segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Um Grito em Chamas, Apresentação da Professora Cristina Robalo Cordeiro, na Casa da Cultura de Coimbra - 1995

Um Grito em Chamas ou a completude da escrita
Cristina Robalo Cordeiro
4 de Abril de 1995

São-me pedidas algumas palavras de apresentação do novo romance de Cristóvão de Aguiar, Um Grito em Chamas.
Perante um público de amigos e apreciadores da sua obra, socorro-me da dupla isotopia do canto e do corpo, procurando cruzar a metáfora musical que explicitamente percorre o texto – lhe empresta coerência, o pontua de notas e andamentos, de pontos e contrapontos, num ritmo que oscila de adágio a multo vivace, passando por allegro ma non troppo – com a de um organismo vivo que se exprime na completude dos órgãos que o compõem e onde ao plano dos afectos se acrescenta o da racionalidade e o da transcendência, na busca de um sentido totalizador da vida.
A dimensão afectiva é a que leva Cristóvão de Aguiar a escrever com o coração, criando um imaginário da memória que ajeita e corrige o passado, retocando as imagens que o tempo imobilizou, em inevitável extravasar de um vivido onde o leitor tem a tentação de reconhecer um percurso autobiográfico. É na teia das estórias que nos são contadas que se recria aqui o mundo das emoções.
A dimensão intelectual obriga Cristóvão de Aguiar a escrever com a mente, com a inteligência de quem conhece a máquina da escrita, os mecanismos e as articulações com que o romance se constrói. Como um tecido, o texto faz-se em entrançado lógico e necessário de elementos e estruturas, recusando o artificialismo mas também nada deixando ao acaso, na obediência a uma composição coesa e forte.
A dimensão simbólica é que põe o Autor a escrever com a alma e a procurar um sentido para além da superfície das coisas, dos sinais explícitos e evidentes do real. A alegoria e a metáfora ajudam a desvendar o inacessível e a descobrir o mistério e a transcendência da vida: pela palavra, passa-se aqui do tema ao mito.

Conto do coração

“Bem vozeado saíra da matriz. Aí se inaugurara. Era o espantado grito da tia Severiana de Jesus. Até transportava parecenças, salvo o devido respeito e temor que devem merecer as coisas da Santa Madre, tão sérias e sagradas, com o magoado garganteio de certas cantoras do coro da capela, principalmente com o da Susaninha […]. Difundiu-se o grito pela vizinhança, alastrou-se para além dela levado na crista da onda do silêncio que forrava aquela meia manhã de Agosto, que rima com desgosto.”

O romance abre um com um episódio ocorrido numa manhã de sexta-feira de um Agosto agoirento: 13 notas de conto de réis inadvertidamente queimadas pela tia Severiana de Jesus, “enrodilhadas entre papéis e recibos velhos” que o lume ateado na lareira da sua cozinha depressa devorou, e que nela acordam um grito desmedido! Fulcral e simbólica, esta cena inaugura a evocação de uma vivência singular – a da tia Severiana de Jesus – e colectiva – a da freguesia da Tronqueira, no Concelho da Ribeira Grande da Ilha de São Miguel.
A existência da tia Severiana chega ao leitor através do relato de momentos marcados e marcantes, em instantes de dores fundas e caladas e de desmedidas aflições. É assim que conhecemos a família – e a malquerença que se reflecte na severidade dos pais e na hostilidade dos irmãos –, a escola – e a figura repressiva de Dona Jacintha, a quem Severiana guarda um rancor secreto e profundo –, episódios da sua vida, ora tristes – como a operação de barriga aberta que coloca Ti Aristides, seu marido, perante graves dificuldades económicas – ora suculentos de troça e riso – como o dos figos de Ti Aristides ou o do voo de Dona Clemência Cancela, levada pelo vento –, ou ainda aspectos configuradores da sua personalidade, como o amaldiçoado canhotismo que, enquanto tara reveladora de um pacto com o demónio, a estigmatiza desde o berço, e a sua conversão à Igreja Adventista, a nova vivência da religião e do diálogo com Deus, ambos sinais de afastamento de um padrão normalizador, de uma diferença que pouco a pouco se revela, evidenciando em Severiana um tom que destoa – um contraponto! – na desejada e absoluta monotonia de uma massa colectiva e amorfa.
A vida da Tronqueira – a vivência e os costumes da aldeia, o desenho das suas figuras proeminentes, o senhor padre vigário, a professora Caracola, o arqueólogo, senhor Correia, o doutor Virgílio, o primo Jovino, as senhoras Sousas –, ritmada pelas visitas bianuais do rateiro, pelas festas da Senhora das Vindimas e do Coração de Jesus, e trazida aos anais da História pelas calamidades que sobre ela se abateram, a pneumónica ou o tifo, é transfigurada em cenário de conto maravilhoso por fabulosas ocorrências, como o milagre das roseiras abraçadas ao pé do túmulo de dois jovens que a vida não chegou a juntar.
Entre a vivência do quotidiano de Severiana e a representação da aldeia, vai o narrador também falando de si, desvendando momentos de uma vida contada ao ritmo dos acidentes que marcam o rosto de uma terra e de uma natureza abanadas por ventos e trovoadas, ciclones e sismos.
Tudo isto, na desordem de uma memória que procede por associações e se deixa espicaçar por imagens, palavras e atmosferas, recusando a linearidade do desenrolar cronológico e a tranquilidade de um vivido sequencial. Neste entrançar de ramos – e de notas! – vão-se desenhando com crescente nitidez as silhuetas, os corpos e os gestos, que progressivamente se tornam rostos, expressões e olhares. Pouco a pouco vamo-nos sentindo da casa, reconhecemos os passos e as falas de quem nela habita: e nesta inevitável apropriação, Severiana de Jesus – porque sempre mais presente do que todos os outros – é cada vez mais por nós interiorizada, cada vez mais sentida como nossa!

O canto como “cosa mentale”

O que poderia aqui ser entropia afectiva – o bater do coração e o pulsar do sangue nas veias deste corpo – é recolhido e formalizado por uma estrutura compositiva que lhe confere a dimensão de obra literária. Presidido pela ideia de polifonia – de uma polifonia orquestrada –, o trabalho de construção determina uma organização textual em quatro partes – andamentos! – segundo um percurso narrativo que privilegia dois pontos de vista e duas modalidades de enunciação. É o narrador que abre e fecha o romance, em Adágio e Per finire, ouvindo-se a voz de Severiana em caudal de palavras que contam, lembram e relembram o seu passado, nas duas partes centrais. No primeiro caso, amalgamando a evocação da vida da tia com cenas e lembranças da sua própria vida, dirige-se o narrador a uma figura de mulher exterior à história – “meu amor” – dando-lhe a conhecer um universo de onde terá estado ausente. No segundo, Severiana de Jesus dirige-se ao narrador, em diálogos que correspondem às várias visitas do sobrinho à Ilha de São Miguel.
A organização do romance em torno destes dois planos discursivos implica a revisitação das mesmas cenas, diferentemente perspectivadas segundo o olhar de quem as restitui como se, à medida que avançamos, se fossem também ajustando e regulando as lentes do nosso olhar. E assim se vão entrelaçando planos, abrindo e fechando círculos, juntando as peças de um puzzle que o autor deliberadamente não quis construir para nós, como se a realidade evoluísse em duas espirais paralelas que, de tempos a tempos, unissem os seus movimentos circulares e confundissem os seus anéis.
Em ambos os discursos está patente a preocupação de mostrar os bastidores desse teatro onde o texto se faz. Ao desfilarem os seus rosários, e apesar do aparente caos dos fluxos verbais de que são responsáveis, o narrador e a tia desvendam o movimento que os determina e a vontade de que estão animados: querer contar, sim, mas deixar algo em suspenso, criando expectativas – “Vou-te agora contar”, “A seu tempo te contarei”, “Espera um instante. Já te conto o passo todo” –, num jogo de contenções e de expansões que hesita – ou finge que hesita – entre tudo dizer e não dizer tudo, e que assim coloca um certo ocultamento do real como fundamento de uma estratégia discursiva que privilegia na elipse o modo de expressão de um segredo, o da própria vida.
Através destes dois discursos, procura o Autor restituir dois modos diversos de dizer, o da oralidade e o da escrita, mostrando o que profundamente as aproxima e para ambas é essencial: a vontade de comunicar, o poder do encontro no diálogo e o valor soberano da partilha. E é aqui que também nós, leitores, nos sentimos mais implicados, incluídos nesse tu que de nós também é feito, seja ele a mulher-companheira a quem o narrador se dirige ou o sobrinho-narrador com quem a tia Severiana fala.

A alma do texto

Se é certo que a estrutura compositiva do romance quer suster a desordem das emoções que determinam a estória, igualmente certo é que parece escapar-lhe uma franja discursiva, assinalada no corpo do texto pelo uso do itálico. Nestes pequenos fragmentos narrativos – que abrem cada uma das três primeiras partes –, o narrador pensa em voz alta, interroga-se e discorre sobre a essência da escrita e da criação.
E assim se passa à palavra e à dimensão transcendente que a pode iluminar. O texto revela-nos agora uma alma que se liberta das peias apertadas da sua composição, dos limites impostos pela sua materialidade, se oferece como escavação espiritual e humana e se torna alegoria ou metáfora, símbolo ou mito.
É o momento em que se diz a importância do dizer, da palavra solta à boca do presente que se faz urgência e se derrama no papel, de uma palavra dita nos diálogos trocados – a da tia e da sua arte de bem conversar, pois que “muitas poucas coisas há-de haver nesta vida que cheguem aos calcanhares de uma boa conversa”, e a do sobrinho, “ilhéu transmigrado”, expressão da “inexorável caminhada em busca do texto perdido”.
É o momento também da apologia da palavra a decifrar, como a da Bíblia onde Severiana de Jesus encontra a serenidade de um absoluto partilhado. Simbolicamente, este verbo divino é o do próprio texto, o de um autor profeta a cumprir um destino e uma missão, palavra testemunho de uma outra palavra santificada pela lonjura, pela memória e pelo afecto.
É o momento ainda da palavra criadora, expressa no gesto simbólico de amassar o pão com mão firme e segura, mão de mestre ou de maestro, do escritor que, pela escrita, transfigura o mundo.
Per finire, quando a forma que controla dá lugar à doce incerteza do sentido, é um grito que percorre o texto, como um eco. O grito da personagem Severiana de Jesus ou o nosso próprio grito, aquele que o escritor foi capaz de ouvir, de entender e com o qual escreveu um poema.

2 comentários:

Lúcia disse...

parabéns pelo fantástico trabalho de recolha que aqui tens.

:)

Lapa disse...

Obrigado. És a primeira pessoa que diz isso.

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006