sábado, 8 de setembro de 2007

AUTOBIOGRAFIA DE CRISTÓVÃO DE AGUIAR - LIVRO DE HOMENAGEM , 40 ANOS DE VIDA LITERÁRIA, IN FINE

O escritor Cristóvão de Aguiar, chamemos-lhe assim por uma questão de facilidade, usa também o nome civil de Luís Cristóvão Dias de Aguiar. Caiu neste mundo, na freguesia de Pico da Pedra, Ilha de São Miguel, com estes quatro nomes às costas e mais uma preposição a determinar-lhe o lugar de origem talvez uma Vila muito Pouca de Aguiar. A casa do calendário indicava o dia 8 de Setembro de 1940. Nascera de uma nobre estirpe de artesãos, músicos, poetas repentistas e também de agricultores. As mulheres eram dóceis, embora uma ou outra se pronunciasse por vezes de pêlo na venta...
De nome mais encolhido, o escritor deixou-se parir em Coimbra em dia impreciso de Março de 1965, três semanas antes de o indivíduo que lhe abonava o corpo ter zarpado para a guerra colonial a bom lavrar nos matos da Guiné e no íntimo dos mancebos em idade militar. Com pânico de morrer de um tiro numa emboscada, o futuro combatente procurou prevenir-se. Sangrou-se em saúde, e toca de cogitar em reproduzir-se. Parto prematuro, à custa de ferros. Só assim conseguiu ser arrancado à barriga... de aluguer. O nascituro merecia desmancho, em boas condições higiénicas, numa especializada clínica das letras, mas acabou por ser dado à luz, ficando para sempre um aborto com cara de livro. Enamorado, o pai, baptizou-o com o nome de Mãos Vazias: voluminho esvaziado de tudo, até da mais rudimentar poesia, quase a entrar nos quarenta, mas a sua idade mental não vai além dos catorze.
Muito longe desse evento, o rapaz que fui, e vou sendo sempre que me apetece, cresceu e medrou, inteiro como o seu nome, frequentou os estudos elementares na freguesia, situada a meio caminho entre a velha Vila da Ribeira Grande e a cidade de Ponta Delgada. Pouco antes de se matricular no Liceu, já seu Pai havia emigrado para a Ilha Terceira, a América pequenina. A verdadeira, a Amerca das estoas e dos mechins; dos candilhes e da cocoa; das roupas cheirosas e das ruas calcetadas de vidro, da comida encanada e dos açucrins, simbolizava um sonho que só alguns tinham a dita de alcançar. Na Base americana, trabalhou seu Pai como torneiro mecânico. Não só para o supreio da família como, principalmente, para pagar os estudos ao filho hospedado na cidade, à distância de dez quilómetros da freguesia. A meio do século passado, tratava-se de uma lonjura tão tamanha que, neste tempo alucinado de urgências, só poderia ser inteligível se a reduzíssemos a centímetros ou a milímetros. A ausência do quentinho da casa e da freguesia, onde se sentia mais inteligente do que em qualquer outra parte do mundo da Ilha, tornava-se imperativa a primeira separação e a primeira perda, as inaugurais de tantas outras que haveriam de se lhe apresentar ao comprido da vida.
O ingresso no palácio do velho Liceu, no ano lectivo em que o estabelecimento celebrava um século, deve ter sido o primeiro grande tsunami que amargou na vida ainda de calças tão curtas. Até o racharam ao meio, árvore fendida por um corisco de alto a baixo. A partir do início dessa aventura escolar, só o nome Cristóvão passou a valer no seio da nova e estranha comunidade. O prenome Luís, por que era conhecido e chamado, ficou submerso, apenas com dignidade de estatuto vocativo para a gente da freguesia e parentela mais chegada. Havia quem se arriscasse ao chamamento cristão inteiro: Luís Cristóvão. Vozes isoladas que não produziram eco no pordentro. Continua habitando dois nomes, como se possuísse duas casas. E o aluno medroso haveria de ficar cindido. Para sempre. Passou o Cristóvão a ser o contrapeso do Luís, ou vice-versa. As leviandades de um justificadas pelas aparentes virtudes do outro. Pelejando, porém, incessantemente vizinhos desavindos morando dentro da camisa-de-forças do mesmo corpo.
Concluíram ambos o antigo sétimo ano de letras, em 1960, mas deverá ter sido o Cristóvão quem, na sua extravagância sonhadora, fez atrasar, em dois anos, o curso liceal, arrastando-o durante uma novena. O Cristóvão gostava de namorar e de faltar às aulas para ir ao encontro da vida e dela colher as flores que a escola só lhe concedia, murchas e compendiadas, em livros únicos e maçudos. Não quis ir sozinho. Levou o Luís pela trela. E quem pagou a soma calada da factura apresentada pelo pai ao regressar da emigração de-ao-pé-da-porta foi o Luís. Passou a trabalhar na oficina de serralharia, para que aprendesse a arte do ferro forjado e ficasse a saber quanto custava a vida ou quantos pães dava um alqueire bem medido.
O Cristóvão continuava devaneando pelas paragens da imaginação desenfreada, pouco caso fazia das admoestações e conselhos do seu companheiro de rés-do-chão. Acabou por ter razão ou por ter sorte, tanto faz. O Luís deixou de ser aprendiz de serralheiro (só nas férias o retomava, para que não houvesse curteza de memória) e foi prosseguir os estudos, na companhia do Cristóvão, a seguir a umas férias mais compridas que légua da Póvoa. Conseguiram ser bons alunos. Quase distintos. Dispensaram do Exame de Aptidão à Universidade ao concluir o Curso Complementar dos Liceus.
Zarpámos da Ilha na noite de 10 de Outubro de 1960 a bordo do Lima e chegámos a Lisboa na manhã do dia 15 do mesmo mês. Um prodígio de velocidade, como se está vendo, só possível à alta tecnologia de ponta, ou à alta ponta da tecnologia, em uso na época. Na proporção que o navio subia o Tejo em direcção ao Cais de Santos, e à vista de tantas e tamanhas grandezas, ao Cristóvão bailavam-lhe os olhos. O Luís terá sentido essa impressão à semelhança de um rural de súbito colocado em meio de uma babilónia de progresso: espanto e nada mais que espanto. O rio, que ambos sabiam da geografia papagueada, a cidade de Lisboa, branca e imponente, apertada nas suas sete colinas, pareciam sair das páginas dos livros de estudo para se postarem, ali defronte deles, juntamente com um comboio entrevisto pela primeira vez, em louca correria sobre a linha-férrea de Sintra. Na Ilha, só se avistavam navios. Pena tamanha, pensava o Luís, não ter conseguido vislumbrar o famoso rectângulo de oitenta e nove mil quilómetros quadrados, dentro do qual Portugal inteiro se acolhia, ou encolhia, no respectivo mapa pendurado na sala de aula da escola elementar... E o Cristóvão acrescentou: “Sim, o mapa estava muito próximo da santíssima trindade constituída pelos retratos de Salazar e Carmona e pelo crucifixo de latão no meio de ambos...”
Às sete e vinte e cinco da noite desse dia 15 de Outubro partiam de Santa Apolónia, no Foguete, assim se denominava o comboio mais veloz e mais caro do tempo: cerca de cem escudos até Coimbra numa viagem de cerca de duas horas e meia. Era o único comboio que parava numa estação antes de Coimbra, a de Fátima, sendo, por isso, muito fácil não haver engano na segunda paragem era obrigatório descer. Nos outros comboios havia novatos das Ilhas que se apeavam na Mealhada ou ainda mais arriba...
Na Estação Velha, já noite cerrada, o Luís sentiu-se abandonado. Pouco ou nada percebia das palavras difundidas pelos altifalantes. Sabia que tinha de mudar para um comboio que fazia a ligação com a Estação Nova, mas não sabia como proceder. Acabou por perguntar. O interlocutor não lhe entendeu a pronúncia cerrada, e ele ficou transido. Por fim, o Cristóvão dirigiu-se, afoito, a um corretor, elegante na sua pronúncia impecável e farda castanha, debruada de dourados. O angariador em vez de responder perguntou: “O senhor doutor precisa de hotel?” O Cristóvão olhou para o lado, espicaçado pela curiosidade de ver, in loco, o primeiro titular de tal cargo, na maternidade onde os doutores nasciam de parto prematuro. Como não viu ninguém por perto e a pergunta fora repetida, ficou com a pele em couro de galinha chegara ao fundamento de que o doutor era ele próprio... A ligação acabou por chegar. Seguiram, num molhinho, meio enregelados, num banco de madeira. À saída da Estação Nova, pernoitaram na primeira pensão que encontraram. Acordaram do pesadelo em manhã outoniça lavada de sol, sem mar, o que lhes criou um vazio, que foi doendo pelo dia adiante, ocupado nas andanças de arrendar um quarto. A praxe académica, reforçada, recomeçou no dia seguinte, dia da Abertura Solene da Universidade. A partir daí, o medo tomou conta do Luís. Tinha de ir tomar as refeições à única cantina que existia, no Palácio dos Grilos, sede da Associação Académica. Muitas vezes deixou de ir jantar com pavor de ser rapado por uma trupe, outras ia de táxi, mas escasso era o dinheiro. De tal modo ficou atacado de medo que, semanas depois, desiludido e amedrontado com a obsoleta praxe académica, queria regressar, no vapor da carreira, ao ventre materno da Ilha. Escreveu uma carta esborratada de lágrimas. A resposta recebida uma semana mais tarde desenganava-o: “O que vens tu para cá fazer? aguenta-te; um homem não se deixa afundar dessa maneira; tudo é difícil ao princípio e um ano passa depressa: estás aí, estás cá em férias grandes...”
Uma noite, decidiu o Cristóvão fazer peito à praxe. E em 24 de Novembro, véspera da Tomada da Bastilha, era pela primeira vez rapado na Rua José Falcão, junto à Porta Minerva, a caminho da cantina.
A tormenta cultural dos princípios dos anos sessenta eclodida em Coimbra era mais forte ainda que a de um Ciclone de Setembro ilhéu. Com ela ficou em estado de embriaguez, a consciência dos limites cada vez mais à flor da pele e as Mãos Vazias de uma poesia que se recusava a cantar, mas que, bem ou mal, fez nascer, de parto prematuro, o tal Cristóvão de Aguiar, que ainda hoje persiste e insiste na lavoura da escrita. O Luís franzia o nariz e ia a pouco e pouco deixando de acompanhar o irmão gémeo, que se transformara num Grito em Chamas, que, desarvorado, procurava queimar e atingir não se sabia bem que alvo, talvez o Pão da Palavra com que queria alimentar o espírito confuso... Se o Luís era bicho-de-conta, por índole e humor, mais ainda se encantou no seu cantinho. Ao invés, lá ia o outro caminhando aos tropeções, tentando remover a Raiz Comovida, ainda fincada e ficada na Ilha, mas dando já topadas que o faziam sangrar por dentro, num princípio de intensa Trasfega. Conseguiu sobreviver. Em incessante viagem interior, grandes lutas travou dentro de si, numa lufa-lufa de Passageiro em Trânsito, procurando solucionar muitos dos problemas que a geração a que passou a pertencer já há muito tinha resolvido.
A sua grande sorte foi ter caído num meio intelectual progressista – o da revista Vértice, mesmo antes de pertencer ao seu quadro redactorial. Com os seus intelectuais convivia na Brasileira e com outros que lhe estavam próximos: o denominado Grupo da Brasileira, em que pontificavam Joaquim Namorado, Luís Albuquerque, Orlando de Carvalho, Mário Vilaça, e sobretudo conviveu Com Paulo Quintela à Mesa da Tertúlia, para só falar dos que já saíram de cena. Ouvindo mais do que falando, ia soletrando e aprendendo devagar as primeiras letras de uma nova cultura e de uma mentalidade que em nada se assemelhava à que em si vigorava. Lentamente foi assimilando novos valores humanísticos, alheios aos apontamentos tirados nas aulas, mais enraizados nos problemas concretos do País, estabelecendo com a vida cultural e literária uma Nova Relação que, mais tarde, havia de colocar um portaló por onde se entrava e saía de Bordo de qualquer iate de cabotagem.
Da Ilha trouxe um lastro de recursos afectivos e de novelos sentimentais que lhe têm vindo a servir de conduto ao pão seco e amargo do dia-a-dia. É com toda essa matéria nebulosa que vagueia dentro de si que vai procurando escrever. Dir-se-ia que Coimbra, que também faz parte do seu roteiro afectivo e cultural, lhe forneceu a ferramenta sem a qual não poderia carpinteirar a escrita nem ordenar o seu desordenado pensamento. Quarenta e cinco anos de convívio, cumplicidades, amores e desamores, alegrias e tristezas, deram para uma vida quase cheia de pouco. O bastante para que vá pensando em fechar o círculo, regressando ou não às raízes comovidas. Pode ser que, nessa remota origem, Coimbra se lhe imponha de tal sorte que tenha de escrevê-la, a ver se a sente mais aquietada dentro de si. O mesmo aconteceu com a Ilha, em Coimbra. Desinquietou-o de tal maneira que não teve outra alternativa que não fosse e de a ir entretendo com meia dúzia de livros que, por sinal, nunca a aplacaram por inteiro. Continua exigente e ciumenta. Vai procurar acalmá-la dentro em breve com a publicação de uma sequência narrativa a que deu o título de Marilha, Mar Ilha, Marília, nome de mulher, que, por força da pronúncia ainda em vigor em certas Ilhas, se transfigurou na gostosa dicção de Marilha...


Coimbra, 26 de Janeiro de 2005

In Livro de Homenagem a Cristóvão de Aguiar, quarenta anos de vida literária, Coordenado pela Professora Doutora Paula Arnaut, numa publicação da Faculdade de Letras e da Reitoria da Universidade de Coimbra - 2005

1 comentário:

Culinaria disse...

Hi

I will look for det book, when they translete it to danish or english..

Ps. Tx for your message on my foodblog. Feel free to visit again.

Love Culinaria/Catherine

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006