sábado, 11 de agosto de 2007

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Miguel Torga: Hino à capacidade de indignação

Escrito por Rui Avelar e Paula Alexandra Almeida
08-Ago-2007

Nascido em Trás-os-Montes a 12 de Agosto de 1907, Adolfo Rocha foi médico (otorrinolaringologista) em Coimbra, onde adoptou o pseudónimo literário de Miguel Torga e faleceu a 17 de Janeiro de 1995.Conceituado poeta, protagonizou nessa qualidade o seu último acto público ao enviar, em Setembro de 1994, uma mensagem ao Parlamento Internacional de Escritores (evento efectuado em Lisboa).
Ao aludir a um passado de quase meio século de ditadura, o escritor disse que uma “tenebrosa polícia política (a PIDE/DGS) e censura férrea fizeram de Portugal um inferno de condenados ao silêncio e à raiva contida”.
Em nome da “autoridade desse passado de resistência”, afirmou que “o Homem, quando perde a capacidade de indignação, perde a própria razão de ser”.
Neste contexto, lembrou que Portugal é uma das mais velhas nações da Europa e assinalou ter sido “a ânsia de liberdade do seu povo a emancipar o país dos demais territórios peninsulares”.
Segundo Torga, as democracias reinantes, “que deviam nivelar os homens por cima, nivelaram-nos ao rés-do-chão”. “No seu critério”, acrescentou, “somos nominais suportes do seu poder e é como cidadãos conscientes que queremos viver a dizer que não na hora de todas as subserviências e a ser verdadeiros na hora de todas as mentiras”.
“Nós somos essas vozes que até hoje clamaram no deserto, mas chegou a hora de nos fazermos ouvir, doa a quem doer, não como profetas fanáticos que são tiranos potenciais, mas como simples humanos que só querem o poder pleno da nossa condição”, afirmou Adolfo Rocha na mensagem dirigida ao Parlamento Internacional de Escritores.
Homem para quem “o universal é o local sem paredes”, Torga fez a apologia da condição de “livres e ecuménicos cidadãos, naturalmente irmãos de todos os semelhantes dos cinco continentes”.


Manuel Alegre e o centenário do nascimento de Miguel Torga
A inquietação de Portugal

Foi o dr. António Ramos de Almeida, crítico literário e autor de uma biografia de Antero de Quental, quem primeiro me aconselhou a leitura dos poetas da «Presença», nomeadamente de Miguel Torga.
Por essa altura, já eu tinha lido os poetas do «Orpheu», graças a um professor do Liceu de Alexandre Herculano, António Cobeira, amigo íntimo de Fernando Pessoa e de Mário de Sá-Carneiro. De modo que não foi propriamente a modernidade da linguagem o que me surpreendeu em Torga. Ainda hoje não sei o que tenha sido. Não o ritmo, nem a invenção metafórica, nem a toada encantatória de outros poetas. Foi talvez a sensação de estar a ler palavras restituídas à sua pureza primordial, reduzidas ao osso, como se aquela prosa e aqueles versos fossem esculpidos na pedra pelo primeiro homem que juntou as sílabas segundo regras mágicas. Ou talvez a revelação de ter encontrado alguém que, num tempo de desidentificação e mistificação, era uma espécie de adivinho, antes da História, antes, até, da literatura. Sim, talvez tenha sido isso. Torga, sendo moderno, era muito antigo. Num país de não poucos rouxinóis, ele trazia à língua portuguesa a dureza da pedra e uma escrita de palavras substantivas, necessárias, únicas.
Mas foi durante o meu exílio que, separados, verdadeiramente nos encontrámos. Em Argel e nas partidas do mundo por onde andei, descobria outro Torga, aquele que, aquém e além da literatura, era, em alguns dos seus livros, o único Portugal que eu podia ter. Então percebi que alguns poetas, em certas situações, podem ser mais do que eles próprios, podem ser uma pátria. Foi isso que Torga, com mais alguns, poucos, durante 10 anos, foi para mim: uma pátria. Respirava Portugal lendo algumas das suas páginas.
São muitas as histórias que sobre ele se contam e muito deformada a imagem que em certos meios dele se foi malevolamente construindo. Torga não era duro nem difícil. Foi das pessoas mais delicadas que conheci. Havia nele uma aristocracia natural no comportamento, na atitude, na relação com os outros. Sempre o vi disponível para ajudar quem estivesse em dificuldade. Narciso? Todos os artistas o são.
Mas poucos se interrogaram e duvidaram tanto. De certo modo, ele sofreu cada palavra. Corrigia sem cessar, buscava a forma impossível, nunca estava satisfeito. Para ele, a literatura relevava do sagrado. Ele desconstruiu-se e reconstruiu-se em função da literatura. Acreditava na obra e ao mesmo tempo punha-a e punha-se em causa.
Miguel Torga viveu atormentado com a escrita e creio que não morreu em paz com ela. Na cama do hospital, teve sempre, até ao fim, o caderno na mão. Escreveu sempre, emendou sempre, desbastando a prosa, cada vez mais despojada.
Morreu como viveu: com inteireza.
Lá não sei onde continuará, por certo, a escrever, a cortar, a colar as resmas de papel, já mil vezes corrigidas. A tortura da forma era filha da sua angústia ontológica e do seu zangado diálogo com a ausência de Deus.
No dia do seu enterro, em S. Martinho de Anta, eu disse que ele era um pedaço de Portugal que descia à terra. Cada vez mais penso que foi assim mesmo.
Por muitas razões, faz falta.
Ninguém foi tão visceralmente e ao mesmo tempo tão lucidamente português.
Severo e implacável na crítica dos vícios ancestrais – a superstição, o dogmatismo, a mesquinhez – contrário a toda e qualquer forma de mistificação e mitificação patrioteira, mas sempre com uma confiança inabalável no povo português e sem nunca descrer desta “nesga de terra / debruada de mar”.
Como Fernando Pessoa, ele detestava o provincianismo mental. Só que para Miguel Torga o nosso pior provincianismo era um falso cosmopolitismo parolo e novo rico, sempre a imitar a última moda chegada de fora.
Por isso, nestes tempos em que está na moda duvidar de nós mesmos, faz falta alguém capaz de falar orgulhosamente e descomplexadamente de Portugal, como Miguel Torga o fez, na mensagem que dirigiu ao Parlamento Internacional de Escritores reunido em Lisboa [em Setembro de 1994]. Faz falta alguém que, de novo, diga, como ele então disse nessa mensagem: “É como cidadãos conscientes que queremos viver. A dizer não na hora de todas as subserviências, a ser verdadeiros na hora de todas as mentiras.”
Algures, por aí, ele estará a relembrar-nos a mensagem que, em Dezembro de 1974, enviou ao Congresso do PS e em que “fazia votos de que o povo português possa encontrar na realidade de um socialismo de feição própria a sua plenitude humana e a sua dignidade cívica, não projectadas numa lonjura messiânica, mas inseridas num concreto futuro próximo”.
Algures, por aí, ele estará talvez a murmurar:
“É o vento que me leva / o vento lusitano / é este sopro humano / universal / que empurra a inquietação / de Portugal”.
Ou talvez a dizer, no cimo do negrilho:
“Levarei um poema / não quero outra bagagem”.

(Texto transcrito da última edição do Jornal de Letras, Artes e Ideias)


Autarquia de Coimbra recorda Miguel Torga no centenário do nascimento
Poeta do país e do mundo

“Torga é do país e do mundo”, afirmou o vereador Mário Nunes, justificando assim a grande homenagem que a autarquia de Coimbra prepara para domingo, data em que se assinalam 100 anos sobre o nascimento de Adolfo Correia Rocha, escritor e poeta português celebrizado sob o pseudónimo de Miguel Torga.
As comemorações começam às 11 horas, no Largo da Portagem, junto ao Mondego, onde será inaugurado o Monumento a Miguel Torga, da autoria de José António Bandeirinha e António Olaio. Os autores descrevem "Memorial MT" como um percurso que se sobrepõe ao espaço urbano de um modo artificial, embora perene, pois de memória se trata, tocando o chão e a balaustrada e imortalizando-os em xisto e em bronze. Na cerimónia estará presente o poeta Manuel Alegre que recordará Miguel Torga.
Segue-se depois, ao meio dia, a inauguração da exposição itinerante “O Universal é o local sem paredes”, que até Setembro estará patente na Galeria de Exposições Temporárias do Museu Municipal - Edifício Chiado. Comissariada por Carlos Mendes de Sousa, a exposição apresenta uma parte significativa do espólio documental hoje pertencente à Câmara Municipal de Coimbra.
O ponto alto das comemorações será, sem dúvida, a inauguração da Casa-Museu Miguel Torga, às 17 horas, nada mais do que a residência do escritor, sita na Praceta Fernando Pessoa, n.º 3, em Coimbra. A casa, que foi adquirida pela autarquia e o recheio doado por Clara Rocha, filha de Torga, terá como conservadora Cristina Robalo Cordeiro.
“Situado (e centrado) no lugar que o escritor Miguel Torga habitou, o museu deverá valorizar as suas dimensões poética – de lugar vivido que se propõe ao olhar –, proxémica – de lugar de animação a povoar de eventos – e escritural – de lugar de escrita a estudar e a ensaiar”, afirma Cristina Robalo Cordeiro que irá também dirigir o futuro Centro de Estudos Torguianos que ali será instalado.
Além do espólio museológico, a Casa-Museu Miguel Torga passará a ter actividades culturais ligadas à vida e obra de Miguel Torga e a outros vultos das letras, das artes e das ciências, e estará aberta, para já, de segunda a sábado, das 14h30 às 18 horas.
O lançamento do selo comemorativo e carimbo do 1.º dia pelos CTT e a apresentação da ópera “Bichus”, pela Arte à Parte, no Teatro da Cerca de São Bernardo, às 21h30, completam a programação.

Monumento em Arganil

Numa iniciativa cultural conjunta, o município de Arganil, a Junta de Freguesia do Piódão, a Associação de Compartes do Piódão e a Editorial Moura Pinto, vão comemorar os 100 anos de Miguel Torga com uma conferência no Auditório da Biblioteca Miguel Torga por Alípio de Melo, às 15 horas. Às 18 horas está prevista a inauguração de um monumento em Penedos Altos, Piódão, seguindo-se um convívio.


Memórias

Fui hoje de longada até Trás-os-Montes, na companhia de Miguel Torga. Estava um dia esplendoroso, de modo que, o próprio trajecto, à margem de qualquer roteiro turístico, naturalmente epidérmico e leviano, constituiu por si só uma lição magistral de humana e lírica geografia das mais belas, se não a mais bela, a que me foi dado assistir.
Poderá Miguel Torga ser, como tem vezes sem conta desabafado nos seus diários, tartamudo e gago no acto da criação da escrita (...), mas a falar, sobretudo quando, no seu reino maravilhoso, deixa que se lhe abram as fontes do coração, transforma-se então num mago do verbo! E quem o escutava, como eu, nessa peregrinação, sentia-se pequenino e talvez por isso tivesse levitado nas asas que me emprestou.
Acompanhei-o na romagem aos seus locais míticos: a Panóias (ruínas de um templo onde se sacrificavam reses a divindades pré-históricas), a São Leonardo de Galafura, a São Martinho de Anta, à loja das Pintas e à Senhora da Azinheira (...).
Depois de tudo isto, não sei se cansado se em estado letárgico, cheguei à noite a Coimbra, todo em carne viva por dentro, com a sensação de ter vivido, ao natural, algumas das mais belas páginas do primeiro dia da «Criação do mundo».
(Excerto de um texto de Cristóvão de Aguiar, Maio de 1975)

Miguel Torga continua hospitalizado (...). Con­ti­nua o poeta com a lucidez in­tacta, a memória fresca, o dom de conver­sar inalte­rado, a mesma garra em com­bater a morte... Quanto ao corpo, as coi­sas pioram um pouco. Só meio rim a fun­cionar, transfusões de sangue, com frequên­cia, e as metástases caval­gam tanto... Ele próprio faz a narrativa circuns­tanciada dos seus padeci­men­tos, mas frisa sempre: “Ela só virá bus­car-me quando de todo lhe não puder bater o pé”... O mesmo me disse a mulher, quando lhe perguntei pelo marido: “Lá está in­ter­nado, em luta cons­tante contra a morte...” A Igreja Cató­lica está apostada em conver­ter o herege da «Cria­ção do Mundo». Já não lhe bas­tava a visita de pa­dres, seus amigos ou conhe­cidos. A hie­rar­quia entendeu que, para um ateu da enverga­dura de Torga, só um bispo... E enviou ao hos­pital um pre­lado dessa cate­go­ria para ten­tar con­verter o «bicho»... “Sabe, senhor dou­tor, Deus é Pai e bastaria uma só pala­vra sua para eu lhe dar a absolvi­ção. Pense, senhor doutor, Deus é Pai, bastava uma palavri­nha sua e”... “Qual Pai, senhor, não preciso da sua absolvi­ção, nem ela me valia de nada, hei-de mor­rer assim, coe­rente com a vida que sempre levei”... Não tenho co­ragem de ir visitá-lo. Dói-me. Se calhar, o próximo encontro será em outro lugar muito dife­rente e então será já tarde de mais para eu remen­dar esta falta de cora­gem que agora sinto...
(Cristóvão de Aguiar, Novembro de 1994)

Morreu Miguel Torga. Um dia tinha de abrir esta página com a má nova a tro­pe­çar-se num ressalto de tristeza e de amar­gura. Quando, há pouco, à mesa da tertúlia, me deram a notícia, senti vontade de rir à gar­galhada na cara da mensa­geira. Miguel Torga nunca esteve para mor­rer... O médico, sim. O que usava o nome civil de Adolfo Cor­reia da Rocha e placa de otorri­nolarin­golo­gista no con­sultório do largo da Porta­gem (Coimbra).
(Cristóvão de Aguiar, Janeiro de 1995)

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Convite para a apresentação do Ciclone de Setembro por Natália Correia 1986




Esteve presente, entre outros, o Marechal Costa Gomes que era o homem mais simples e cordato da assistência. No beberete que se seguiu foi o único dos convivas que não usou palito para se servir...

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Miguel Torga "Lavrador das Letras" in Correio da Manhã por Cristóvão de Aguiar


Costuma dizer-se que os Poetas não têm biografia. No caso de Torga assim não acontece. A sua vida constitui o húmus de toda a sua escrita, tanto na poesia, como na prosa (o romance autobiográfico ‘A Criação do Mundo’ representa o percurso inteiro de uma vida e quem o lê fica ciente de tudo o que respeita ao homem e ao escritor), passando pela diarística (16 volumes), que foi lavourando durante mais de sessenta anos sem descanso.

Miguel Torga tinha da escrita uma ideia de sacerdócio. Escrevia por devoção, é certo, mas a pena não lhe deslizava ao longo da página com a desenvoltura dos que se julgam iluminados por uma inspiração que só para eles existia e que em Torga se transmudava numa bica de suor e aflição. A maior parte das vezes atravessava a noite a ‘lavrar’ a página e, no fim, já madrugada, quase manhã, a colheita nunca era proporcional ao trabalho despendido. Muitos exemplos existem no Diário em que o próprio Torga reflecte sobre o seu ofício de “lavrador das letras” angustiado e quase desesperado perante a página rabiscada e repleta de emendas. Revia até à exaustão. Nas tipografias onde imprimia a sua obra, sempre em edição de autor, os gerentes recusavam-se a fazer-lhe um orçamento prévio, porque, não raro, revia cinquenta vezes o mesmo exemplar.

Torga não usou sempre este nome. Baptizaram-no na igreja de S. Martinho de Anta, onde nascera a 12 de Agosto de 1907, como Adolpho Correia da Rocha. Filho de pais pobres, o destino que o aguardava não era lisonjeiro: ou seminarista ou camponês. A mãe, com quem mantinha uma intensa cumplicidade afectiva, havia de lhe declarar, já depois de homem feito: “Nunca me enganaste, filho; falaste-me na barriga ”

O nome Miguel Torga havia de surgir em 1934, no livro ‘A Terceira Voz’, não como heterónimo, tão-só para que houvesse uma distinção entre o médico que iniciara a profissão e o escritor que dava os primeiros passos. Estreia-se, em livro, com ‘Ansiedade’ (1928), que vem a repudiar.

Concluída a quarta classe na sua aldeia, a conselho da mãe, ruma à cidade do Porto para trabalhar como criado de servir numa casa rica. Não se dá bem a ser lacaio de meninos ou a puxar-lhes o reposteiro nas representações teatrais. Era a revolta a instalar-se! Regressa a S. Martinho e logo depois entra para o seminário de Lamego, onde fica só um ano. O pai, que não queria dar ao filho a mesma vida que levava, indicou-lhe o caminho. Brasil. Tinha lá um tio que lhe mandou uma carta de chamada e o pequeno Adolpho, com apenas 13 anos, zarpou para a Terra de Santa Cruz. Trabalha na fazenda do tio, homem muito duro, durante cinco anos. Aos dezassete anos, manda-o matricular no Ginásio Leopoldinense, que frequenta durante dois anos, após o que, como recompensa do trabalho exercido durante cinco anos, lhe dá a escolher dois caminhos: montar-lhe um comércio no Rio de Janeiro ou pagar-lhe os estudos. Regressa a Portugal, termina o curso dos Liceus em três anos, matriculando-se depois na Faculdade de Medicina.

Enquanto estudante, colabora na revista ‘Presença’, da qual foi dissidente, em 1930, com Edmundo Bettencourt e Branquinho da Fonseca. A rebeldia de Torga já se manifestava, não se compaginava com escolas literárias. Fundou duas revistas: ‘Sinal’ e ‘Manifesto’, que têm curta duração.

Em Dezembro de 1939, e na sequência da publicação de o quarto dia de ‘A Criação do Mundo’, Torga é preso na cadeia de Leiria, onde abrira consultório de otorrino, tendo sido transferido para o Aljube. Aí permanece até 2 de Fevereiro de 1940. Escreve na cadeia um dos grandes poemas da resistência portuguesa ao fascismo: ‘Ariane’.

Daí em diante, Miguel Torga traçou o seu próprio percurso. Sozinho. Longe das luzes da ribalta. Morre em 17 de Janeiro de 1995, no Instituto de Oncologia, em Coimbra, em plena lucidez de espírito, como se pode ver pelo poema abaixo transcrito. Recebia os amigos e nunca lhes falava da morte próxima. No derradeiro poema do seu último ‘Diário’, com data de 10 de Dezembro de 1993, confessa-se:

REQUIEM POR MIM

Aproxima-se o fim.

E tenho pena de acabar assim,

Em vez de natureza consumada,

Ruína humana.

Inválido do corpo

E tolhido da Alma.

Morto em todos os órgãos dos sentidos [ ]

*escritor duas vezes vencedor do Prémio Miguel Torga/Cidade de Coimbra

sábado, 4 de agosto de 2007

Miguel Torga pequenas achegas para um perfil

A Ler segunda-feira dia 6 de Agosto no Correio da Manhã.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

A Tabuada do Tempo, crítica de Victor Rui Dores

“Três são os meus lugares de escrita: Coimbra, a Ilha, a América.”pág. 286

Iniciei a leitura deste último livro de Cristóvão de Aguiar temendo estar perante mais do mesmo em relação à sua produção no campo da diarística: Relação de Bordo (1964-1988), Campo das Letras, 1999; Relação de Bordo II (1989-1992), Campo das Letras, 2000; e Nova Relação de Bordo, Publicações Dom Quixote, 2004. Agora que fecho o livro, tenho esta certeza: depois de ter escrito muito bem, Cristóvão de Aguiar voltou a escrever melhor.
A Tabuada do Tempo, com o subtítulo de “a lenta narrativa dos dias” (Almedina, Coimbra, 2007) e que foi merecedor, no ano transacto, do Prémio Literário Miguel Torga, passará a constituir referência importante na já vasta produção literária deste autor que continua a “escreviver”.
Cristóvão de Aguiar, 42 anos de vida literária, é escritor de compulsivas memórias. É conhecido o seu intenso e obstinado trabalho oficinal: memórias e experiências acumuladas e vertidas, com paixão e arte, na escrita. Trabalhador operoso e incansável das letras portuguesas, ele é autor do apuro formal, da exigência estética, da preocupação estilística e da descoberta lexical e sintáctica.
Com uma capa de concepção gráfica particularmente feliz, A Tabuada do Tempo, diário factual, passa em revista o ano de 1996 (numa viagem que começa em Janeiro e termina em Dezembro) e constitui mais um acto de auto-revelação de um escritor autêntico que se quer renovar e que procura dizer as coisas de uma maneira sua.
Cristóvão de Aguiar não se confessa – revela-se e, por essa via, revela-se-nos através das suas interrogações e incertezas, perplexidades e deslumbramentos, angústias e estados de alma. E, lançando olhares a alguns dos principais factos e acontecimentos ocorridos no referido ano, o narrador – fino observador da vida que se lhe oferece em palco – questiona e reflecte esse tempo, lança doses de humor e (amarga) ironia ao quotidiano, viaja em peregrinação interior, sendo simultaneamente protagonista, participante, observador e mediador. E nunca descura a sua relação com a escrita:
“Acordei de imaginação entupida”. (pág. 19)
Por exemplo: Cristóvão de Aguiar dá-nos pistas muito interessantes sobre a escrita da Relação de Bordo e a (re)escrita de Raiz Comovida, sua opus magnum. E lamenta a incerteza da publicação, denuncia os silêncios dos editores, ou os atrasos de resposta das editoras…. E fala-nos abertamente dos autores e das escritas que mais o influenciaram.
Escrevendo para iludir o tempo, e procurando na escrita “uma perfeição que nunca se deixa apanhar”, Cristóvão de Aguiar mantém-se fiel e coerente no mais profundo de si próprio. Voz inquieta e inquietante, continua ele a fazer da escrita uma catarse e um ajuste de contas com o passado e as novas mitologias do presente. E a partilhar connosco as preocupações mais íntimas do ser humano, de tudo fazendo assunto literário: a sua relação com os familiares (emotivas e emocionantes são as memórias do Pai e da Mãe) e amigos (Carlos André, Viriato Madeira, Mário Mesquita, José Augusto, Oliva, Victor Torres, etc.); a evocação da Ilha (a mítica e a real) e de Ela (a amada, referente constante na sua diarística); o seu modo de (d)escrever as suas viagens de comboio, as actividades lectivas, as memórias magoadas da guerra, as maleitas que o apoquentam, a viagem à América, ou a sua relação com os cães Isquininho, Alex, Regina, Adónis, Monalisa, Tina, Eurice, Pitão…
Efectivamente nunca o autor perde de vista a qualidade do seu discurso literário, quer fale de Virginia Woolf, Ernest Hemingway, May Sarton, ou de futebol…
Cristóvão de Aguiar escreve com amor e humor. E são muitos os olhares que lança à literatura, aos seus escritores e cultores: Almeida Garrett, Camilo Castelo-Branco, Júlio Dinis, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, José Régio, Vitorino Nemésio, Vergílio Ferreira, Miguel Torga, Paulo Quintela, José Rodrigues Miguéis, José Cardoso Pires, António Vilhena, Augusto Abelaira, David Mourão-Ferreira, António José Saraiva, Almeida Pavão, Manuel Alegre, Eduardo Lourenço, Óscar Lopes, João de Melo, António Lobo Antunes, Vasco Pereira da Costa, Carlos Reis, entre outros.
E está aqui a grande linha de força de A Tabuada do Tempo: a dimensão literária e humana. Basta ler o espantoso testemunho que nos é dado de Isabel, seropositiva, para percebermos isso mesmo.
Há “flashbacks” de episódios (digo, cenas) inesquecíveis e que nos remetem para a infância e adolescência do autor: a representação da comédia Inês de Castro (sendo que o narrador, enquanto menino, se apaixona pela actriz que desempenha o papel de Inês); as memórias do Liceu e as peripécias de dona Cesaltina; a educação sexual do narrador com uma “catequista e mestra da luxúria”; as incontornáveis e fascinantes personagens de dona Prudência e do Ti Zé Peidão… Mas atenção: não há aqui a gratuita aposta na descrição da peripécia – o que há é o aprofundamento do psicológico e do humano, que são no fundo os grandes valores da literatura.
Este é, por conseguinte, um livro sobre a usura e o devir do tempo. Um livro sedutor, evocativo, íntimo, intimista e musical (atravessado por música clássica) que constrói vidas inteiras.
Leiam, por favor, Cristóvão de Aguiar, porque ele ajuda a engrandecer a língua portuguesa.

Horta, 15 de Julho de 2007

Victor Rui Dores
Escritor/Professor

P.S. – Agora que temos um novo director a liderar os destinos da RTP/AÇORES, não seria de apostar numa nova série televisiva que incluísse a adaptação de obra(s) de Cristóvão de Aguiar? Recordo que o realizador José Medeiros colheu, na Raiz Comovida, abundante campo de referências para as celebradas séries televisivas “Xailes Negros” e “O Barco e o Sonho”, com os resultados de excelência que se conhecem.
Aqui fica (mais uma vez) o repto.


quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Mais rica a Literatura Portuguesa

Opinião de F. Couto Alves

in Diário dos Açores 21/07/2007


Acaba de ser lançado mais um livro de Cristóvão de Aguiar – "A Tabuada do Tempo – a lenta narrativa dos dias" – Prémio Literário Miguel Torga/Cidade de Coimbra/2006.Cristóvão de Aguiar neste livro, que deverá constituir um dos mais relevantes da Literatura diarística portuguesa, atinge o mais elevado patamar da sua carreira literária.Não resisto em realçar o seguinte excerto, cujo conteúdo faz também parte da minha memória de infância: ".... acordou-me, na memória, uma catadupa de vivências, na Ilha, onde na ponta final de minha infância, e na adolescência, ajudava meu tio Fernando, na sua estância de madeiras, ferragens, tintas e cal, assim por esta ordem, como rezava o cabeçalho das facturas e se acrescentava: Casa Fundada em 1943 ... e senti-me por trás do balcão aviando os fregueses: meio quilo de pregos de soalho, um alqueire de cal em pó, dez quilos de cal de pedra, vinda expressamente do forno do senhor Germano Augusto, de Lagoa".Eloísa Alvarez, porta-voz do Júri do Prémio Literário Miguel Torga escreveu no Prólogo: "Cada frase desta Tabuada do Tempo transforma-se numa revelação estilística, com descobertas lexicais e sintácticas que, iludindo a divagação, partem da procura no cerne da língua portuguesa, identificando o estilo de um autor que mostra nesta obra o ponto mais alto da sua maturidade literária."Há quatro anos escrevi neste jornal um apontamento sobre Cristóvão de Aguiar em que realçava:"Os personagens plenos de afectividade e ternura, de humanismo e sensibilidade, com que os leitores deparam na obra de Cristóvão de Aguiar, mormente a vavó Luzia e o avô José dos Reis na "Raiz Comovida", as expressões linguísticas provindas de estrangeirismos tão utilizadas pelo nosso povo, entre outros aspectos, fazem deste escritor um dos maiores vultos da Literatura Portuguesa Contemporânea, que muitos críticos o assemelham a Vitorino Nemésio."Pois Cristóvão de Aguiar continua a presentear-nos com textos que nos inebriam, pela sua beleza, pela sua indizível descrição das suas e nossas raízes, pela sua cristalina escrita, pela afecto da narração da memória colectiva de um povo, da Ilha, sem contudo deixar de ter o seu carácter universal que é uma constante na sua obra de Literatura Portuguesa, de significado ilhéu.Cristóvão de Aguiar, consagrado escritor açoriano nado e criado no Pico da Pedra, tem já uma vasta obra, realçando-se, de entre muitos, "Raiz Comovida", a célebre trilogia romanesca, de que "A Semente e a Seiva"(1978), recebeu o Prémio "Ricardo Malheiros, da Academia de Ciências de Lisboa, "Trasfega – Casos e Contos", em 2002, Prémio Literário Miguel Torga/Cidade de Coimbra. Agora com "A Tabuada do Tempo", novamente Prémio Literário Miguel Torga/Cidade de Coimbra/2006.Tanto na ficção como no diarismo, em que também já recebeu o Grande Prémio da Literatura Biográfica da Associação Portuguesa dos Escritores, Cristóvão é um mestre da Literatura Portuguesa que ombreia muitos escritores portugueses.As suas estórias e muitas das suas fascinantes personagens são registos indeléveis da memória das gentes. Escrever sobre Cristóvão de Aguiar, sobre a sua notável obra e, obviamente, sobre o lugar altaneiro que de há muito alcançou na Literatura Portuguesa não é tarefa fácil. A pureza das gentes, a quietude do ambiente nos livros de Cristóvão de Aguiar, os hábitos prenhes de generosidade, a forma de vida não contaminada pelo consumismo, a vida saudável e simples da aldeia, onde razões havia ainda para se ter um sorriso aberto, franco e descomplexado, têm sido um ponto comum. Foi a pacata freguesia do Pico da Pedra, na Ilha de S. Miguel, foram a principal fonte, quase inesgotável, onde o escritor buscou o húmus com que recriou as suas personagens. A "Raiz Comovida" foi bem a prova disso, nos anos setenta. "Trasfega – Casos e Contos", em 2002 foi um complemento e agora "A Tabuada do Tempo" lançado há dias na Câmara Municipal de Coimbra, que vem ainda mais catapultar a visibilidade de Cristóvão de Aguiar nas Letras Portuguesas. Por fim Coimbra, a sua terra adoptiva. Foi lá que gerou, a partir da "bigorna" da sua pena e com um tempero de persistente e exigente "serralheiro da escrita", a quase totalidade da apreciada, consagrada, saliente e importante obra, que muito honra a terra que o viu nascer.


A palavra do leitor

Entrevista ao Campeão da Províncias


“Só escrevo a partir das minhas raízes micaelenses”


Escrito por Paula Alexandra Almeida
01-Ago-2007



Acaba de editar a sua mais recente obra, vencedora da última edição do Prémio Literário Miguel Torga Cidade de Coimbra. Numa “lenta narrativa dos dias”, “A Tabuada do Tempo” percorre mais uma vez o quotidiano do escritor. As suas alegrias e angústias, amores e desamores, mas, sobretudo, a sua Ilha sem a qual, afirma, nada seria como é.

“… para Cristóvão de Aguiar, a escrita é uma catarse onde se misturam tempos e vivências, espaços e recordações, pessoas e amores perdidos ou encontrados, mundos experimentados ou imaginados”, escreve Ana Paula Arnaut no texto de introdução à obra ‘Homenagem a Cristóvão de Aguiar. 40 anos de vida literária’. “Sim, é de certo modo uma catarse. Porque tenho muitas coisas cá dentro e quando escrevo realmente fico mais calmo. É uma espécie de expulsão de fantasmas e de outros miasmas (para rimar...)”, afirma o escritor. “Mas essa catarse nunca me deixa em paz. A catarse existe quando eu estou no processo da escrita. Aí sim. Quando eu estou no processo da escrita há uma espécie de entrega total. E nestes momentos então, eu só penso na escrita, e sinto-me bem”.
Uma espécie de guerra e paz. “… não posso negar que, por vezes, encontro na escrita uma certa paz interina. Mas dá-me também muita guerra…”, escreve em ‘Tabuada do tempo. A lenta narrativa dos dias’ (pp 195), Prémio Literário Miguel Torga Cidade de Coimbra, acabado de editar pela Almedina e Câmara Municipal de Coimbra.
“Às vezes os períodos de não escrita são mais longos. E úteis porque é nesses períodos que se vai ideando aquilo que se vai escrever depois. Muitas vezes digo que escrevo a andar. Quando tenho alguma coisa para escrever a primeira coisa que eu faço é andar”. Quando estava no activo, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, fazia-o no Páteo da Universidade. “Andava às voltas, como o burro na nora”.
Agora, confessa, “estou numa fase pouco produtiva. Escrevo quase todos os dias, mas aquela escrita para dar a tal catarse está um pouco parada”. Não é a primeira vez e não será, provavelmente, a última. “Sinto-me e sento-me à borda do pânico. Por seu turno, gera outro maior e sempre por aí acima, em espiral, até ao inferno interior da culpa total por tudo quanto acontece dentro e fora de mim. Quem te manda a ti pensar que a escrita é o pão do teu supreio e a serenidade do teu espírito? E, depois, o universo e tudo quanto nele habita vai moendo e doente no tutano do íntimo. Caprichosa, a escrita. Deleita-se em vingar-se de quem dela se abeira de coração inseguro e de mãos menos limpas” (pp 17). Ou ainda “acordei de imaginação entupida. Não sei que coágulo nela se atravessou, talvez o bafor mormacento caindo sobre a Ilha e sobre o Mar. A Ilha sou eu. O mar, inventei-o!” e “a escrita, logo a seguir a mim, é quem primeiro dá o alarme e se ressente. Não sei a razão por que de repente se me arvora em inimiga, exigindo-me um corte ou uma interrupção abrupta das relações de mútua e intensa convivência” (pp 19).
E foi desde a homenagem que lhe prestaram. Em 2005. Quatro décadas depois do início. “Porque realmente isto é um pau de dois bicos. As homenagens prestadas em vida constituem um pau de dois bicos. Não quer dizer que as pessoas não fiquem contentes. Em Portugal costuma dizer-se que as homenagens são sempre póstumas e que não deviam ser. Bom, esta não foi póstuma, espero ainda viver alguns anos, mas abalou-me. Abalou-me bastante porque pensei: e agora? Pensando justamente que todas as homenagens que se faziam em Portugal eram exactamente ou póstumas ou quando a pessoa já estava no fim, interiorizei qualquer coisa que me fez mal”. Foi como se se tivesse fechado um ciclo.
“Aqui as homenagens têm ainda esse carácter agoirento — faz arrepiar. Não se sabe bem se elas a atraem, se, quando se fazem, já assentam os seus pilares no movediço terreno que serve de cama ou de porta à fechadura da vida” (pp 148). “A pessoa fica um pouco abalada. Não quer dizer que eu não tivesse gostado. Naqueles dias andei eufórico”, recorda.

“Uma obra nunca está acabada”

O início foi conturbado, em 1965, algures em Março, um par de semanas antes de partir para a guerra colonial. Numa pequena autobiografia incluída no livro de homenagem, o próprio Cristóvão de Aguiar escreve que “o nascituro merecia desmancho, em boas condições higiénicas, numa especializada clínica das letras, mas acabou por ser dado à luz, ficando para sempre um aborto com cara de livro”. O crítico de então também não perdoa: “Então este homem atravessou todo o curso dos liceus sem se lhe ter deparado um professor de Português que lhe desbastasse nas redacções este estilo de «selecções femininas»?”. Hoje, Cristóvão de Aguiar afirma que foi um livro fraco, um livro incipiente. “Não gostei do livro. É um livro que repudio, embora não se deva repudiar um filho. Mas não é um livro conseguido. Se eu só tivesse feito aquilo não interessava nada”.
Treze anos mais tarde, a pretexto de ‘Raiz Comovida’, os críticos escrevem que o seu estilo surpreende pelo domínio do idioma, pela mobilidade sintáctica e pela orquestração frásica. “Eu tive sempre dentro de mim o desejo de escrever. Aos 37 anos não tinha publicado nada, a não ser dois livritos que não significam nada. Mas queria escrever qualquer coisa que a crítica não classificasse como um livro promissor. Comecei então a tirar de mim próprio. ‘Raiz Comovida’ é um livro que é arrancado de mim. Ao fim e ao cabo, aquilo tudo foi vivido de perto, ou escutado de perto, por mim. Infância, adolescência e idade adulta”.
Foi muito bem recebido e elogiado pela crítica. Ganhou o Prémio Ricardo Malheiro da Academia de Ciências de Lisboa. “E isso também anima bastante”. Com o tempo conseguiu um estilo próprio, que já está isolado. “No início, a pessoa escreve ao estilo do último escritor que leu. Creio que me autonomizei e digo isso pelas críticas que recebo”.
Mas uma obra nunca está acabada. “Sou daqueles escritores que revêem muito os seus livros. Reescrevem. Nunca publico um livro em segunda edição sem primeiro rever, e não só. Nalguns casos reescrever. Quem fazia muito isto era o Miguel Torga que tem muitas edições dos seus livros e nenhuma delas é igual à anterior. Muitas pessoas dizem: ‘Estás a perder tempo com um livro que já está escrito quando podias escrever outro’. As coisas não são assim. A pessoa não toca num botão e sai um livro. Eu gosto de reescrever. Quanto estou a fazê-lo estou a reviver tudo de novo. E há sempre mazelas. É uma espécie de um jardim que é preciso cortar, é preciso limpar e desbastar”.
“… andei entretido toda a manhã a calcorrear a Ilha da minha meninice, andei de novo a percorrê-la e percorrendo-me nos primeiros capítulos de Raiz Comovida, onde já não entrava há bastante tempo; a finalidade é dar-lhe uns pequeninos acertos, já comecei ontem o meu lavor correctivo com muito entusiasmo, apenas uns pequeninos acertos, dizia eu, para lhe lavas os olhos de algumas remelas, cortar-lhe um que outro ramo seco, nota-se a toda esta distância temporal com mais nitidez atravancando certos arruamentos da oração frásica; desejo restituir-lhe a frescura e a cadência original, se possível com maior vigor, com vista a uma futura nova edição, deste vez em três volumes, um só calhamaço como anterior não deve ser comercialmente viável nem rendível, confesso que estou revivendo tudo como se a vida se me tivesse repetido devagar, aqui sobre o tampo da secretária, meu posto de comando de todas as operações recordativas;…” (pp 279/280).

“Em Coimbra consegui ver o meu passado”

As raízes açorianas influenciam-lhe a escrita. Totalmente. “Eu só escrevo a partir das minhas raízes micaelenses. Vivi lá 20 anos e esses são os anos mais importantes na vida de qualquer pessoa. A formação, a educação, tudo isso. Isso marca. Quando vim para Coimbra, em 1960, tive um certo abalo, mas pouco tempo depois Coimbra passou a significar o objectivo para ficar aqui. Se não estivesse em Coimbra, não teria conseguido escrever os livros que escrevi. Normalmente, quando a pessoa está no meio de uma floresta, não vê a floresta completa, vê apenas as árvores que a rodeiam. Eu, em Coimbra, consegui ver o meu passado no conjunto e reelaborar”.
Porque “nenhum escritor, nenhum artista pode criar a partir do nada. Tem que escrever a partir de uma base real. Claro que essa base real não é transcrita tal e qual. Não é uma reportagem. Tem que se reelaborar, tem que se transformar, tem que se mentir, digamos assim, para ser mais verdadeiro. Porque se as coisas que acontecem são transpostas, assim, tal e qual, para um livro, o leitor pode achar que é impossível ter acontecido. Ao passo que se o escritor lhe der uma volta... o escritor tem que tornar as coisas plausíveis. Não foram assim mas poderiam ter sido”.
São três as influências assumidas na escrita e na vida. “Sempre fui mais atento ao como se escreve do que ao que se escreve. Só com Aquilino, primeiro, e Miguel Torga, depois da guerra colonial, é que tudo havia de modificar-se. O beirão, mais esparramado na sua prosa suculenta e luxuriante, cheia de ressonâncias clássicas; o transmontano, muito mais contido na sua escrita enxuta e descarnada até ao tendão. Com ambos aprendi. E também com Vergílio Ferreira, considerado durante muito tempo por alguns críticos neo-realistas um escritor menor” (pp 285).
Mas são de Torga o maior número de referências nas suas obras e até algumas coincidências na escrita de ambos, nos temas abordados. “Teve muita influência em mim. Marcou-me muito. Ainda hoje releio a obra de Torga. Leio muito Torga porque há uma identificação comigo. Trás-os-Montes, São Miguel. Podem ser muito distantes mas as vivências são muito parecidas, algumas até iguais. E depois gosto muito da maneira de ele escrever. Uma escrita muito descarnada, sem adjectivação, que vai quase ao nervo da frase. Torga era uma pessoa que trabalhava muito a prosa. Ele diz nos seus diários que muitas vezes estava uma noite inteira à procura de uma palavra. E, depois, os temas, ‘A Criação do Mundo’, por exemplo, foi de tal maneira impressionante para mim que eu tenho impressão que a ‘Raiz Comovida’ será a minha ‘Criação’. Embora na ‘Raiz Comovida’ não haja nenhuma influência, no aspecto da escrita, de Torga. Porque a pessoa, pode ter influência. Agora, há uma altura da vida, sobretudo quando a pessoa é jovem, e não tem voz própria, escreve à maneira de. Eu não escrevi à maneira de, mas a influência está lá”.
Por isso mesmo, “Miguel Torga foi um prémio que eu gostaria de ter recebido apenas pelo patrono”. Mas é um prémio que implica concorrer em original e com pseudónimo. Porquê, ao fim de quatro décadas ainda este desejo de reconhecimento anónimo da obra? “Às vezes, para ter um incentivo. Porque a minha obra vende-se pouco, sabe? Agora já não. Mas antigamente quando uma obra ganhava um prémio vendia-se mais. O que me faz concorrer a estes prémios, às vezes, e digo-o com franqueza, é a publicação do livro. Nesta altura do campeonato tenho dificuldade em conseguir editora”, confessa.
“… perguntou-lhe se sabia alguma coisa do meu livro, ao que ele lhe respondeu que estava encalhado na Quetzal e em outras editoras [...] um original de um livro que se me tem tornado num parto difícil para burro” (pp 296), “… com tanto silêncio acumulado e outras quase tantas negativas, nem esperançado sequer fico. Se calhar, nenhuma importância tem…” (pp 299).
“Isto é um hobby. Não gostaria de ser escritor profissional. Sendo escritor profissional teria a obrigatoriedade de escrever um livro e isso não seria bom para mim. Mas o prémio é exactamente isso. Um incentivo. E também ficamos satisfeitos com o reconhecimento da nossa obra”.
Escreve com o coração. Sempre. E talvez por isso lhe seja impossível escrever sobre o lugar onde está. Na sua autobiografia afirma: “Dir-se-ia que Coimbra, que também faz parte do seu roteiro afectivo e cultural, lhe forneceu a ferramenta sem a qual não poderia carpinteirar a escrita nem ordenar o seu desordenado pensamento. Quarenta e cinco anos de convívio, cumplicidades, amores e desamores, alegrias e tristezas, deram para uma vida quase cheia de pouco. O bastante para que vá pensando em fechar o círculo, regressando ou não às raízes comovidas. Pode ser que, nessa remota origem, Coimbra se lhe imponha de tal sorte que tenha de escrevê-la, a ver se a sente mais aquietada dentro de si. O mesmo aconteceu com a Ilha, em Coimbra. Desinquietou-o de tal maneira que não teve outra alternativa que fosse a de a ir entretendo com meia dúzia de livros que, por sinal, nunca a aplacaram por inteiro”.
Escrever os Açores ajuda, assim, a ultrapassar a distância. “Houve uma altura em que estive afastado fisicamente dos Açores. Intelectualmente e mentalmente estou sempre lá. Nunca saí da Ilha. Mas houve uns anos em que ia pouco lá, até porque quando lá voltava nunca encontrava aquilo que tinha deixado e que eu tinha sempre na cabeça. Isso chocava-me. De tal modo aconteceu, que eu, que tenho necessidade de mar e de viver na Ilha, fiz uma transferência para o Pico, onde fiz uma casa. Não é a minha terra, não foi a ilha onde nasci, não conheço ninguém, nenhuma pessoa para mim tem passado. Enquanto que na minha Ilha, as pessoas têm um passado para mim e eu tenho um passado para elas e isso, às vezes, causa uma certa confusão. Não me sentia muito bem em São Miguel”.
Escrever no lugar onde se está, com a ambiência desse lugar, é difícil. Não se vê a floresta por causa da árvore. “O Vergílio Ferreira é que dizia isso muito bem. Quanto mais longe está melhor se vê. É dos escritores que melhor escreveu sobre Coimbra e não o fez cá. No local onde se vive é difícil escrever ficção”.


Perfil

Açoreano e comendador

Cristóvão de Aguiar nasceu no Pico da Pedra, ilha de São Miguel, em 1940. Frequentou Filologia Germânica, em Coimbra, curso que interrompeu para tirar o de Oficiais Milicianos. Em 1965 partiu para a Guiné, deixando o livrinho de poemas, “Mãos Vazias”, publicado. Regressado em 1967, concluiu o curso, leccionou em Leiria e voltou a Coimbra para apresentar a sua tese de licenciatura, “O Puritanismo e a Letra Escarlate”.
Foi redactor da revista Vértice, colaborador, depois do 25 de Abril, da Emissora Nacional com a rubrica "Revista da Imprensa Regional" e leitor de Língua Inglesa na Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade de Coimbra.
Em Setembro de 2001 foi agraciado pelo presidente da República com o grau de Comendador da Ordem Infante Dom Henrique. Em 2005 foi homenageado pela Universidade de Coimbra pelo seus quarenta anos de vida literária, tendo daí resultado o livro “Homenagem a Cristóvão de Aguiar. 40 anos de vida literária”, coordenado por Ana Paula Arnaut, com todas, ou quase todas, as críticas feitas à obra do autor no decurso dessas quatro décadas
.


E ainda…

“Devia principiar esta escrita por falar do tempo. Maneira de aquecer e preparar a palavra, para que ela execute com arte a dança do ventre no palco da página. Não sei se o faça ou não. Faz muito vento. Assobiante! E frio. É precisa disciplina e trabalho sem rede, para haver entusiasmo.”

“Os galos apresentaram-se roucos ao concerto da manhã abetumada. Bem os ouvi num esforço de aplaudir o Sol. Os cânticos chegaram a vir empoleirar-se no peitoril da janela. Sem nenhuma cumplicidade comigo. Acordara sem melodia no miolo do meu descampado. Não fui capaz de os mandar entrar e de os recolher em agasalho de poesia.”

“Ouço o sol brincando em silêncio num retirado recanto do jardim. Por vezes sabe-me a som. Tanto desejava compartilhar este secreto sol que esbraseia o meu saboreá-la. Repouso o coração no sanguíneo desfecho da tarde relvado de memória. Andarinhocos empoleiram-se no telhado da casa enquanto retiro pétalas às palavras.”

“[…] é ambulando que me acodem as boas ideias e a escrita se inicia no seu deslumbramento, o verdadeiro, sem papel nem computador — a pena electrónica do nosso tempo — a delimitar o voo da palavra no ecrã!”

“A minha verdadeira vocação seria trabalhar num porto ou aeroporto, a embarcar-me e a desembarcar-me na pessoa dos outros passageiros e lá de vez em quando a ir no lugar deles… Ponto final!”

“Não sei ao certo — os poetas usam relógios interiores que indicam horas diferentes: umas mais cheias, outras mais vazias, pouco monta — mas, à humana hora rotineira em que os pêndulos vulgares fazem oscilar o tempo por que se regulam os mortais, acordei em sobressalto, como se me tivessem arrombado a porta.”

“Aqui em frente do ecrã do computador há não sei quanto tempo e sem conseguir pescar uma palavra das muitas que sinto a correr pela ribeira que nasce e desagua em mim.”

“Vou-me agora de abalada em cata dos passos que hei-de percorrer, na esperança de que eles pouco a pouco me devolvam o quinhão de música a que tenho direito. Depois escrevo. Se o não fizer, não cai o mundo das alturas.”

in “A Tabuada do Tempo. A lenta narrativa dos dias”Prémio Literário Miguel Torga Cidade de Coimbra Almedina, 2007

terça-feira, 31 de julho de 2007

Relação de Bordo 1964-1988, crítica do Professor Carlos Reis



"(…) "Relação de Bordo" permite-nos testemunhar muitos tempos e muitos lugares: o tempo e o lugar da Coimbra do anos 60, o regresso episódico às origens açorianas de Cristóvão de Aguiar, a passagem pelos lugares da emigração americana, a guerra colonial, os entusiasmos da revolução de 74, os dramas pessoais e familiares do autor, etc., etc. Em tudo surpreende-se normalmente a tonalidade de uma contenção que equilibra a escrita diarística de Cristovão Aguiar entre os dois extremos que não raro são escolhos da perdição de uma tal escrita: o extremo da radical pessoalidade, sem outra explicação que não seja o gosto pela autocontemplação; o extremo do relatório neutro de coisas, pessoas e eventos. Entre um e outro extremo transcorre o discurso de uma relação: um texto que, sendo relato e descrição, é também o resultado de um encontro e de uma interacção do sujeito 'viajante' (…). Saúde-se, pois, de forma expressiva, esta "Relação de Bordo" de Cristovão de Aguiar. Ela é um outro passo importante na obra de um escritor porventura ainda insuficientemente valorizado, mas a quem devemos já uma obra ficcional coerente, tecnicamente elaborada e bem representativa de tendências da ficção portuguesa contemporânea (…).»




CARLOS REIS, sobre o primeiro volume de "Relação de Bordo", in Jornal de Letras, 8/9/99

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006