O Júri, que aqui represento e de que, por deferência, fui designado porta-voz, decidiu, por unanimidade, atribuir o Grande Prémio de Literatura Biográfica, para o biénio de 1998/1999, ao volume Relação de Bordo, de Cristóvão de Aguiar, por duas razões fundamentais. Em primeiro lugar, pela qualidade humana da referida obra, que se apresenta simultaneamente como um vasto e rico repositório de experiências, assinaladas por um vinco de inegável autenticidade, e como documento de irrecusável alcance, se olhado na perspectiva da ética das relações, dos gestos, das atitudes, e do sentido da própria vida. Como documento, dizemos, no sentido rigoroso do termo, isto é, o do que se oferece como ensinamento ou lição e, também, como testemunho e memória emblemática. Em segundo lugar, pela qualidade literária de uma escrita onde poesia e prosa se aliam, se cruzam, se entrelaçam, se harmonizam, urdindo um tecido de irradiantes tonalidades e, não raro, de efeitos de surpreendente beleza.
Julgo, por isso, que a obra – esta obra – de Cristóvão de Aguiar exigiria – diria mesmo: reclama – uma análise de que eu, reduzido, por natural inclinação, à condição de leitor atento e obrigado, não disponho, e da qual beneficiariam não apenas a obra em questão, mas o seu autor.
Relação de Bordo, diz o título. E, se a palavra “bordo” logo inequivocamente indicia a ideia de viagem, o substantivo “relação”, esse, inscreve-se numa área de complexa variabilidade semântica. É que a “relação” tanto pode ser o relato (derivado regressivo do verbo relatar), isto é, a narração de algo, de acontecimentos vividos ou, tão-só, observados, como a lista ou rol dos objectos, instrumentos e pertences, próprios ou alheios, necessários a determinada actividade ou simplesmente oferecidos à curiosidade, à observação e à análise. E pode, ainda, ser a ligação – o relacionamento, o trato, o comércio – com os outros, com as coisas, com o mundo. De todos os referidos conteúdos participa, a meu ver, esta “Relação” de Cristóvão de Aguiar, já que o autor se não apresenta como simples narrador dos acontecimentos que se inscrevem na órbita do seu dia-a-dia existencial, mas porque eles, acontecimentos, lhe fornecem ocasião e pretexto para pôr em evidência, mas também em confronto, comportamentos, práticas, sensibilidades, mentalidades, diferentes modos de olhar a realidade, o tempo, o mundo, os homens. De se olhar a si próprio como peça duma engrenagem em constante mutação, de se auscultar e explicar, sem tibiezas, aos olhos dos outros. De se conhecer e compreender nos próprios movimentos ondulatórios da sua personalidade e nas interacções que os motivam e determinam. Se há aqui efabulação, é no sentido etimológico do termo, isto é, de fala ou discurso a partir de algo. Daquilo que, no caso, se institui ou elege como motivo de registo, de ponderação e reflexão. De auto-reflexão também.
Porque, é preciso dizê-lo, o autor não se constitui mero narrador de acontecimentos de que é, umas vezes, protagonista, outras, participante, observador, outras, ainda, mediador. E é por isso, também, que não é fortuita ou insignificante a selecção dos episódios trazidos à colação. Dela (porque nem tudo o que acontece tem igual significado e importância) releva uma personalidade que tanto se anuncia e afirma na “arqueologia dos afectos” (“Arqueologia de um afecto” é o título de um dos poemas incluídos no livro), como nas pulsões oriundas dum quotidiano itinerante onde cabem e, por vezes, coabitam a ternura e os amores, os traumas, os temores e os tremores, as raivas, as aversões e as repulsas.
Da obra e do autor (porque o autor é aqui a sua obra, ou vice-versa) acentuarei, pois, e ainda, se me permitem: a coragem de se encarar ou enfrentar ao espelho; de se retratar em carne viva; de trazer à superfície, expondo-os na praça pública, o lodo, a enxúndia, a náusea e o nojo acumulados nos interstícios do tempo e da memória. Acentuarei o diálogo de si com o outro, que é o próprio, não lhe ocultando – e não lhe perdoando, às vezes – as pequenas perversidades, as fraquezas, as fragilidades e misérias a que humanamente está sujeito e a que não logra furtar-se. Direi, enfim, que se trata de um documento de rara grandeza e duma nobreza e pungência raras a que não pode ficar-se indiferente, a menos que se tenha entorpecida a mente e embotada a sensibilidade.Testemunho de um tempo – nosso tempo – e dos agentes da história – a pequena e a grande história –, esta Relação de Bordo é, em síntese, um compromisso (mas também, às vezes, um ajuste de contas) do autor consigo mesmo, com o mundo, com a mesma história. Um compromisso com a vida, no que ela tem de verdadeiramente substantivo, estimulante e significante. De nobre, sim, mas também de obsceno, algumas vezes. Demasiadas vezes, porventura.
“Diário ou nem tanto ou talvez muito mais”, assim vem subtitulada esta Relação de Bordo, que tem como âmbito cronológico o período compreendido entre os anos de 1964 e 1988.
Diário, isto é, nas palavras do autor, “a tineta de assentar tudo o que vai acontecendo” ou, por outras palavras, também suas, “esta empreitada de ir assentando e assuntando (...) as coisas mais importantes da minha vida e dos que me estão mais próximos”. Está assim, julgo eu, explicado aquele “nem tanto” do subtítulo, já que o termo “diário” aponta para o registo, dia-a-dia, de tudo o que vai acontecendo, e não apenas “o mais importante”. Mas o livro é também, e não “talvez”, muito mais do que isso. É também autobiografia, livro de memórias, de confissões, ensaio, crónica, reportagem, sátira, poema. Um complexo mosaico onde lirismo, e drama, e tragédia, e comédia (a tragédia e a comédia existenciais) alternam, umas vezes, outras se enlaçam, se enredam, construindo uma teia em cujas cerradas malhas o leitor se vê, também ele, envolvido, enredado, comprometido, sem remissão e sem apelo.
Dito isto, afigura-se-me irrelevante, além de inoportuno, falar de modelos. Cristóvão de Aguiar não esconde a sua admiração por Miguel Torga, que diz ser o seu “escritor preferido”, achando mesmo “natural” que a sua “escrita tenha sido grandemente influenciada” pela dele, que considera, diz, “inimitável”. O mais cómodo – o mais fácil – seria trazer de imediato à colação, do referido autor, A Criação do Mundo e o Diário, obras, sem dúvida, de referência obrigatória (incontornáveis, como agora se diz), quando se questiona a existência, entre nós, duma verdadeira literatura autobiográfica. Mas poderiam citar-se, além de Torga, Raul Brandão e as suas Memórias; O Mundo à Minha Procura e as Páginas, de Ruben A.; a Conta Corrente, de Vergílio Ferreira; os Cadernos de Lanzarote, do Nobel português José Saramago; Na Água do Tempo, de Luísa Dacosta; e, mais recentemente, Tudo o que não escrevi, de Eduardo Prado Coelho. É irrelevante, insistimos, porque di-lo algures Eduardo Lourenço, “ninguém nasce de si mesmo”. E porque, como lembra José Régio, “só o que de algum modo nos pertence pode influenciar-nos profundamente”.
Terminarei com uma nota pessoal: numa época em que tantos aprendizes de feiticeiro da escrita, guindados ao pódio, se vêem promovidos ou auto-promovem a candidatos a nobéis de ocasião; numa época em que a língua se vê diariamente maltratada em tantos – em todos os – lugares onde devia ser respeitada e protegida, é reconfortante (é-o, realmente, para mim) encontrar alguém para quem o exercício da escrita é simultaneamente um acto de cultura, de liberdade, de coragem, de inteligência, de lucidez, de higiene (de purificação ou catarse, se preferirem), de aprendizagem e de conhecimento. De conhecimento dos outros, sim, mas também, ou sobretudo, de si próprio. O que torna, desde logo, o referido exercício um acto necessário e, por isso, imperativo. E, por isso, indispensável. E, por isso, inadiável. Alguém com soberana mestria e soberana dignidade, se entrega à dura “lavoura das palavras” para, com elas, limpar o “muito lixo” acumulado no “armazém da memória”. Cristóvão de Aguiar sabe, com efeito, que “a palavra gerada, amadurecida e parida na maternidade do verbo” traz coladas pústulas de sangue e outras aderências que, a bem da higiene, da verdade e da estética, é necessário remover a todo o custo. Sabia-o já, muitos séculos antes de nós, o velho Sá de Miranda, ao confessar ao seu amigo Pêro de Andrade Caminha, num conhecido soneto, que nunca se cansava de “lamber” os seus versos “como ursa os filhos mal proporcionados”.
Obrigado, Cristóvão de Aguiar. Estou certo de que a “memória curta dos dias” – isto é, dos homens – não irá “atirar para um cesto cheio de esquecimento” a sua obra. A garantia é ela própria, a sua obra, que a fornece. E os premiados somos nós.
sexta-feira, 17 de agosto de 2007
Professor Albano Martins, Fundamentação da atribuição do Grande Prémio APE/CMP a Relação de Bordo I
Publicado por Lapa às 00:59:00
Secção: Prémios Fundamentação, Relação de Bordo I
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TANTO MAR
A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.
Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.
Manuel Alegre
Pico 27.07.2006
do qual este poema começou a nascer.
Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.
Manuel Alegre
Pico 27.07.2006
2 comentários:
Aprendi muito
Eu também, obrigado anónimo. Volte sempre
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