quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Miguel Torga: Hino à capacidade de indignação

Escrito por Rui Avelar e Paula Alexandra Almeida
08-Ago-2007

Nascido em Trás-os-Montes a 12 de Agosto de 1907, Adolfo Rocha foi médico (otorrinolaringologista) em Coimbra, onde adoptou o pseudónimo literário de Miguel Torga e faleceu a 17 de Janeiro de 1995.Conceituado poeta, protagonizou nessa qualidade o seu último acto público ao enviar, em Setembro de 1994, uma mensagem ao Parlamento Internacional de Escritores (evento efectuado em Lisboa).
Ao aludir a um passado de quase meio século de ditadura, o escritor disse que uma “tenebrosa polícia política (a PIDE/DGS) e censura férrea fizeram de Portugal um inferno de condenados ao silêncio e à raiva contida”.
Em nome da “autoridade desse passado de resistência”, afirmou que “o Homem, quando perde a capacidade de indignação, perde a própria razão de ser”.
Neste contexto, lembrou que Portugal é uma das mais velhas nações da Europa e assinalou ter sido “a ânsia de liberdade do seu povo a emancipar o país dos demais territórios peninsulares”.
Segundo Torga, as democracias reinantes, “que deviam nivelar os homens por cima, nivelaram-nos ao rés-do-chão”. “No seu critério”, acrescentou, “somos nominais suportes do seu poder e é como cidadãos conscientes que queremos viver a dizer que não na hora de todas as subserviências e a ser verdadeiros na hora de todas as mentiras”.
“Nós somos essas vozes que até hoje clamaram no deserto, mas chegou a hora de nos fazermos ouvir, doa a quem doer, não como profetas fanáticos que são tiranos potenciais, mas como simples humanos que só querem o poder pleno da nossa condição”, afirmou Adolfo Rocha na mensagem dirigida ao Parlamento Internacional de Escritores.
Homem para quem “o universal é o local sem paredes”, Torga fez a apologia da condição de “livres e ecuménicos cidadãos, naturalmente irmãos de todos os semelhantes dos cinco continentes”.


Manuel Alegre e o centenário do nascimento de Miguel Torga
A inquietação de Portugal

Foi o dr. António Ramos de Almeida, crítico literário e autor de uma biografia de Antero de Quental, quem primeiro me aconselhou a leitura dos poetas da «Presença», nomeadamente de Miguel Torga.
Por essa altura, já eu tinha lido os poetas do «Orpheu», graças a um professor do Liceu de Alexandre Herculano, António Cobeira, amigo íntimo de Fernando Pessoa e de Mário de Sá-Carneiro. De modo que não foi propriamente a modernidade da linguagem o que me surpreendeu em Torga. Ainda hoje não sei o que tenha sido. Não o ritmo, nem a invenção metafórica, nem a toada encantatória de outros poetas. Foi talvez a sensação de estar a ler palavras restituídas à sua pureza primordial, reduzidas ao osso, como se aquela prosa e aqueles versos fossem esculpidos na pedra pelo primeiro homem que juntou as sílabas segundo regras mágicas. Ou talvez a revelação de ter encontrado alguém que, num tempo de desidentificação e mistificação, era uma espécie de adivinho, antes da História, antes, até, da literatura. Sim, talvez tenha sido isso. Torga, sendo moderno, era muito antigo. Num país de não poucos rouxinóis, ele trazia à língua portuguesa a dureza da pedra e uma escrita de palavras substantivas, necessárias, únicas.
Mas foi durante o meu exílio que, separados, verdadeiramente nos encontrámos. Em Argel e nas partidas do mundo por onde andei, descobria outro Torga, aquele que, aquém e além da literatura, era, em alguns dos seus livros, o único Portugal que eu podia ter. Então percebi que alguns poetas, em certas situações, podem ser mais do que eles próprios, podem ser uma pátria. Foi isso que Torga, com mais alguns, poucos, durante 10 anos, foi para mim: uma pátria. Respirava Portugal lendo algumas das suas páginas.
São muitas as histórias que sobre ele se contam e muito deformada a imagem que em certos meios dele se foi malevolamente construindo. Torga não era duro nem difícil. Foi das pessoas mais delicadas que conheci. Havia nele uma aristocracia natural no comportamento, na atitude, na relação com os outros. Sempre o vi disponível para ajudar quem estivesse em dificuldade. Narciso? Todos os artistas o são.
Mas poucos se interrogaram e duvidaram tanto. De certo modo, ele sofreu cada palavra. Corrigia sem cessar, buscava a forma impossível, nunca estava satisfeito. Para ele, a literatura relevava do sagrado. Ele desconstruiu-se e reconstruiu-se em função da literatura. Acreditava na obra e ao mesmo tempo punha-a e punha-se em causa.
Miguel Torga viveu atormentado com a escrita e creio que não morreu em paz com ela. Na cama do hospital, teve sempre, até ao fim, o caderno na mão. Escreveu sempre, emendou sempre, desbastando a prosa, cada vez mais despojada.
Morreu como viveu: com inteireza.
Lá não sei onde continuará, por certo, a escrever, a cortar, a colar as resmas de papel, já mil vezes corrigidas. A tortura da forma era filha da sua angústia ontológica e do seu zangado diálogo com a ausência de Deus.
No dia do seu enterro, em S. Martinho de Anta, eu disse que ele era um pedaço de Portugal que descia à terra. Cada vez mais penso que foi assim mesmo.
Por muitas razões, faz falta.
Ninguém foi tão visceralmente e ao mesmo tempo tão lucidamente português.
Severo e implacável na crítica dos vícios ancestrais – a superstição, o dogmatismo, a mesquinhez – contrário a toda e qualquer forma de mistificação e mitificação patrioteira, mas sempre com uma confiança inabalável no povo português e sem nunca descrer desta “nesga de terra / debruada de mar”.
Como Fernando Pessoa, ele detestava o provincianismo mental. Só que para Miguel Torga o nosso pior provincianismo era um falso cosmopolitismo parolo e novo rico, sempre a imitar a última moda chegada de fora.
Por isso, nestes tempos em que está na moda duvidar de nós mesmos, faz falta alguém capaz de falar orgulhosamente e descomplexadamente de Portugal, como Miguel Torga o fez, na mensagem que dirigiu ao Parlamento Internacional de Escritores reunido em Lisboa [em Setembro de 1994]. Faz falta alguém que, de novo, diga, como ele então disse nessa mensagem: “É como cidadãos conscientes que queremos viver. A dizer não na hora de todas as subserviências, a ser verdadeiros na hora de todas as mentiras.”
Algures, por aí, ele estará a relembrar-nos a mensagem que, em Dezembro de 1974, enviou ao Congresso do PS e em que “fazia votos de que o povo português possa encontrar na realidade de um socialismo de feição própria a sua plenitude humana e a sua dignidade cívica, não projectadas numa lonjura messiânica, mas inseridas num concreto futuro próximo”.
Algures, por aí, ele estará talvez a murmurar:
“É o vento que me leva / o vento lusitano / é este sopro humano / universal / que empurra a inquietação / de Portugal”.
Ou talvez a dizer, no cimo do negrilho:
“Levarei um poema / não quero outra bagagem”.

(Texto transcrito da última edição do Jornal de Letras, Artes e Ideias)


Autarquia de Coimbra recorda Miguel Torga no centenário do nascimento
Poeta do país e do mundo

“Torga é do país e do mundo”, afirmou o vereador Mário Nunes, justificando assim a grande homenagem que a autarquia de Coimbra prepara para domingo, data em que se assinalam 100 anos sobre o nascimento de Adolfo Correia Rocha, escritor e poeta português celebrizado sob o pseudónimo de Miguel Torga.
As comemorações começam às 11 horas, no Largo da Portagem, junto ao Mondego, onde será inaugurado o Monumento a Miguel Torga, da autoria de José António Bandeirinha e António Olaio. Os autores descrevem "Memorial MT" como um percurso que se sobrepõe ao espaço urbano de um modo artificial, embora perene, pois de memória se trata, tocando o chão e a balaustrada e imortalizando-os em xisto e em bronze. Na cerimónia estará presente o poeta Manuel Alegre que recordará Miguel Torga.
Segue-se depois, ao meio dia, a inauguração da exposição itinerante “O Universal é o local sem paredes”, que até Setembro estará patente na Galeria de Exposições Temporárias do Museu Municipal - Edifício Chiado. Comissariada por Carlos Mendes de Sousa, a exposição apresenta uma parte significativa do espólio documental hoje pertencente à Câmara Municipal de Coimbra.
O ponto alto das comemorações será, sem dúvida, a inauguração da Casa-Museu Miguel Torga, às 17 horas, nada mais do que a residência do escritor, sita na Praceta Fernando Pessoa, n.º 3, em Coimbra. A casa, que foi adquirida pela autarquia e o recheio doado por Clara Rocha, filha de Torga, terá como conservadora Cristina Robalo Cordeiro.
“Situado (e centrado) no lugar que o escritor Miguel Torga habitou, o museu deverá valorizar as suas dimensões poética – de lugar vivido que se propõe ao olhar –, proxémica – de lugar de animação a povoar de eventos – e escritural – de lugar de escrita a estudar e a ensaiar”, afirma Cristina Robalo Cordeiro que irá também dirigir o futuro Centro de Estudos Torguianos que ali será instalado.
Além do espólio museológico, a Casa-Museu Miguel Torga passará a ter actividades culturais ligadas à vida e obra de Miguel Torga e a outros vultos das letras, das artes e das ciências, e estará aberta, para já, de segunda a sábado, das 14h30 às 18 horas.
O lançamento do selo comemorativo e carimbo do 1.º dia pelos CTT e a apresentação da ópera “Bichus”, pela Arte à Parte, no Teatro da Cerca de São Bernardo, às 21h30, completam a programação.

Monumento em Arganil

Numa iniciativa cultural conjunta, o município de Arganil, a Junta de Freguesia do Piódão, a Associação de Compartes do Piódão e a Editorial Moura Pinto, vão comemorar os 100 anos de Miguel Torga com uma conferência no Auditório da Biblioteca Miguel Torga por Alípio de Melo, às 15 horas. Às 18 horas está prevista a inauguração de um monumento em Penedos Altos, Piódão, seguindo-se um convívio.


Memórias

Fui hoje de longada até Trás-os-Montes, na companhia de Miguel Torga. Estava um dia esplendoroso, de modo que, o próprio trajecto, à margem de qualquer roteiro turístico, naturalmente epidérmico e leviano, constituiu por si só uma lição magistral de humana e lírica geografia das mais belas, se não a mais bela, a que me foi dado assistir.
Poderá Miguel Torga ser, como tem vezes sem conta desabafado nos seus diários, tartamudo e gago no acto da criação da escrita (...), mas a falar, sobretudo quando, no seu reino maravilhoso, deixa que se lhe abram as fontes do coração, transforma-se então num mago do verbo! E quem o escutava, como eu, nessa peregrinação, sentia-se pequenino e talvez por isso tivesse levitado nas asas que me emprestou.
Acompanhei-o na romagem aos seus locais míticos: a Panóias (ruínas de um templo onde se sacrificavam reses a divindades pré-históricas), a São Leonardo de Galafura, a São Martinho de Anta, à loja das Pintas e à Senhora da Azinheira (...).
Depois de tudo isto, não sei se cansado se em estado letárgico, cheguei à noite a Coimbra, todo em carne viva por dentro, com a sensação de ter vivido, ao natural, algumas das mais belas páginas do primeiro dia da «Criação do mundo».
(Excerto de um texto de Cristóvão de Aguiar, Maio de 1975)

Miguel Torga continua hospitalizado (...). Con­ti­nua o poeta com a lucidez in­tacta, a memória fresca, o dom de conver­sar inalte­rado, a mesma garra em com­bater a morte... Quanto ao corpo, as coi­sas pioram um pouco. Só meio rim a fun­cionar, transfusões de sangue, com frequên­cia, e as metástases caval­gam tanto... Ele próprio faz a narrativa circuns­tanciada dos seus padeci­men­tos, mas frisa sempre: “Ela só virá bus­car-me quando de todo lhe não puder bater o pé”... O mesmo me disse a mulher, quando lhe perguntei pelo marido: “Lá está in­ter­nado, em luta cons­tante contra a morte...” A Igreja Cató­lica está apostada em conver­ter o herege da «Cria­ção do Mundo». Já não lhe bas­tava a visita de pa­dres, seus amigos ou conhe­cidos. A hie­rar­quia entendeu que, para um ateu da enverga­dura de Torga, só um bispo... E enviou ao hos­pital um pre­lado dessa cate­go­ria para ten­tar con­verter o «bicho»... “Sabe, senhor dou­tor, Deus é Pai e bastaria uma só pala­vra sua para eu lhe dar a absolvi­ção. Pense, senhor doutor, Deus é Pai, bastava uma palavri­nha sua e”... “Qual Pai, senhor, não preciso da sua absolvi­ção, nem ela me valia de nada, hei-de mor­rer assim, coe­rente com a vida que sempre levei”... Não tenho co­ragem de ir visitá-lo. Dói-me. Se calhar, o próximo encontro será em outro lugar muito dife­rente e então será já tarde de mais para eu remen­dar esta falta de cora­gem que agora sinto...
(Cristóvão de Aguiar, Novembro de 1994)

Morreu Miguel Torga. Um dia tinha de abrir esta página com a má nova a tro­pe­çar-se num ressalto de tristeza e de amar­gura. Quando, há pouco, à mesa da tertúlia, me deram a notícia, senti vontade de rir à gar­galhada na cara da mensa­geira. Miguel Torga nunca esteve para mor­rer... O médico, sim. O que usava o nome civil de Adolfo Cor­reia da Rocha e placa de otorri­nolarin­golo­gista no con­sultório do largo da Porta­gem (Coimbra).
(Cristóvão de Aguiar, Janeiro de 1995)

5 comentários:

Anónimo disse...

A versão on line desta notícia está correcta.
A versão impressa omite os excertos do Cristóvão de Aguiar.
Estranho???

Anónimo disse...

Será o lápis azul?

Anónimo disse...

Não sejam belicosos. Porventura já se interrogaram se a omissão desse excertos na versão impressa e a sua inclusão na edição online não terá unicamente a ver com falta de espaço (papel)?

Enfim... Pérolas a porcos.

Anónimo disse...

Sem Pavor:
Convenhamos que não deixa de ser estranho.
De todo o modo, a selecção das peças da obra referentes a Miguel Torga feitas pelo Campeão, na edição on line, é pertinente e dá-nos a conhecer que Torga, ao contrário de Bocage não se vendeu à Igreja.

Anónimo disse...

Lapa:
Sinceramente e sem qualquer intenção de ferir susceptibilidades, não acho, de todo, que seja estranho. É mais, isso sim, um sinal dos tempos.
Se fizer uma análise atenta, acabará por verificar que vários jornais publicam um determinado texto na sua edição impressa e depois acabam por publicar o mesmo online, complementado o texto impresso com outros que não saíram em papel. É normal. Infelizmente, os custos inerentes à edição de um jornal (deduzo eu e é normalmente a explicação dada) obrigam a uma gestão do espaço, situação nem sempre fácil.
E já agora, pergunto, se um determinado jornal tem uma boa edição online - como me parece ser o caso Campeão das Províncias que já visitei algumas vezes - por que não tirar partido dela?
Estou convicto que não vem daí nenhum mal ao mundo.

Termino assim, apresentando-lhe os meus melhores cumprimentos

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006