadas pelos ventos das emoções, pelas calmarias da razão, pelas tempestades dos sentimentos, pelas correntes da vida.
Quando, depois de percorrer o planeta mágico das palavras – depois de ter riscado uma cartografia sinuosa de um passageiro em trânsito; depois de ter arriscado as atribulações de um ciclone de Setembro; depois de ter conhecido os calores insuportáveis de um grito de chamas; depois de ter um braço tatuado como todos os nautas impenitentes; depois de reconhecer fantasias das ilhas dos amores e desamores; depois dos torrões mais íntimos e sofridos ter arrancado as raízes mais comovidas – quando depois de tudo isto estiver de novo em Coimbra, 25 anos passados e completos, o viageiro apenas poderá registar na Relação de Bordo o indefinível definitivo.
Assinale-se que a viagem física não abarca os cinco continentes, paisagens mais diversas, itinerários longos e frequentes... A viagem mais vivida é a interior, aquela que percorre os escaninhos da memória, que aporta a calhetas de refúgio, que alarga para os oceanos da imaginação, que enfrenta as vagas verdes (olá, Nemésio!) dos sentidos, que estiola ao sol baço das desilusões, que se anima ao pressentir os incontidos entusiasmos do corso breve, que se apresta para as arremetidas de piratarias traiçoeiras...
De facto, na relação portulana, figuram Coimbra, Mafra, Tomar, Pico da Pedra, Lisboa, Guiné (e os sugestivos topónimos da guerra) e Bristol como espaços de permanência mais alongada. Como espaços de estada fugaz surgem Leça da Palmeira, Gerês, Vieira de Leiria, Sítio da Nazaré, Figueira da Foz, Ponta Delgada, Providence, Boston, Praia de Mira...
Não é porem, a diversidade de lugares que importa relevar nesta viagem. Tratando-se, apesar de tudo, de um diário (se bem que o seu autor não esclareça com decisão a tipologia da obra), o que, meu ver interessa destacar são os movimentos viageiros da escrita, movimentos provocados por ventos contrários, que na elaboração do discurso íntimo se chocam no espaço autobiográfico. Neste sentido, escreve Clara Rocha, no seu ensaio A Poética dos Géneros Autobiográficos: «Os dois movimentos de sentido contrário que se combinam na escrita intimista são, por um lado, a concentração ou procura de um centro e a dispersão ou desregramento da coerência do eu (je est un autre). Por outras palavras, chocam-se neste tipo de escrita uma força centrípeta e uma força centrífuga.»
Nos diários, este movimento de forças contrárias é particularmente visível. Na realidade, a actividade diarística é uma concentração (nos dois sentidos da palavra: procura introspectiva dum centro e atenção concentrada): mas a escrita produzida revela-nos um eu disperso, variável ao sabor dos dias ao mesmo das horas.
Ora, de facto, nesta Relação de Bordo, Cristóvão de Aguiar constrói a sua personalidade literária autenticando uma imagem através das confidências e do desvendamento da intimidade. Mas essa personalidade é indesligável de outra faceta, já anteriormente entrevista no conjunto da sua obra poética e, sobretudo, ficcional. Em boa verdade, o leitor assíduo de Cristóvão de Aguiar verificará que muitas pessoas que constam desta relação são personagens dos seus romances. O que é interessante, nesta operação reveladora, é o reconhecimento das suas personalidades reais e referenciais.
Naturalmente, o acto de leitura leva a que, involuntariamente, sejam estabelecidas comparações com modelos anteriormente estabelecidos. Neste caso, há aproximações evidentes aos diários torguianos, posto que, de forma aberta e fecunda, as formas e os conteúdos são diversos. Claro que fica registado o percurso de vinte e cinco anos de vida e que o experienciado é o mais significativo, não só porque representa quantitativamente o essencial da viagem mas também porque relata, dá testemunho e recria factos de suma importância para o conhecimento do autor, sem dúvida, e, mais importante do que isso, para a compreensão do mundo em que vivemos.
Assim, logo no primeiro dia, anuncia... «No próximo dia 27 do corrente, numa segunda-feira, logo de manhã, vou iniciar em Mafra o curso de oficiais milicianos, com destino a guerra colonial.» Chegará, porém, a 26 de Janeiro de 1964, à noite: «O casarão do convento é tão frio e tão feio, que tenho o coração a doer e vontade de chorar.» E até Agosto o soldado cadete n.º 1114/64 dará conta das suas revoltas de consciência e dos seus arrepios perante, por exemplo, as condecorações póstumas ao assistir na televisão a uma parada militar no dia 10 de Junho.
Serão depois as peripécias da guerra que marcam duas gerações e que vão consumindo todas as razões até ao tição da loucura. Numa época em que tentam fazer crer na morte das ideologias e na inexistência do fascismo em Portugal, é pertinente a evocação do estado da alma e do corpo de um involuntário combatente. Para além do conhecimento das etapas da vida do escritor Cristóvão de Aguiar (e nesta Relação fica mais inteiro e reconstituído o possível homem total), a observação do quotidiano pode incidir sobre o conhecimento de uma realidade risível, delineando-se, a espaços, a caricatura, que chega a ser pungente. Apenas um atento observador das nossas tristuras mesquinhas as pode traçar de um modo tão certeiro quanto impiedoso.
Assinaláveis por aquilo que representam no plano individual e por aquilo que significam para o entendimento da vida cultural e social do nosso país são as evocações datadas e emotivas e emocionadas de personalidades que vincaram indelevelmente os tempos referenciados: Nemésio, Paulo Quintela, Joaquim Namorado...
Retomando a aproximação entre a Relação de Bordo e os diários de Torga, há que referir a inclusão de poemas que referem o local onde foram redigidas e ainda a obsidiante procura de um centro. Se, em Torga, é São Martinho de Anta, o espaço português, a pátria, em Cristóvão de Aguiar é a ilha. Como escreve Carlos Ascenso André na Carta-Prefácio: «Mesmo o “tu” que construíste, paulatinamente, a compasso dos dias que nestas páginas vais rastreando, mesmo esse “tu” poderá não ser quem tu planeaste que fosse. Queiras ou não, esse “tu” – que desejarias fosse a “ilha” onde aportaste – é também inelutavelmente a ilha de onde partiste. Melhor dizendo: Esse “tu” é a “ilha”. Simplesmente. Mágica, como todas as ilhas. Obsessiva. Fascinante. Pólo aglutinador de todas as vagas e areal por onde as mesmas águas se espraiam. Espaço de encontro e espaço de solidão. A “ilha” feita pessoa e a pessoa volvida “ilha”, como te impõe essa condição que os acasos da fortuna ditaram que fosse tua.»
Outro encanto deste livro reside no escorreito, limpo e direito uso da língua portuguesa – uso que provém da mestria e do pressuposto saudável de que aquele que escreve quer ser entendido.
Finalmente, o carácter sedutor de um diário provém daquelas virtudes assinaladas por Marcelo Duarte Mathias em No Devagar Depressa dos Tempos: «Um diário é isso mesmo, e não pode, em boa verdade, ser outra senão o reflexo particular de uma história que é de todos e a todos pertence. (...) Cada olhar reflecte uma imagem e é essa imagem diferente que procuro nos outros. Se o que a todos nos define é o nosso indefinível, o respeito pelos outros, a valorização da vida alheia só a entendo através do que os aproxima daquilo que em mim é irredutível aos demais, e faz de mim – do nascer ao morrer – o meu limite e a minha última referência.»
Pois, partir desta leitura, fico mais consciente do meu limite e mais sensibilizado para as minhas referências.
E, para além dos assinaláveis pontos de interesse diversos deste livro, que se abre à leitura onde tocam os dedos na cisão das páginas, oferecendo a crónica, o poema, o comentário, a memória, a narrativa a que se não furta o ficcionista que Cristóvão de Aguiar essencialmente é – a Relação de Bordo aí está, sobretudo, como o espaço por onde erra a geração que padeceu a guerra colonial, que fez e assistiu ao 25 de Abril, que tem inquietações e anseios de fim de século, que pode rever-se no eu autobiográfico de um sujeito dramático que ora vem dialogar connosco no mais íntimo e insulado tempo da leitura.
Vasco Pereira Costa
Diário de Notícias
27 de Abril de 1999
quinta-feira, 23 de agosto de 2007
Relação de Bordo (1964-1988), crítica de Vasco Pereira da Costa, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 27 de ABRIL 1999, "O diário da geração da guerra colonial"
Publicado por Lapa às 23:13:00
Secção: críticas literárias, Relação de Bordo I
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TANTO MAR
A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.
Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.
Manuel Alegre
Pico 27.07.2006
do qual este poema começou a nascer.
Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.
Manuel Alegre
Pico 27.07.2006
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