"Liberdade de expressão não pode ser posta em causa"
Foi recentemente homenageado pelos seus 40 anos de vida literária. Portugal está a perder o mau hábito de se lembrar apenas dos mortos?
Uma andorinha não faz a Primavera, mas é, sem dúvida, um começo. Se, por um lado, é reconfortante ser homenageado em vida, como foi o caso pela passagem dos 40 anos da minha vida literária, e sobretudo por partir da iniciativa de uma instituição como a Universidade de Coimbra; por outro, abriu-se-me no íntimo uma clareira de angústia existencial que me tem perturbado o seu tanto. Fiquei com a sensação de que fui invadido por um deserto que me aguçou a consciência dos limites cada vez mais acanhados do tempo e ainda não consegui obter resposta à pergunta insistente que se me põe amiúde: "E agora?". Tudo tem o seu reverso e uma homenagem em vida não foge à excepção.
O facto de a sua obra estar a ser estudada em várias universidades é a prova da qualidade da sua escrita?
A qualidade e a profundidade de uma obra não se medem apenas pela razão de ser objecto de estudo ou análise literária numa qualquer universidade. Com os autores contemporâneos até pode ser uma questão de moda ou mesmo de compadrio. E poderá mesmo produzir efeito contrário, como sucedeu a muitas gerações com "Os Lusíadas" e outras obras clássicas da nossa Literatura. Em Espanha aconteceu o mesmo com o D. Quixote de La Mancha, obra imortal que já perfez quatro séculos de existência... Mas sempre lhe quero dizer que é saboroso saber que se é estudado numa universidade. Quando tomei conhecimento, por mero acaso, e através da Internet, de que os meus contos estavam a ser objecto de uma tese de mestrado no Departamento de Estudos Portugueses da Universidade de Aveiro, senti-me estupefacto e ao mesmo tempo inundado de uma grande alegria interior...
O acto da escrita é para si um acto de prazer ou é também um processo doloroso, angustiante?
Tenho-me debruçado com frequência, sobretudo na "Relação de Bordo", sobre o acto da escrita. Uma vez escrevi: "Escrever é abrir o fleimão com a lanceta bem afiada. Fica-se mais leve e pronto a fazer peito à próxima onda."
A leveza que se sente, porém, é breve e o prazer na mesma. Estou a falar de mim. Pode haver, e há decerto, escritores que sentem mais intensamente o prazer da escrita, ou o gozo de escrever, se é que ele existe de facto. No meu caso é tão fugaz que se não compara com a angústia de perfurar o poço de onde retiro a matéria, por vezes ígnea, com que vou lavourando as palavras. Escrevo com o fito de exorcizar a caterva de fantasmas que me persegue. Mas, quanto mais escrevo, tanto mais tenho para exorcizar.
Porque está constantemente a reescrever os seus romances? Assume-se como perfeccionista?
É uma questão de temperamento que me escapa a qualquer explicação racional. Há quem diga que se trata de narcisismo ou de perfeccionismo. Poderá ser! Sinto-me bem a reescrever um livro. É como se o escrevesse pela primeira vez. E nesta matéria, ressalvando as devidas distâncias, estou muito bem acompanhado: Miguel Torga, Eça de Queirós, Carlos de Oliveira... Se podar, nas páginas de um livro, galhos secos, e mondar uma ou outra erva daninha é ser perfeccionista, então dou com muito gosto a mão à palmatória...
"Raiz Comovida" é a sua obra emblemática? Neste romance vai fundo na linguagem popular. Foi uma forma de captar ou perder leitores?
Apesar de ser considerada uma obra emblemática da literatura de significação açoriana, não é a minha preferida. Cada escritor ama um determinado livro que escreveu acima dos outros, o que não significa que ele tenha razão. Para mim, e talvez pelo facto de ele ter apanhado uma grande tareia de um crítico açoriano, o meu livro preferido é o "Passageiro em Trânsito". Cada página desse livro foi parida com muita dor, pois trata-se de um ajuste de contas comigo mesmo e com a Ilha ou o fantasma dela em mim alojado. Mas, e voltando à "Raiz Comovida", ela não me fez perder leitores. Antes pelo contrário. No Continente, a obra foi bem aceite, sobretudo na província, porque o léxico lá empregado é português de lei, dos séculos XV e XVI, tal como Aquilino nas "Terras do Demo", cujo vocabulário é também, e em parte, comum ao nosso. Caiu em desuso nas grandes metrópoles, mas continuou a usar-se nas zonas mais insuladas, que funcionaram, por assim dizer, como frigoríficos que conservaram durante muito mais tempo o léxico arcaico. Se quisermos ouvir falar como se falava nas Ilhas há quarenta ou cinquenta anos, o melhor é dar um salto à América, onde os nossos emigrantes utilizam ainda muitos vocábulos que nas Ilhas, e mercê dos "media" e de um isolamento mais mitigado, já caíram em desuso.
João Gaspar Simões saudou muito bem o livro "Raiz Comovida", fazendo mesmo um paralelismo com Aquilino Ribeiro. O que sentiu?
João Gaspar Simões foi durante cerca de meio século o papa da crítica em Portugal. Instituiu a crítica semanal, primeiro no Diário de Lisboa e por fim no Diário de Notícias. Acertou muitas vezes nos seus juízos de valor, mas também errou bastante. Quanto ao meu caso, de facto saudou o primeiro volume de "Raiz Comovida", mas foi adiantando que o tipo de regionalismo utilizado não tinha futuro, à semelhança de Aquilino das Terras do Demo e de Vitorino Nemésio dos contos de Paço do Milhafre. Para Gaspar Simões, o universal media-se pela tradutibilidade da obra. Creio que será um critério muito estreito. Há obras intra- duzíveis que são universais. Já Miguel Torga escreveu que "o universal é o local sem paredes" e Aquilino considerava mais ou menos isto: "quanto mais local for uma obra, tanto mais universal é ela". Apesar de todas as reticências de JGS, considerou "Raiz Comovida" como "um colar de pérolas a que lhe falta o fio", querendo com isto significar que se não tratava de um romance, como eu inadvertidamente o subintitulei, mas de um embrechado de histórias que se encadeiam umas nas outras por meio de uma palavra puxa palavra da linguagem popular.
"Passageiro em Trânsito" é também uma crítica à nossa diáspora?
Considerar que "Passageiro em Trânsito" é apenas uma crítica contundente à nossa comunidade emigrante luso-americana, por quem tenho muito respeito, até porque sou filho, neto e sobrinho de muitos emigrantes, é reduzir o livro a uma dimensão mesquinha. Foi isto que entendeu o tal crítico açoriano, na altura radicado na América, mas dá-me a ideia de que não percebeu patavina do que leu. De facto, existe crítica a uma certa mentalidade própria de determinado emigrante bazofeiro, mas daí a afirmar-se que ofendi a condição do emigrante não é justo. O livro é, sim, um ajuste de contas ou, se preferir, um frente-a-frente comigo mesmo e a Ilha, assim em maiúscula, por ser uma entidade mítica que contém todos os afectos e desafectos, amores e desamores de um ilhéu desilhado que eu sou. É este o destino dessa raça de gente: se volta não se adapta, mas também não se adapta totalmente no húmus para onde foi transplantado. Ficou com as raízes aluídas num chão pouco firme...
Conviveu com Paulo Quintela e com Miguel Torga. Tem saudades dos seus tempos de Coimbra?
Quem haverá por aí que não tenha saudades dos seus 20 anos? No entanto, não sou muito dado à saudade lamecha e coimbrinha que, por vezes, cons- titui doença crónica de milhares de bacharéis que se formaram na Lusa Atenas e enxameiam os quatro cantos do País, tentando, debalde, aprisionar o tempo. Vivi numa república de açorianos, os Corsários das Ilhas, e durante o tempo em que lá permaneci tive muitos momentos de alegria, ensombrada sempre pelo fantasma da guerra colonial, que rebentou poucos meses depois de ter chegado como caloiro a Coimbra. Vinha da Ilha como um bicho-de-conta, metido consigo, pensando que sabia alguma coisa, mas não. Nesse longínquo ano de 1960, a lonjura entre o Continente e as ilhas era realmente um grande obstáculo. Hoje, feliz ou infelizmente, já não. Os estudantes andam numa roda-viva ilha vai, ilha vem, com o maior dos à-vontades. Nesse tempo, a perspectiva era de pelo menos um ano a remoer saudades da Ilha e do que lá tinha ficado à nossa espera. Ter saudades seria, para mim, uma força de expressão, porque adoptei Coimbra como minha segunda pátria. De facto, tive o privilégio de conviver intimamente com Paulo Quintela, meu Mestre de Germanística e de muitos outros saberes aprendidos à mesa da tertúlia. De resto, saiu agora um livrinho, em edição refundida e aumen-tada, de minha autoria, publicado pela Imprensa da Universidade de Coimbra, que celebra o primeiro centenário do seu nascimento, ocorrido no passado mês de Dezembro, a que dei o título de "Com Paulo Quintela à Mesa da Tertúlia". Também convivi episodicamente com o poeta Miguel Torga.
"Culturas ocidental e islâmica estão a desmoronar-se"
Fale-nos da sua experiência no teatro de guerra na Guiné e da sua transposição para a escrita. Ainda hoje é importunado pelos fantasmas da guerra colonial?
Está ainda muito presente. Há milhares de ex-combatentes a sofrer sequelas da guerra colonial. Embora já haja uma mão cheia de grandes livros sobre a guerra colonial. Basta atentar nos exemplos de Manuel Alegre, Álamo Oliveira, João de Melo e Lobo Antunes, entre outros. A minha experiência de guerra deu-me também, 18 anos depois do regresso, um livro. "No Princípio" constituía uma das três partes de "Ciclone de Setembro". Mais tarde, em 1990, desenvolvi-o e autonomizei-o em livro que titulei de "O Braço Tatuado". Foi muito bem recebido pela crítica, mas foi pouco divulgado, uma vez que a editora que o deu a lume abriu falência pouco tempo depois. Será este livro um dos meus próximos trabalhos de reescrita.
A propósito dos cartoons sobre Maomé, como conciliar liberdade de imprensa e de expressão e respeito pelas crenças religiosas?
O que se passou com a reacção muçulmana aos cartoons de Maomé não se pode admitir, nem sequer pôr em causa a liberdade de expressão. Nem ninguém tem de pedir desculpas. Muito menos Portugal, numa declaração infeliz de Freitas do Amaral. Os primeiros cartoons foram publicados em Setembro por um jornal dinamarquês. Foi para tribunal, que não deu seguimento ao processo. Só agora a barbárie entrou a matar. Não quero com isto dizer que concordo com os cartoons. Nem com o preservativo no nariz do Papa João Paulo II, em cartoon publicado há anos pelo Expresso. O que penso é que há outras maneiras de reagir àquilo com que se não concorda sem ser com violência desabrida. Mas, repito, a liberdade de expressão não pode de modo nenhum ser posta em causa. São culturas diferentes, sempre o foram, e ambas estão a desmoronar-se: a ocidental e a outra. Enquanto não houver tolerância de parte a parte, nada feito. Recentemente, por ocasião do doutoramento Honoris causa de um líder espiritual muçulmano, na Universidade de Évora, o imã frisou bem este ponto e a pluralidade de opiniões.
Tibério Cabral
quinta-feira, 5 de junho de 2008
Expresso das Nove entrevista Cristóvão de Aguiar, 24-02-2006, por Tibério Cabral.
Publicado por Lapa às 17:31:00
Secção: AÇORES, BRISTOL R.I., COIMBRA, Cultura, entrevistas, Jornais, PICO DA PEDRA, Polémica
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TANTO MAR
A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.
Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.
Manuel Alegre
Pico 27.07.2006
do qual este poema começou a nascer.
Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.
Manuel Alegre
Pico 27.07.2006
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