quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Professor Aníbal Pinto de Castro: Apreciação genérica da obra e razões do seu apreço por Cristóvão de Aguiar - 2000

(…)Hoje, porém, aqui estou. Não para lhe escrever o estudo crítico que, como escritor, Você de há muito merece. Não lhe escondo até que, se o tempo a isso me der talho, muito gostarei de fazer um dia. Desta feita quero apenas, de uma forma afectuosamente simples, dizer-lhe um pouco das razões do meu apreço por si e pela sua obra, tal como tenho vindo a conhecer um e outra, através dos três volumes da Raiz Comovida, e das páginas do Ciclone de Setembro, do Passageiro em Trânsito ou da Relação de Bordo, entre outros.
O que mais profundamente me impressiona na sua escrita é a riquíssima carga de humanidade que simultaneamente lhe serve de “raiz”, lhe vivifica a alma e lhe marca o estilo. Por isso a sua ficção está tão visceralmente ligada aos lugares onde nasceu, cresceu e viveu, e às pessoas que, sendo parte essencial desses lugares, deles conservam marcas tão fundas mesmo quando, no seu discurso, se volvem personagens. E daí decorrem, afinal, as características que melhor o definem como escritor.
Em primeiro lugar, a sua autenticidade, que é, acima de tudo, fidelidade às suas raízes, teimosa e indelevelmente arreigadas na lava da sua Ilha. Não é por acaso que este conceito e a palavra que o traduz lhe saltam com tanta frequência à mente no acto de escrita e lhe servem de título a uma assaz longa série de volumes! No seu mundo afectivo (do qual decorrem, afinal, as suas opções essenciais como escritor) a Ilha transforma-se, tanto pelo poder encantatório da saudade como por um sentido artifício metafórico e metonímico, numa envolvência generosa e plena, que é ao mesmo tempo mãe placentária, mulher de serena beleza, amante fogosa e sempre dolorosa nostalgia, mesmo quando nela reentra por períodos mais ou menos demorados de reencontro ou de evocação. É assim que, quando, num passo da Relação de Bordo escrito em Mafra a 3 de Fevereiro de 1964, escreve “Viajo por dentro de mim e chego sempre à Ilha”, não está apenas a referir-se ao encontro imaginário com um amor ausente no tempo que por lá deixou perdido. Está sobretudo a procurar dentro de si (e a encontrar!) essa Ilha feita de lava, de mistério e de saudade, sem se dar talvez conta de que, estando dentro de si, ela o envolve e o enleia, não para o sufocar, mas para o fazer vibrar de emoções sempre novas e lhe revelar, dentro e fora de si, dentro e fora dela, o melhor do sentir poético que, por uma força quase invencível que dela lhe vem, Você exprime na sua prosa, bem melhor (permita-me a franqueza) do que nos seus versos.
É por essa mesma razão que, sendo um errante passageiro em trânsito, Você consegue o milagre de conciliar esse apego profundo a essa sua Ilha ancestral com a entrega, sempre apaixonada, às novas ilhas de um seu arquipélago imaginário, em cujo mapa se vieram alinhando outros lugares, marcados pelo bom e mau que a Vida sempre traz consigo, sejam os eldorados da emigração açoriana em terras americanas, sejam (mirabile dictu!) as dores físicas e morais da lancinante experiência da guerra da Guiné, antecedidas pelo inferno tantas vezes desumano de Mafra, seja sobretudo o encantamento irresistível desta Coimbra, que tanto o soube cativar desde o tempo das suas ilusões de menino e moço! Compreende-se deste modo como, em si, a espontânea generosidade com que adere às causas que, em certos momentos da vida lhe parecem justas, se concilia com uma nobre capacidade de tolerância, só de raro em raro perturbada, e com um sentido quase bravio de independência de espírito e de opinião que o fazem respeitar os outros ou reconhecer, com exemplar humildade, que o seu caminho não era exactamente por onde, em determinadas circunstâncias, julgou que necessariamente poderia ou teria de passar.
Depois, gostaria de sublinhar a intrínseca simbiose que estabelece entre o memorialismo e a ficção. Como em todos quantos se abalançam à arte difícil da escrita diarística, o meu Amigo vê a realidade vivida por si com as lentes de uma agudíssima sensibilidade poética de dimensão universal. Não admira, pois, que, quando narra o seu dia-a-dia, nos dê dele um ou mais quadros que, sem faltar à verdade, adquirem uma dimensão ficcional tão própria e acentuada que os projecta numa polifonia já de pendor flagrantemente lírico; e que, por outro lado, a sua ficção se mantenha tão presa ao seu quotidiano referencial, conferindo-lhe tons de verdade que mantêm os problemas humanos sofridos pelas personagens ao alcance imediato dos seus leitores e da vida real que estes também defrontaram ou defrontam. Lembra-me Camilo, em cuja ficção personagens, criador e os virtuais leitores tão facilmente conviviam que pareciam comparsas de um mesmo drama em cuja representação se acotovelassem sobre as tábuas do imenso palco do grande teatro do Mundo!
E é ainda a essa simbiose de ancestralidade, de experiência de vida e de cultura literária que Você vai buscar o melhor do seu estilo. O linguajar da fala micaelense, bebido no leite de sua Mãe e no rigor honrado de seu Pai, e do qual Você (Deus louvado!) conserva o feliz sotaque, dá-lhe belíssimas expressões que conferem ao seu discurso, em cuja correcção se sente ainda a excelência dos Professores de Português que teve e a lição das muitas e boas leituras que ao longo da vida fez, aquela mesma autenticidade feita de saber, de sentir e de exprimir que eu acima sublinhava. Respigo, quase ao acaso, alguns exemplos das páginas da Relação de Bordo. Veja como ficou “néscio e sucinto”, quando a Contuboel chegou o telegrama anunciando o nascimento do seu primeiro filho (p. 67); ou aquele “lirismo de confeitaria [que] atinge o negativo no termómetro social” que tanto o irritou na véspera de um Natal passado em Coimbra (p. 104); ou aquele “desistir de ter futuro” com que noticia a morte de Ary dos Santos (p. 310); ou aquela sensação de que “era a cabeça do mundo que doía em si”, no fim de uma tarde passada numa esquadra de polícia (p. 331); ou o desejo que sentiu um dia em Bristol, de que o levassem imediatamente a casa de seus Pais a fim de reunir, um por um, os cacos em que se fragmentara (p. 384) – cá temos um sinal bem claro daquela sua fragmentação de ilhéu ancorado por vários cantos do mundo! –; ou o adro azul da sua infância, de que fala na p. 408...
Não deixa de ser prova bem evidente dessa sua capacidade de metaforizar a vida e a linguagem que a traduz, mesmo nos seus momentos mais difíceis, este passo, datado de Coimbra, a 3 de Maio de 1984, em que, para exprimir a dificuldade de retomar a escrita, evoca o salto para o galho que, como todos os que por lá passámos, tinha sido obrigado a dar quase 20 anos antes, na Tapada de Mafra: “O galho da escrita está um pouco mais afastado da plataforma onde se encontram as intenções. Nele entram em jogo outros músculos e outras mãos” (p. 344).
Recordarei sempre, como momentos de magnífico recorte poético e estilístico a página datada de Leiria, a 16 de Dezembro de 1970, em que, perante um menino pobre que brincava na rua, se aproximou de Jesus, porque a Ele o compara o menino, mas também porque, descido de novo à realidade, não encontrou nenhum José de Arimateia que se aproximasse da sua cruz... Ou aquela outra a ressumar um doloroso sentimento de abandono, mas de tão feliz riqueza metafórica, quando em Coimbra, a 24 de Agosto de 1988 (p. 412), o telefone emudeceu, o carteiro não tocou e, sobretudo, a esperança não esperneou!
Meu caro Cristóvão, tenho de parar, sob pena de transformar a expectativa da carta que lhe prometi, num enfadonho arrazoado de análise de textos que corre sério risco de lhe causar pesadelos. É que eu, como Professor, pergunto muitas vezes a mim próprio o que diriam os autores cujos textos ensinamos, se pudessem ver os coelhos críticos que lhes iramos das cartolas que escreveram... Graças a Deus que o meu Amigo está vivo e são para me poder desmentir e pôr na ordem, se vir que desatremei ou que me atrevi a vender a suculenta lebre dos seus livros pelo esfolado e mal cozinhado gato vadio da minha prosa arvorada em... crítica! Creia, no entanto, que, justo ou injusto, certo ou errado, quanto aqui lhe escrevo é sincero, porque nasce do cordial apreço que lhe dedica o seu colega, amigo e fiel leitor muito agradecido.

In prefácio do Relação de Bordo II e Homenagem a Cristóvão de Aguiar

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Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006