segunda-feira, 10 de setembro de 2007

RECOMENDAÇÃO DE LEITURA DE "MARILHA" POR LUIZ FAGUNDES DUARTE

Cristóvão de Aguiar: uma sinfonia incompleta

Tal como Raiz Comovida é uma trilogia romanesca constituída pelos romances A Semente e a Seiva (1978), Vindima de Fogo (1979) e O Fruto e o Sonho (1981), finalmente reunidos em um único volume (1987 e 2003), o novo romance de Cristóvão de Aguiar, Marilha, é uma espécie de dilogia – no sentido etimológico desta palavra, que arremete para ‘ambiguidade’, ‘equívoco de sentidos’: para qualquer falante do português, trata-se de uma combinação das palavras “mar” e “ilha”, o que vem a calhar quando se trata de um autor de origem insular; mas, para quem conhecer a obra e os costumes de Cristóvão de Aguiar, trata-se de uma reencarnação, num corpo só, de dois livros anteriores: Um Grito em Chamas – Polifonia Romanesca (1995) e Ciclone de Setembro (1985) reaparecem agora, invertidos no tempo e refeitos na forma, como as duas partes que constituem o que agora se chama, na capa, “romance” e, na folha de rosto, “Sequência narrativa”. Mas, ao contrário do que se passou com Raiz Comovida, cujos romances componentes foram desde o início planeados e escritos para constituírem uma trilogia (aplicando-se aqui o conceito clássico do termo), em Marilha o que temos é dois livros, concebidos em separado e com dez anos de permeio, que uma inteligência superior entendeu reunir e agora apresentar como se de coisa única se tratasse – remetendo-nos para o tal equívoco de sentidos que a palavra dilogia refere.
Caso raro na literatura portuguesa é Cristóvão de Aguiar: não sei se poderemos aplicar aos seus livros e às suas personagens uma coisa do tipo do célebre “Mme Bovary, c’est Moi”, de Flaubert. Mas, ao deambular por esta floresta, que ele vai plantando, de livros que crescem uns por cima dos outros, uns à custa dos outros, não sei porquê – o que com maior nitidez me ocorre é uma frase de Fernando Pessoa, por ele enxertada na personalidade Bernardo Soares e que se podem encontrar na mais recente edição do Livro do Desassossego:
“Minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, tímbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia”.
Basta que Fernando Pessoa/Bernardo Soares tenha produzido esta afirmação, para a tomarmos por boa e a aceitarmos; e basta olharmos para a extraordinária obra ficcional de Cristóvão de Aguiar – em que cada livro é uma espécie de personagem que se transforma de acordo com os tempos e os contextos – para a entendermos como aquilo que de facto é: uma grande sinfonia. Que, como a de Schubert, há-de ficar incompleta; pelo menos enquanto Cristóvão de Aguiar tiver forças e ganas para escrever.

Sem comentários:

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006