Guerra Colonial: Jovens sepultados na vergonha e no silêncio.
Nacional
F. Couto Alves 27/03/2008
"Andamos todos saturados. Todas as noites, logo após o pôr do Sol, assistimos, em pânico, ao espectáculo que se desenrola na fímbria do horizonte de terra. Primeiro, o som cavernoso do rebentamento de petardos, granadas, bazucas… Depois, as chamas subindo ao céu, iluminando a mata e a noite. Trata-se com certeza de mais uma aldeia fula a ser atacada e destruída pelos guerrilheiros. O cabo telegrafista traz-me, um pouco mais tarde, uma mensagem urgente, já descodificada, "Redobre vigilância; inimigo nas proximidades de Dunane…" Ao princípio ninguém mais pregava olho durante o resto da noite. Todo o grupo de combate, exceptuando os cozinheiros e os ajudantes, entrava de reforço até ao romper da madrugada. Com o hábito e a prática, porém, tudo se foi modificando. Nem a queimada, nem os rebentamentos, nem sequer a mensagem (sempre urgente) recebida a seguir conseguiam aumentar o pânico em que nos havíamos há muito instalado. Por fim, não sabíamos se era indiferença se inconsciência, ambas necessárias para se não morrer de susto… Antes de se atingir a primeira metade da comissão, parece que existe em nós um encolher de ombros em face do perigo de morte que roça o pensamento sem deixar marca. Alcançada a segunda metade, tudo se transforma. Aumenta o medo e redobra o amor à pátria da pele. Desperta em força a vontade de sobreviver. E o sonho do regresso principia a botar raízes no fundo do íntimo. É então que as surpresas acontecem…Ainda nos encontramos em Dunane. Há mais de um mês e meio que aqui apodrecemos lentamente. Fomos abastecidos apenas duas vezes. De víveres e correio…"
É de Cristóvão de Aguiar o trecho acima transcrito do seu último livro, Braço Tatuado – Retalhos da Guerra Colonial. Com um conteúdo simplesmente realista. Simplesmente impetuoso. Simplesmente objectivo. Simplesmente violento. Como violentas foram as guerras nas colónias, entre 1961 e 1974, na Guiné, em Angola e em Moçambique. Cristóvão de Aguiar, reputado e premiado escritor açoriano, com lugar altaneiro na Literatura Portuguesa, trouxe-nos recentemente a lume o romance de guerra Braço Tatuado – Retalhos da Guerra Colonial, uma terceira versão de um texto incluído inicialmente em Ciclone de Setembro (1985), depois em O Braço Tatuado (1990) sendo o actual reescrito e com nova versão.
O autor esteve na Guiné entre 1965 e 1967, o que lhe concedeu uma experiência extraordinária e material informativo para publicar um livro de memórias ficcionadas do tempo e do modo em que esteve mobilizado naquela ex-colónia. Neste livro ele foi por excelência um repórter de guerra que soube registar, com exactidão e a fidelidade de ficcionista, o quanto se passou pelas colónias de África.
Se bem que a independência das colónias se deu com o 25 de Abril de 1974, muitos escritores estiveram por lá desde 1961, e uma grande parte deles, até agora, devotaram-se ao silêncio. Passaram-se, portanto, cerca de 40 anos de silêncios cúmplices. Num tempo em que falar no assunto era verdadeiro tabu e de certo modo uma vergonha. Poucos foram os que abordaram o assunto da guerra colonial. Mas houve excepções. Poucas. Agora, verifica-se que muitos dequeles perderam o pudor e o recato, e já se vêem nos escaparates das livrarias diversas obras sobre o assunto. Não admira nada que se deva constituir, na Literatura Portuguesa, um subsector para a Literatura de Guerra.
No livro Retalhos da Guerra Colonial, de Cristóvão de Aguiar, narram-se factos que muitos dos portugueses desconheciam. Um livro escrito devotamente e com emoção, em que as narrativas da guerra colonial da Guiné, parecem ter sido tão recentes. Mas o certo é que os seus protagonistas estão na casa dos 60/70 anos. Quem lê Braço Tatuado – Retalhos da Guerra Colonial, fá-lo sofregamente. E muito mais, para quem por lá esteve. Quer na Guiné, quer nas outras colónias, como eu próprio.
No palco dessa guerra, é preciso não esquecer, morreram 7.000 jovens, ceifados na flor da vida. Fizeram a guerra sob ordens, cumprindo um mandato estatal, que abarcava toda a comunidade. Morreram a título definitivo e hoje em dia, sepultados no silêncio e na vergonha, olham-nos com os olhos mortos, incapazes de compreender que são também eles incómodos aos políticos, às instituições, aos esquemas da vida quotidiana. O mal deles foi combater e morrer, o mal deles foi obedecer, o mal deles foi dizer sim a uma caterva de poltrões que só então sabiam sacudir a água do capote. Hoje, essa geração de 40, precisamente aquela que muitos dos seus elementos foram os protagonistas da guerra de África, poderá considerar-se uma geração histórica, porque se envolveu em feitos vários que mudaram a vida das gentes de hoje, num autêntico projecto de geração.
Prestar a homenagem devida àqueles que morreram é uma obrigação. É de toda a justiça lembrar os milhares de mancebos que por lá passaram e transpor para os tempos de hoje, já que a juventude de agora quase nada sabe dos referidos eventos. De uma justiça flagrante.E é o que Cristóvão de Aguiar, magistralmente, faz.
Bem-hajas, portanto, pelo feito que fazes. Constitui um desiderato franco e generoso.
f63coutoalves@hotmail.com
A palavra do leitor
quinta-feira, 27 de março de 2008
BRAÇO TATUADO, Crítica de F. Couto Alves in Diário dos Açores, 27-03-2008.
Publicado por Lapa às 12:05:00
Secção: Braço Tatuado., críticas literárias, Notícias
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
TANTO MAR
A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.
Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.
Manuel Alegre
Pico 27.07.2006
do qual este poema começou a nascer.
Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.
Manuel Alegre
Pico 27.07.2006
9 comentários:
Este texto é restrito.
A Dom Quixote, "desbastou", da anterior versão, dois textos que constituiam o intróito e o epílogo, a saber: "abertura em Dó" e o "epílogo em Sol",que, por si só, constituem, na minha opinião, um dos maiores monumentos literários ao Soldado Português.
Também considero injusto que Cristóvão de Aguiar, um dos maiores escritores portugueses de sempre, seja agora "misturado" numa caldeirada de autores e livros sobre a guerra, que agora por questões de moda estão na berra.
Qualquer escriba que tenha uns amigos consegue ter muito mais difusão mediática do que este grande escritor.
Não sabia que a Igreja Católica celebrava missas no objectivo, depois das chacinas. Muito lindo, grande autoridade moral.
Só é pena não ter fotografias como as do livro de Felícia Cabrita
Concordo.
Pese embora, que um texto de Cristóvão de Aguiar valha por mil imagens...
Vejam lá que o Jornal de Letras ainda não falou no livro, enquanto que outros fedelhos têm direito a primeiras páginas, pré-publicações e todos o "colinhos".
O Cristóvão de Aguiar, publica um livro desta categoria e quem vai à televisão falar da guerra é uma colega de editora?
O Marcelo Rebelo de Sousa recomendou o Braço Tatuado, no correntes de escrita, José Carlos de Vasconcelos, director do jornal de letras, estava na primeira fila... engoliu e não fez a mínima alusão ao livro, nem na grande cobertura que publicou sobre o evento.
Conclusão:
Cristóvão de Aguiar continua a ser arredado por quem tem o dever de promover a cultura e os seus livros são escondidos, tal como os explosivos e outras substâncias perigosas.
Esse Valconcelos não é o "Inefável Poeta de Poema em Riste" que deu de frosques, para a terra, na crise de 69 em Coimbra?
É.
O título do comentário crítico é muito sugestivo. Cristóvão de Aguiar bem merecia essa nota crítica. Só é pena que os grandes órgãos de comunicação social continuam mudos para este brilhante escritor.
Obrigado a todos os comentadores.
No entanto, "rogo a fineza" que se identifiquem nos próximos comentários.
Olá!
Vim retribuir sua visia. Muit bom o seu diário. Parabéns!! Estamos em terras brasileiras ao seu inteiro dispor.
Boa noite e respeioso abraço.
Enviar um comentário