segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Miguel Torga "Lavrador das Letras" in Correio da Manhã por Cristóvão de Aguiar


Costuma dizer-se que os Poetas não têm biografia. No caso de Torga assim não acontece. A sua vida constitui o húmus de toda a sua escrita, tanto na poesia, como na prosa (o romance autobiográfico ‘A Criação do Mundo’ representa o percurso inteiro de uma vida e quem o lê fica ciente de tudo o que respeita ao homem e ao escritor), passando pela diarística (16 volumes), que foi lavourando durante mais de sessenta anos sem descanso.

Miguel Torga tinha da escrita uma ideia de sacerdócio. Escrevia por devoção, é certo, mas a pena não lhe deslizava ao longo da página com a desenvoltura dos que se julgam iluminados por uma inspiração que só para eles existia e que em Torga se transmudava numa bica de suor e aflição. A maior parte das vezes atravessava a noite a ‘lavrar’ a página e, no fim, já madrugada, quase manhã, a colheita nunca era proporcional ao trabalho despendido. Muitos exemplos existem no Diário em que o próprio Torga reflecte sobre o seu ofício de “lavrador das letras” angustiado e quase desesperado perante a página rabiscada e repleta de emendas. Revia até à exaustão. Nas tipografias onde imprimia a sua obra, sempre em edição de autor, os gerentes recusavam-se a fazer-lhe um orçamento prévio, porque, não raro, revia cinquenta vezes o mesmo exemplar.

Torga não usou sempre este nome. Baptizaram-no na igreja de S. Martinho de Anta, onde nascera a 12 de Agosto de 1907, como Adolpho Correia da Rocha. Filho de pais pobres, o destino que o aguardava não era lisonjeiro: ou seminarista ou camponês. A mãe, com quem mantinha uma intensa cumplicidade afectiva, havia de lhe declarar, já depois de homem feito: “Nunca me enganaste, filho; falaste-me na barriga ”

O nome Miguel Torga havia de surgir em 1934, no livro ‘A Terceira Voz’, não como heterónimo, tão-só para que houvesse uma distinção entre o médico que iniciara a profissão e o escritor que dava os primeiros passos. Estreia-se, em livro, com ‘Ansiedade’ (1928), que vem a repudiar.

Concluída a quarta classe na sua aldeia, a conselho da mãe, ruma à cidade do Porto para trabalhar como criado de servir numa casa rica. Não se dá bem a ser lacaio de meninos ou a puxar-lhes o reposteiro nas representações teatrais. Era a revolta a instalar-se! Regressa a S. Martinho e logo depois entra para o seminário de Lamego, onde fica só um ano. O pai, que não queria dar ao filho a mesma vida que levava, indicou-lhe o caminho. Brasil. Tinha lá um tio que lhe mandou uma carta de chamada e o pequeno Adolpho, com apenas 13 anos, zarpou para a Terra de Santa Cruz. Trabalha na fazenda do tio, homem muito duro, durante cinco anos. Aos dezassete anos, manda-o matricular no Ginásio Leopoldinense, que frequenta durante dois anos, após o que, como recompensa do trabalho exercido durante cinco anos, lhe dá a escolher dois caminhos: montar-lhe um comércio no Rio de Janeiro ou pagar-lhe os estudos. Regressa a Portugal, termina o curso dos Liceus em três anos, matriculando-se depois na Faculdade de Medicina.

Enquanto estudante, colabora na revista ‘Presença’, da qual foi dissidente, em 1930, com Edmundo Bettencourt e Branquinho da Fonseca. A rebeldia de Torga já se manifestava, não se compaginava com escolas literárias. Fundou duas revistas: ‘Sinal’ e ‘Manifesto’, que têm curta duração.

Em Dezembro de 1939, e na sequência da publicação de o quarto dia de ‘A Criação do Mundo’, Torga é preso na cadeia de Leiria, onde abrira consultório de otorrino, tendo sido transferido para o Aljube. Aí permanece até 2 de Fevereiro de 1940. Escreve na cadeia um dos grandes poemas da resistência portuguesa ao fascismo: ‘Ariane’.

Daí em diante, Miguel Torga traçou o seu próprio percurso. Sozinho. Longe das luzes da ribalta. Morre em 17 de Janeiro de 1995, no Instituto de Oncologia, em Coimbra, em plena lucidez de espírito, como se pode ver pelo poema abaixo transcrito. Recebia os amigos e nunca lhes falava da morte próxima. No derradeiro poema do seu último ‘Diário’, com data de 10 de Dezembro de 1993, confessa-se:

REQUIEM POR MIM

Aproxima-se o fim.

E tenho pena de acabar assim,

Em vez de natureza consumada,

Ruína humana.

Inválido do corpo

E tolhido da Alma.

Morto em todos os órgãos dos sentidos [ ]

*escritor duas vezes vencedor do Prémio Miguel Torga/Cidade de Coimbra

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Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006