
Cristóvão de Aguiar
Trasfega, Publicações Dom Quixote, 2003
Com olhar atento e mão certeira, continua Cristóvão de Aguiar a carregar a ilha perdida e mitificada e a escrever a sua (e nossa) memória insular. E fá-lo com mestria narrativa, imaginação verbal e ousadia sintáctica, num discurso literário que mergulha fundo na raiz (comovida) e no húmus da oralidade açoriana. É disso exemplo este livro, que recebeu o Prémio Literário Miguel Torga/Cidade de Coimbra.
A obra, que inclui treze contos, inscreve-se e escreve-se no âmbito da literatura de significação açoriana. Ainda e sempre, há um imaginário ilhéu, há uma memória telúrica e há uma capacidade evocativa que escreve Cristóvão de Aguiar. Essa memória é o atlas do escritor que, nos seus livros, continua a dar conta da sua identificação com a ilha e consigo próprio. Porque a ilha deixa uma memória indelével e retroactiva: nela está o paraíso irremediavelmente perdido da infância e da adolescência. Daí a revisitação que o narrador empreende a toda a geografia sentimental, afectiva e humana à terra que lhe deu berço: a ilha de S. Miguel. Falar deste autor é falar da regionalização de uma escrita vernácula e de uma efabulação literária autêntica. Cristóvão de Aguiar escreve o homem açoriano, descreve a paisagem açoriana, exorciza a memória e capta o «espírito do lugar» porque aprendeu – e bem – a lição de Miguel Torga: «o universal é o local sem paredes». Ou seja, quanto mais regional, mais universal.
Trasfega continua a saga da trilogia romanesca Raiz Comovida (o livro mais emblemático de Cristóvão de Aguiar, agora em nova versão revista e remodelada, numa belíssima edição da Dom Quixote, saída em 2003) e vem acrescentar, à galeria imensa de personagens populares deste autor, um José Maiato (que recebeu uma Língua de Fogo que o pôs a falar inglês, sem ele saber como), um Mestre Libório (dado a estranhíssimas flatulências...), uma Tia Escolástica das Dores (soberba beata), um Ti Burrica (velhote castiço de grande recorte humano), entre outras.
Mas este livro não dá só conta de gente rural, de inocências rústicas e de acontecimentos pícaros. Há aqui dois registos, dois investimentos semânticos: o popular e o literário. Vejamos estes exemplos: «[...]a Ti Mariana das Quintas, mulher de gadanho rijo e de pêlo na venta [...]» (p. 50);
«Caminhava ligeiro galopando em seu dorso nu. Das calhas do silêncio, alucinado de sirenes, escorria um bafor de incêndio [...]» (p. 96)
O narrador age e reage: comenta, analisa, denuncia, renuncia, questiona o real, empreende viagens interiores. Narrativas há em que ele se confronta com as suas próprias memórias e vivências, havendo a salientar o conto «Trasfega» em que uma voz narrativa se intromete para fazer uma espécie de inquérito ao subconsciente. Esta mesma situação verifica-se no conto «Domingo», o que empresta a esta obra marcas de diferença e de originalidade.
A religiosidade açoriana é, por outro lado, muitíssimo bem agarrada (e ironizada) nos contos «Judas Iscariotes» e «O Sonho». Neste último, há um soberbo retrato de padrice e beatice e há a história de um seminarista (nunca a iniciação sexual foi tão longe na literatura açoriana) de ressonâncias queirozianas, que bem mereciam um filme. Custódio (na pele de um outro padre Amaro) e Tia Escolástica (no papel de uma outra Santa Joaneira) passarão, a partir de agora, a emparceirar com as grandes personagens da melhor literatura portuguesa de sempre. E a merecer, por isso mesmo, a melhor atenção do realizador José Medeiros, que, à referida trilogia romanesca, foi colher abundante campo de referências para as celebradas séries televisivas «Xailes Negros» e «O Barco e o Sonho [...]».
Há um outro tema que é recorrente na larga folha de serviços literários de Cristóvão de Aguiar: a Guerra Colonial, ferida que ainda não cicatrizou na sua memória, pois que, durante dois anos, conheceu uma experiência traumatizante na Guiné. Há ecos e memórias que ressoam no belíssimo conto «A Noite e a Sombra», que, de forma onírica e fantástica, dá conta do absurdo desse estúpido e inútil conflito armado. Recorde-se que este romancista é autor de uma das melhores ficções sobre a referida guerra: O Braço Tatuado (Signo, 1990).
Trasfega remete-nos para um tempo fascizante e salazarento em que os poderes absolutos (o governativo, o clerical e o militar) corrompiam absolutamente. O cerco apertava-se e, mesmo no microcosmo pacato da ilha, as personagens defrontam-se e confrontam-se com os poderes instituídos e com os mecanismos aleatórios e repressivos do Estado Novo. O regedor, o padre e o professor primário simbolizavam (e exerciam) o poder e policiavam os bons costumes...
Apreciei ainda, neste livro, o enfocamento visual na maneira de contar. Atente-se neste exemplo:
«Sentada no vão da janela, Maria do Carmo fixa os olhos num ponto imaginário, deixa os lábios esboçarem um sorriso de incerteza e pergunta para dentro de si mesma se Custódio era de facto sincero. Duas lágrimas quentes e teimosas deslizam como dois ribeirinhos pelas faces abaixo e vão alojar-se-lhe na boca encarnada. São salgadas. Como o sal que o padre António lhe colocara na boca no dia do seu baptizado, havia mais de vinte e cinco anos...».
Estão aqui as técnicas cinematográficas do raccord e do flash back: as lágrimas salgadas de Maria do Carmo (presente, a cores) e o sal que lhe foi colocado na boca no dia do seu baptizado (passado, em sépia). É de uma grande eficácia o traçado substantivo da escrita e é deveras excelente a visualidade dos diálogos (cf. «O Sonho»).
Trasfega será porventura a obra mais cinematográfica de Cristóvão de Aguiar, mesmo sendo um livro de passagem. Se bem que, para mim, Um Grito em Chamas (Salamandra, 1995) continue a ser o seu melhor livro, aceite o sábio princípio que diz que o melhor livro de um escritor é sempre aquele que ainda não foi escrito...
sexta-feira, 14 de setembro de 2007
Victor Rui Dores, sobre Trasfega, de Cristóvão de Aguiar
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Secção: críticas literárias, Trasfega, Victor Rui Dores
quinta-feira, 13 de setembro de 2007
Aerograma Enviado da Guiné, pelo Escritor ao seu primeiro filho- 1966
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Secção: curiosidades, Poemas
SCOLARI: RUA!
Acabei de ver o jogo e pensei que tinha de escrever um artigo sobre o seleccionador e o incidente que todos presenciámos.
Resumindo: O nosso seleccionador violou de forma gravíssima os deveres contratuais que celebrou com a Federação Portuguesa de Futebol e, acima de tudo, o respeito pelo Povo Português e a nossa Selecção que ele dirigia. Dirigia, sim, porque este senhor já não tem condições para continuar na selecção portuguesa.
Tem que ser despedido, com justa causa e sem qualquer indemnização.
Ainda por cima, não reconheceu o crime que praticou em frente às câmaras de televisão.
Se um arguido meu aparecesse em tribunal com a conduta que o Scolari apresentou nas suas declarações era condenado com todos os agravantes…
Portanto, além de termos visto seriamente comprometida a nossa presença no Europeu, ainda ficámos sem o Palhaço – com o devido respeito que me merecem os profissionais circenses - do treinador.
Qualquer solução contrária ao despedimento daquele energúmeno, só demonstrará a enorme tacanhez do nosso país.
Desculpem o meu desabafo. Estou revoltadíssimo.
Obrigado.
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Secção: Polémica
quarta-feira, 12 de setembro de 2007
ELOGIO FEITO A ESTE BLOGUE, PELO PROFESSOR ANTÓNIO MANUEL FERREIRA da Universidade de Aveiro

"Esta adenda é só para dizer que o seu blog é muito bom e emocionante. Muito obrigado."
Este elogio foi feito pelo Professor orientador da Tese de Mestrado que tem por objecto: os contos na obra de Cristóvão de Aguiar.
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Secção: Críticas ao Podium Scriptae
terça-feira, 11 de setembro de 2007
Referência a "Relação de Bordo" no Blogue in my secret life

"E eis-me aqui, diante de mim, nu, andrajoso, suplicante, a alma enregelada e crucificada na cruz destes dias sem nome. Nos olhos, uma fornalha de fúria e uma fome antiga situada não sei em que víscera, essa fome de séculos que é já grito milenário de todas as bocas em mim. Eis-me, pois, aqui, disparando bombas de palavras ao concentrado silêncio da noite. Eis-me aqui, tentando pescar estrelas no poço aberto do firmamento. Eis-me aqui, indefeso e nu, interrogando não sei que morto que vive numa parte de mim... em frente de mim, nu e com o frio de todos os pólos, interrogo-me como se fosse réu e juiz ao mesmo tempo. E as palavras que ouço vêm da minha voz antiga, saída do mais fundo do íntimo, carregada de pedras e de cardos, que grita e se contorce, morre e ressuscita... Mas continuo, indefeso e nu, aqui diante de mim..."
Cristóvão de Aguiar em "Relação de Bordo"
ou como se escreve e se transmite tão bem o sofrimento.
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Secção: críticas literárias, Relação de Bordo I
segunda-feira, 10 de setembro de 2007
Um Grito em Chamas, Apresentação da Professora Cristina Robalo Cordeiro, na Casa da Cultura de Coimbra - 1995

Um Grito em Chamas ou a completude da escrita
Cristina Robalo Cordeiro
4 de Abril de 1995
São-me pedidas algumas palavras de apresentação do novo romance de Cristóvão de Aguiar, Um Grito em Chamas.
Perante um público de amigos e apreciadores da sua obra, socorro-me da dupla isotopia do canto e do corpo, procurando cruzar a metáfora musical que explicitamente percorre o texto – lhe empresta coerência, o pontua de notas e andamentos, de pontos e contrapontos, num ritmo que oscila de adágio a multo vivace, passando por allegro ma non troppo – com a de um organismo vivo que se exprime na completude dos órgãos que o compõem e onde ao plano dos afectos se acrescenta o da racionalidade e o da transcendência, na busca de um sentido totalizador da vida.
A dimensão afectiva é a que leva Cristóvão de Aguiar a escrever com o coração, criando um imaginário da memória que ajeita e corrige o passado, retocando as imagens que o tempo imobilizou, em inevitável extravasar de um vivido onde o leitor tem a tentação de reconhecer um percurso autobiográfico. É na teia das estórias que nos são contadas que se recria aqui o mundo das emoções.
A dimensão intelectual obriga Cristóvão de Aguiar a escrever com a mente, com a inteligência de quem conhece a máquina da escrita, os mecanismos e as articulações com que o romance se constrói. Como um tecido, o texto faz-se em entrançado lógico e necessário de elementos e estruturas, recusando o artificialismo mas também nada deixando ao acaso, na obediência a uma composição coesa e forte.
A dimensão simbólica é que põe o Autor a escrever com a alma e a procurar um sentido para além da superfície das coisas, dos sinais explícitos e evidentes do real. A alegoria e a metáfora ajudam a desvendar o inacessível e a descobrir o mistério e a transcendência da vida: pela palavra, passa-se aqui do tema ao mito.
Conto do coração
“Bem vozeado saíra da matriz. Aí se inaugurara. Era o espantado grito da tia Severiana de Jesus. Até transportava parecenças, salvo o devido respeito e temor que devem merecer as coisas da Santa Madre, tão sérias e sagradas, com o magoado garganteio de certas cantoras do coro da capela, principalmente com o da Susaninha […]. Difundiu-se o grito pela vizinhança, alastrou-se para além dela levado na crista da onda do silêncio que forrava aquela meia manhã de Agosto, que rima com desgosto.”
O romance abre um com um episódio ocorrido numa manhã de sexta-feira de um Agosto agoirento: 13 notas de conto de réis inadvertidamente queimadas pela tia Severiana de Jesus, “enrodilhadas entre papéis e recibos velhos” que o lume ateado na lareira da sua cozinha depressa devorou, e que nela acordam um grito desmedido! Fulcral e simbólica, esta cena inaugura a evocação de uma vivência singular – a da tia Severiana de Jesus – e colectiva – a da freguesia da Tronqueira, no Concelho da Ribeira Grande da Ilha de São Miguel.
A existência da tia Severiana chega ao leitor através do relato de momentos marcados e marcantes, em instantes de dores fundas e caladas e de desmedidas aflições. É assim que conhecemos a família – e a malquerença que se reflecte na severidade dos pais e na hostilidade dos irmãos –, a escola – e a figura repressiva de Dona Jacintha, a quem Severiana guarda um rancor secreto e profundo –, episódios da sua vida, ora tristes – como a operação de barriga aberta que coloca Ti Aristides, seu marido, perante graves dificuldades económicas – ora suculentos de troça e riso – como o dos figos de Ti Aristides ou o do voo de Dona Clemência Cancela, levada pelo vento –, ou ainda aspectos configuradores da sua personalidade, como o amaldiçoado canhotismo que, enquanto tara reveladora de um pacto com o demónio, a estigmatiza desde o berço, e a sua conversão à Igreja Adventista, a nova vivência da religião e do diálogo com Deus, ambos sinais de afastamento de um padrão normalizador, de uma diferença que pouco a pouco se revela, evidenciando em Severiana um tom que destoa – um contraponto! – na desejada e absoluta monotonia de uma massa colectiva e amorfa.
A vida da Tronqueira – a vivência e os costumes da aldeia, o desenho das suas figuras proeminentes, o senhor padre vigário, a professora Caracola, o arqueólogo, senhor Correia, o doutor Virgílio, o primo Jovino, as senhoras Sousas –, ritmada pelas visitas bianuais do rateiro, pelas festas da Senhora das Vindimas e do Coração de Jesus, e trazida aos anais da História pelas calamidades que sobre ela se abateram, a pneumónica ou o tifo, é transfigurada em cenário de conto maravilhoso por fabulosas ocorrências, como o milagre das roseiras abraçadas ao pé do túmulo de dois jovens que a vida não chegou a juntar.
Entre a vivência do quotidiano de Severiana e a representação da aldeia, vai o narrador também falando de si, desvendando momentos de uma vida contada ao ritmo dos acidentes que marcam o rosto de uma terra e de uma natureza abanadas por ventos e trovoadas, ciclones e sismos.
Tudo isto, na desordem de uma memória que procede por associações e se deixa espicaçar por imagens, palavras e atmosferas, recusando a linearidade do desenrolar cronológico e a tranquilidade de um vivido sequencial. Neste entrançar de ramos – e de notas! – vão-se desenhando com crescente nitidez as silhuetas, os corpos e os gestos, que progressivamente se tornam rostos, expressões e olhares. Pouco a pouco vamo-nos sentindo da casa, reconhecemos os passos e as falas de quem nela habita: e nesta inevitável apropriação, Severiana de Jesus – porque sempre mais presente do que todos os outros – é cada vez mais por nós interiorizada, cada vez mais sentida como nossa!
O canto como “cosa mentale”
O que poderia aqui ser entropia afectiva – o bater do coração e o pulsar do sangue nas veias deste corpo – é recolhido e formalizado por uma estrutura compositiva que lhe confere a dimensão de obra literária. Presidido pela ideia de polifonia – de uma polifonia orquestrada –, o trabalho de construção determina uma organização textual em quatro partes – andamentos! – segundo um percurso narrativo que privilegia dois pontos de vista e duas modalidades de enunciação. É o narrador que abre e fecha o romance, em Adágio e Per finire, ouvindo-se a voz de Severiana em caudal de palavras que contam, lembram e relembram o seu passado, nas duas partes centrais. No primeiro caso, amalgamando a evocação da vida da tia com cenas e lembranças da sua própria vida, dirige-se o narrador a uma figura de mulher exterior à história – “meu amor” – dando-lhe a conhecer um universo de onde terá estado ausente. No segundo, Severiana de Jesus dirige-se ao narrador, em diálogos que correspondem às várias visitas do sobrinho à Ilha de São Miguel.
A organização do romance em torno destes dois planos discursivos implica a revisitação das mesmas cenas, diferentemente perspectivadas segundo o olhar de quem as restitui como se, à medida que avançamos, se fossem também ajustando e regulando as lentes do nosso olhar. E assim se vão entrelaçando planos, abrindo e fechando círculos, juntando as peças de um puzzle que o autor deliberadamente não quis construir para nós, como se a realidade evoluísse em duas espirais paralelas que, de tempos a tempos, unissem os seus movimentos circulares e confundissem os seus anéis.
Em ambos os discursos está patente a preocupação de mostrar os bastidores desse teatro onde o texto se faz. Ao desfilarem os seus rosários, e apesar do aparente caos dos fluxos verbais de que são responsáveis, o narrador e a tia desvendam o movimento que os determina e a vontade de que estão animados: querer contar, sim, mas deixar algo em suspenso, criando expectativas – “Vou-te agora contar”, “A seu tempo te contarei”, “Espera um instante. Já te conto o passo todo” –, num jogo de contenções e de expansões que hesita – ou finge que hesita – entre tudo dizer e não dizer tudo, e que assim coloca um certo ocultamento do real como fundamento de uma estratégia discursiva que privilegia na elipse o modo de expressão de um segredo, o da própria vida.
Através destes dois discursos, procura o Autor restituir dois modos diversos de dizer, o da oralidade e o da escrita, mostrando o que profundamente as aproxima e para ambas é essencial: a vontade de comunicar, o poder do encontro no diálogo e o valor soberano da partilha. E é aqui que também nós, leitores, nos sentimos mais implicados, incluídos nesse tu que de nós também é feito, seja ele a mulher-companheira a quem o narrador se dirige ou o sobrinho-narrador com quem a tia Severiana fala.
A alma do texto
Se é certo que a estrutura compositiva do romance quer suster a desordem das emoções que determinam a estória, igualmente certo é que parece escapar-lhe uma franja discursiva, assinalada no corpo do texto pelo uso do itálico. Nestes pequenos fragmentos narrativos – que abrem cada uma das três primeiras partes –, o narrador pensa em voz alta, interroga-se e discorre sobre a essência da escrita e da criação.
E assim se passa à palavra e à dimensão transcendente que a pode iluminar. O texto revela-nos agora uma alma que se liberta das peias apertadas da sua composição, dos limites impostos pela sua materialidade, se oferece como escavação espiritual e humana e se torna alegoria ou metáfora, símbolo ou mito.
É o momento em que se diz a importância do dizer, da palavra solta à boca do presente que se faz urgência e se derrama no papel, de uma palavra dita nos diálogos trocados – a da tia e da sua arte de bem conversar, pois que “muitas poucas coisas há-de haver nesta vida que cheguem aos calcanhares de uma boa conversa”, e a do sobrinho, “ilhéu transmigrado”, expressão da “inexorável caminhada em busca do texto perdido”.
É o momento também da apologia da palavra a decifrar, como a da Bíblia onde Severiana de Jesus encontra a serenidade de um absoluto partilhado. Simbolicamente, este verbo divino é o do próprio texto, o de um autor profeta a cumprir um destino e uma missão, palavra testemunho de uma outra palavra santificada pela lonjura, pela memória e pelo afecto.
É o momento ainda da palavra criadora, expressa no gesto simbólico de amassar o pão com mão firme e segura, mão de mestre ou de maestro, do escritor que, pela escrita, transfigura o mundo.
Per finire, quando a forma que controla dá lugar à doce incerteza do sentido, é um grito que percorre o texto, como um eco. O grito da personagem Severiana de Jesus ou o nosso próprio grito, aquele que o escritor foi capaz de ouvir, de entender e com o qual escreveu um poema.
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Secção: críticas literárias, Lançamentos, Um Grito em Chamas
Raiz Comovida, de Cristóvão de Aguiar, por LUIZ FAGUNDES DUARTE - 2003

Raiz Comovida – Trilogia Romanesca, de Cristóvão de Aguiar, começou a ser publicada há 25 anos – iniciou-se com A Semente e a Seiva (1978), e continuou-se com Vindima de Fogo (1979) e O Fruto e o Sonho (1981), para aparecer finalmente, num único volume (pela Editorial Caminho, 1987). Temos agora uma nova edição desta obra (Publicações Dom Quixote, 2003), que resulta de um profundo trabalho de revisão e de remodelação da edição anterior – de tal modo que, por vezes, temos a impressão de estarmos não perante uma edição revista de uma obra anteriormente publicada, mas sim perante uma obra nova e escrita de raiz.
Sendo uma obra de inspiração, de evocação e de definição açorianas, Raiz Comovida é, na beleza forte do seu título, muito mais do que aquilo que a uma leitura mais apressada possa parecer : não é mais um daqueles livros que costumam dar corpo ao que poderíamos chamar a estética da saudade, baseada no revivalismo de um país que a pouco e pouco vai deixando de ser o país das aldeias ; também não é um livro de memórias regionalistas. Indo muito mais fundo, nesta obra perpassam os tipos humanos que resultaram da amassadura da cultura ibérica tradicional com as águas, o sal e os ventos do mar, polvilhada de vulcões e abalos de terra, e mais de incursões dos piratas do Norte de África, e do isolamento, e de um ou outro arroubo colonialista – e perpassam sobretudo os contadores de histórias, aqueles que podemos tipificar na personagem do Ti José Pascoal de quem o narrador se queixa de que “Já está aqui há muito tempo à minha ilharga pedindo-me para entrar nesta história.[ pelo que, conclui ] Decidi fazer-lhe a vontade e vou já passar-lhe a palavra” (p. 45).
Desde a primeira à última frase de Raiz Comovida – vejamo-la nós em separado nos livros que a fizeram, vejamo-la na sua versão integral, já de si remodelada, de 1987, ou vejamo-la agora nesta nova versão que nos perturba enquanto gesto de inteligência dos tempos que correm e dos gostos que eles acarretam, mas sem nunca esquecer que se trata de uma reconstelação (isto é, de um reagrupamento, ele próprio dinâmico e interactivo) de elementos dispersos que são coerentes entre si, e que mutuamente se atraem, precisamente porque comungam do mesmo passado, e registam a memória que delimita a identidade cultural de quem, como os açorianos, é o fruto, ou o sonho realizado, de uma semente europeia que medrou mergulhada na seiva de um grande mar – e que agora se oferece, na comoção desta Raiz Comovida, à grande vindima que, de cada vez que acontece, representa, no nosso imaginário mediterrânico, a grande festa da vida.
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Secção: críticas literárias, Raiz Comovida
RECOMENDAÇÃO DE LEITURA DE "MARILHA" POR LUIZ FAGUNDES DUARTE

Cristóvão de Aguiar: uma sinfonia incompleta
Tal como Raiz Comovida é uma trilogia romanesca constituída pelos romances A Semente e a Seiva (1978), Vindima de Fogo (1979) e O Fruto e o Sonho (1981), finalmente reunidos em um único volume (1987 e 2003), o novo romance de Cristóvão de Aguiar, Marilha, é uma espécie de dilogia – no sentido etimológico desta palavra, que arremete para ‘ambiguidade’, ‘equívoco de sentidos’: para qualquer falante do português, trata-se de uma combinação das palavras “mar” e “ilha”, o que vem a calhar quando se trata de um autor de origem insular; mas, para quem conhecer a obra e os costumes de Cristóvão de Aguiar, trata-se de uma reencarnação, num corpo só, de dois livros anteriores: Um Grito em Chamas – Polifonia Romanesca (1995) e Ciclone de Setembro (1985) reaparecem agora, invertidos no tempo e refeitos na forma, como as duas partes que constituem o que agora se chama, na capa, “romance” e, na folha de rosto, “Sequência narrativa”. Mas, ao contrário do que se passou com Raiz Comovida, cujos romances componentes foram desde o início planeados e escritos para constituírem uma trilogia (aplicando-se aqui o conceito clássico do termo), em Marilha o que temos é dois livros, concebidos em separado e com dez anos de permeio, que uma inteligência superior entendeu reunir e agora apresentar como se de coisa única se tratasse – remetendo-nos para o tal equívoco de sentidos que a palavra dilogia refere.
Caso raro na literatura portuguesa é Cristóvão de Aguiar: não sei se poderemos aplicar aos seus livros e às suas personagens uma coisa do tipo do célebre “Mme Bovary, c’est Moi”, de Flaubert. Mas, ao deambular por esta floresta, que ele vai plantando, de livros que crescem uns por cima dos outros, uns à custa dos outros, não sei porquê – o que com maior nitidez me ocorre é uma frase de Fernando Pessoa, por ele enxertada na personalidade Bernardo Soares e que se podem encontrar na mais recente edição do Livro do Desassossego:
“Minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, tímbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia”.
Basta que Fernando Pessoa/Bernardo Soares tenha produzido esta afirmação, para a tomarmos por boa e a aceitarmos; e basta olharmos para a extraordinária obra ficcional de Cristóvão de Aguiar – em que cada livro é uma espécie de personagem que se transforma de acordo com os tempos e os contextos – para a entendermos como aquilo que de facto é: uma grande sinfonia. Que, como a de Schubert, há-de ficar incompleta; pelo menos enquanto Cristóvão de Aguiar tiver forças e ganas para escrever.
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Secção: críticas literárias, Marilha
domingo, 9 de setembro de 2007
A TABUADA DO TEMPO - RECOMENDAÇÃO DE LEITURA DO PROFESSOR CARLOS FIOLHAIS - In Primeiro de Janeiro et in Blogue De Rerum Natura

Cristóvão de Aguiar, “A Tabuada do Tempo - A lenta narrativa dos dias”, Almedina. O escritor açoriano (da pequena povoação, Pico da Pedra, em São Miguel, de onde também é natural o escritor e crítico Onésimo Teotónio Almeida) volta ao estilo dos seus “Diários de Bordo”, que é do melhor que de escrita diarística se publica entre nós (o autor ganhou já, por um dos “Diários", o Grande Prémio de Literatura Biográfica da Associação Portuguesa de Escritores, e esta “Tabuada do Tempo” valeu-lhe, pela segunda vez, o Prémio Miguel Torga da cidade de Coimbra). Curiosamente, depois de ter andado por outras editoras como a Caminho e a Dom Quixote, o autor regressa ao editor que lhe publicou nos anos 60 o seu primeiro livro, antes de ele embarcar para a guerra colonial. Cristóvão de Aguiar está agora reformado, mas durante muitos anos foi professor de inglês na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Fui seu aluno e com ele aprendi muitas expressões idiomáticas de língua inglesa, tendo-me até preparado para a minha primeira viagem a Inglaterra. E corrigiu os primeiros textos que publiquei em jornais. Como sou amigo dele (esta nota serve para confirmar a regra de que os críticos tendem a falar dos livros dos amigos), já me fez aparecer numa das suas páginas diarísticas!
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Secção: A Tabuada do Tempo, Notícias
sábado, 8 de setembro de 2007
AUTOBIOGRAFIA DE CRISTÓVÃO DE AGUIAR - LIVRO DE HOMENAGEM , 40 ANOS DE VIDA LITERÁRIA, IN FINE
O escritor Cristóvão de Aguiar, chamemos-lhe assim por uma questão de facilidade, usa também o nome civil de Luís Cristóvão Dias de Aguiar. Caiu neste mundo, na freguesia de Pico da Pedra, Ilha de São Miguel, com estes quatro nomes às costas e mais uma preposição a determinar-lhe o lugar de origem talvez uma Vila muito Pouca de Aguiar. A casa do calendário indicava o dia 8 de Setembro de 1940. Nascera de uma nobre estirpe de artesãos, músicos, poetas repentistas e também de agricultores. As mulheres eram dóceis, embora uma ou outra se pronunciasse por vezes de pêlo na venta...
De nome mais encolhido, o escritor deixou-se parir em Coimbra em dia impreciso de Março de 1965, três semanas antes de o indivíduo que lhe abonava o corpo ter zarpado para a guerra colonial a bom lavrar nos matos da Guiné e no íntimo dos mancebos em idade militar. Com pânico de morrer de um tiro numa emboscada, o futuro combatente procurou prevenir-se. Sangrou-se em saúde, e toca de cogitar em reproduzir-se. Parto prematuro, à custa de ferros. Só assim conseguiu ser arrancado à barriga... de aluguer. O nascituro merecia desmancho, em boas condições higiénicas, numa especializada clínica das letras, mas acabou por ser dado à luz, ficando para sempre um aborto com cara de livro. Enamorado, o pai, baptizou-o com o nome de Mãos Vazias: voluminho esvaziado de tudo, até da mais rudimentar poesia, quase a entrar nos quarenta, mas a sua idade mental não vai além dos catorze.
Muito longe desse evento, o rapaz que fui, e vou sendo sempre que me apetece, cresceu e medrou, inteiro como o seu nome, frequentou os estudos elementares na freguesia, situada a meio caminho entre a velha Vila da Ribeira Grande e a cidade de Ponta Delgada. Pouco antes de se matricular no Liceu, já seu Pai havia emigrado para a Ilha Terceira, a América pequenina. A verdadeira, a Amerca das estoas e dos mechins; dos candilhes e da cocoa; das roupas cheirosas e das ruas calcetadas de vidro, da comida encanada e dos açucrins, simbolizava um sonho que só alguns tinham a dita de alcançar. Na Base americana, trabalhou seu Pai como torneiro mecânico. Não só para o supreio da família como, principalmente, para pagar os estudos ao filho hospedado na cidade, à distância de dez quilómetros da freguesia. A meio do século passado, tratava-se de uma lonjura tão tamanha que, neste tempo alucinado de urgências, só poderia ser inteligível se a reduzíssemos a centímetros ou a milímetros. A ausência do quentinho da casa e da freguesia, onde se sentia mais inteligente do que em qualquer outra parte do mundo da Ilha, tornava-se imperativa a primeira separação e a primeira perda, as inaugurais de tantas outras que haveriam de se lhe apresentar ao comprido da vida.
O ingresso no palácio do velho Liceu, no ano lectivo em que o estabelecimento celebrava um século, deve ter sido o primeiro grande tsunami que amargou na vida ainda de calças tão curtas. Até o racharam ao meio, árvore fendida por um corisco de alto a baixo. A partir do início dessa aventura escolar, só o nome Cristóvão passou a valer no seio da nova e estranha comunidade. O prenome Luís, por que era conhecido e chamado, ficou submerso, apenas com dignidade de estatuto vocativo para a gente da freguesia e parentela mais chegada. Havia quem se arriscasse ao chamamento cristão inteiro: Luís Cristóvão. Vozes isoladas que não produziram eco no pordentro. Continua habitando dois nomes, como se possuísse duas casas. E o aluno medroso haveria de ficar cindido. Para sempre. Passou o Cristóvão a ser o contrapeso do Luís, ou vice-versa. As leviandades de um justificadas pelas aparentes virtudes do outro. Pelejando, porém, incessantemente vizinhos desavindos morando dentro da camisa-de-forças do mesmo corpo.
Concluíram ambos o antigo sétimo ano de letras, em 1960, mas deverá ter sido o Cristóvão quem, na sua extravagância sonhadora, fez atrasar, em dois anos, o curso liceal, arrastando-o durante uma novena. O Cristóvão gostava de namorar e de faltar às aulas para ir ao encontro da vida e dela colher as flores que a escola só lhe concedia, murchas e compendiadas, em livros únicos e maçudos. Não quis ir sozinho. Levou o Luís pela trela. E quem pagou a soma calada da factura apresentada pelo pai ao regressar da emigração de-ao-pé-da-porta foi o Luís. Passou a trabalhar na oficina de serralharia, para que aprendesse a arte do ferro forjado e ficasse a saber quanto custava a vida ou quantos pães dava um alqueire bem medido.
O Cristóvão continuava devaneando pelas paragens da imaginação desenfreada, pouco caso fazia das admoestações e conselhos do seu companheiro de rés-do-chão. Acabou por ter razão ou por ter sorte, tanto faz. O Luís deixou de ser aprendiz de serralheiro (só nas férias o retomava, para que não houvesse curteza de memória) e foi prosseguir os estudos, na companhia do Cristóvão, a seguir a umas férias mais compridas que légua da Póvoa. Conseguiram ser bons alunos. Quase distintos. Dispensaram do Exame de Aptidão à Universidade ao concluir o Curso Complementar dos Liceus.
Zarpámos da Ilha na noite de 10 de Outubro de 1960 a bordo do Lima e chegámos a Lisboa na manhã do dia 15 do mesmo mês. Um prodígio de velocidade, como se está vendo, só possível à alta tecnologia de ponta, ou à alta ponta da tecnologia, em uso na época. Na proporção que o navio subia o Tejo em direcção ao Cais de Santos, e à vista de tantas e tamanhas grandezas, ao Cristóvão bailavam-lhe os olhos. O Luís terá sentido essa impressão à semelhança de um rural de súbito colocado em meio de uma babilónia de progresso: espanto e nada mais que espanto. O rio, que ambos sabiam da geografia papagueada, a cidade de Lisboa, branca e imponente, apertada nas suas sete colinas, pareciam sair das páginas dos livros de estudo para se postarem, ali defronte deles, juntamente com um comboio entrevisto pela primeira vez, em louca correria sobre a linha-férrea de Sintra. Na Ilha, só se avistavam navios. Pena tamanha, pensava o Luís, não ter conseguido vislumbrar o famoso rectângulo de oitenta e nove mil quilómetros quadrados, dentro do qual Portugal inteiro se acolhia, ou encolhia, no respectivo mapa pendurado na sala de aula da escola elementar... E o Cristóvão acrescentou: “Sim, o mapa estava muito próximo da santíssima trindade constituída pelos retratos de Salazar e Carmona e pelo crucifixo de latão no meio de ambos...”
Às sete e vinte e cinco da noite desse dia 15 de Outubro partiam de Santa Apolónia, no Foguete, assim se denominava o comboio mais veloz e mais caro do tempo: cerca de cem escudos até Coimbra numa viagem de cerca de duas horas e meia. Era o único comboio que parava numa estação antes de Coimbra, a de Fátima, sendo, por isso, muito fácil não haver engano na segunda paragem era obrigatório descer. Nos outros comboios havia novatos das Ilhas que se apeavam na Mealhada ou ainda mais arriba...
Na Estação Velha, já noite cerrada, o Luís sentiu-se abandonado. Pouco ou nada percebia das palavras difundidas pelos altifalantes. Sabia que tinha de mudar para um comboio que fazia a ligação com a Estação Nova, mas não sabia como proceder. Acabou por perguntar. O interlocutor não lhe entendeu a pronúncia cerrada, e ele ficou transido. Por fim, o Cristóvão dirigiu-se, afoito, a um corretor, elegante na sua pronúncia impecável e farda castanha, debruada de dourados. O angariador em vez de responder perguntou: “O senhor doutor precisa de hotel?” O Cristóvão olhou para o lado, espicaçado pela curiosidade de ver, in loco, o primeiro titular de tal cargo, na maternidade onde os doutores nasciam de parto prematuro. Como não viu ninguém por perto e a pergunta fora repetida, ficou com a pele em couro de galinha chegara ao fundamento de que o doutor era ele próprio... A ligação acabou por chegar. Seguiram, num molhinho, meio enregelados, num banco de madeira. À saída da Estação Nova, pernoitaram na primeira pensão que encontraram. Acordaram do pesadelo em manhã outoniça lavada de sol, sem mar, o que lhes criou um vazio, que foi doendo pelo dia adiante, ocupado nas andanças de arrendar um quarto. A praxe académica, reforçada, recomeçou no dia seguinte, dia da Abertura Solene da Universidade. A partir daí, o medo tomou conta do Luís. Tinha de ir tomar as refeições à única cantina que existia, no Palácio dos Grilos, sede da Associação Académica. Muitas vezes deixou de ir jantar com pavor de ser rapado por uma trupe, outras ia de táxi, mas escasso era o dinheiro. De tal modo ficou atacado de medo que, semanas depois, desiludido e amedrontado com a obsoleta praxe académica, queria regressar, no vapor da carreira, ao ventre materno da Ilha. Escreveu uma carta esborratada de lágrimas. A resposta recebida uma semana mais tarde desenganava-o: “O que vens tu para cá fazer? aguenta-te; um homem não se deixa afundar dessa maneira; tudo é difícil ao princípio e um ano passa depressa: estás aí, estás cá em férias grandes...”
Uma noite, decidiu o Cristóvão fazer peito à praxe. E em 24 de Novembro, véspera da Tomada da Bastilha, era pela primeira vez rapado na Rua José Falcão, junto à Porta Minerva, a caminho da cantina.
A tormenta cultural dos princípios dos anos sessenta eclodida em Coimbra era mais forte ainda que a de um Ciclone de Setembro ilhéu. Com ela ficou em estado de embriaguez, a consciência dos limites cada vez mais à flor da pele e as Mãos Vazias de uma poesia que se recusava a cantar, mas que, bem ou mal, fez nascer, de parto prematuro, o tal Cristóvão de Aguiar, que ainda hoje persiste e insiste na lavoura da escrita. O Luís franzia o nariz e ia a pouco e pouco deixando de acompanhar o irmão gémeo, que se transformara num Grito em Chamas, que, desarvorado, procurava queimar e atingir não se sabia bem que alvo, talvez o Pão da Palavra com que queria alimentar o espírito confuso... Se o Luís era bicho-de-conta, por índole e humor, mais ainda se encantou no seu cantinho. Ao invés, lá ia o outro caminhando aos tropeções, tentando remover a Raiz Comovida, ainda fincada e ficada na Ilha, mas dando já topadas que o faziam sangrar por dentro, num princípio de intensa Trasfega. Conseguiu sobreviver. Em incessante viagem interior, grandes lutas travou dentro de si, numa lufa-lufa de Passageiro em Trânsito, procurando solucionar muitos dos problemas que a geração a que passou a pertencer já há muito tinha resolvido.
A sua grande sorte foi ter caído num meio intelectual progressista – o da revista Vértice, mesmo antes de pertencer ao seu quadro redactorial. Com os seus intelectuais convivia na Brasileira e com outros que lhe estavam próximos: o denominado Grupo da Brasileira, em que pontificavam Joaquim Namorado, Luís Albuquerque, Orlando de Carvalho, Mário Vilaça, e sobretudo conviveu Com Paulo Quintela à Mesa da Tertúlia, para só falar dos que já saíram de cena. Ouvindo mais do que falando, ia soletrando e aprendendo devagar as primeiras letras de uma nova cultura e de uma mentalidade que em nada se assemelhava à que em si vigorava. Lentamente foi assimilando novos valores humanísticos, alheios aos apontamentos tirados nas aulas, mais enraizados nos problemas concretos do País, estabelecendo com a vida cultural e literária uma Nova Relação que, mais tarde, havia de colocar um portaló por onde se entrava e saía de Bordo de qualquer iate de cabotagem.
Da Ilha trouxe um lastro de recursos afectivos e de novelos sentimentais que lhe têm vindo a servir de conduto ao pão seco e amargo do dia-a-dia. É com toda essa matéria nebulosa que vagueia dentro de si que vai procurando escrever. Dir-se-ia que Coimbra, que também faz parte do seu roteiro afectivo e cultural, lhe forneceu a ferramenta sem a qual não poderia carpinteirar a escrita nem ordenar o seu desordenado pensamento. Quarenta e cinco anos de convívio, cumplicidades, amores e desamores, alegrias e tristezas, deram para uma vida quase cheia de pouco. O bastante para que vá pensando em fechar o círculo, regressando ou não às raízes comovidas. Pode ser que, nessa remota origem, Coimbra se lhe imponha de tal sorte que tenha de escrevê-la, a ver se a sente mais aquietada dentro de si. O mesmo aconteceu com a Ilha, em Coimbra. Desinquietou-o de tal maneira que não teve outra alternativa que não fosse e de a ir entretendo com meia dúzia de livros que, por sinal, nunca a aplacaram por inteiro. Continua exigente e ciumenta. Vai procurar acalmá-la dentro em breve com a publicação de uma sequência narrativa a que deu o título de Marilha, Mar Ilha, Marília, nome de mulher, que, por força da pronúncia ainda em vigor em certas Ilhas, se transfigurou na gostosa dicção de Marilha...
Coimbra, 26 de Janeiro de 2005
In Livro de Homenagem a Cristóvão de Aguiar, quarenta anos de vida literária, Coordenado pela Professora Doutora Paula Arnaut, numa publicação da Faculdade de Letras e da Reitoria da Universidade de Coimbra - 2005
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Lapa
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19:02:00
1 comentários
Secção: Autobiografia
TANTO MAR
do qual este poema começou a nascer.
Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.
Manuel Alegre
Pico 27.07.2006
