quinta-feira, 15 de julho de 2010

Estado da Nação: Famílias e empresas já sentem o efeito das medidas de austeridade. Autor: Margarida Peixoto

Fonte: Diário Económico

Data: 15-07-2010
Tema: Economia

Há um ano a economia também estava em crise, mas tirando isso, tudo o resto é diferente. As famílias pagam mais impostos, têm menos apoios e os preços começam a subir.
"Entretanto, o mundo mudou", disse José Sócrates, há cerca de dois meses. Que o digam as famílias: em apenas um ano, os impostos subiram, há quase 100 mil novos desempregados e o rendimento disponível entrou em queda. Passados um ano e 12 dias desde o último debate do Estado da Nação, a crise mantém-se, mas a economia nem parece a mesma.

"A alteração mais importante foi termos passado de uma política expansionista para uma contraccionista, tanto a nível europeu, como em Portugal", diz Pedro Laíns, economista e investigador na Universidade de Lisboa. Os termos técnicos escondem uma realidade bem palpável para as famílias e para as empresas: em vez da aposta no crescimento e no emprego - com a introdução de apoios e subsídios -, a prioridade passou a ser a correcção do défice orçamental.

Ao contrário do que se esperava em Julho do ano passado, o défice orçamental não ficou nem perto da previsão de 5,9%. As contas finais revelaram um desequilíbrio de 9,3% do PIB e uma dívida pública crescente, que levou os mercados a desconfiar da capacidade de resposta do Estado português no momento de pagar as dívidas. "As ameaças são diferentes. Em 2009, havia o medo de se cair numa brutal recessão; agora há a ameaça de os Estados entrarem em incumprimento", nota Luís Aguiar-Conraria, economista e professor na Universidade do Minho.

O resultado foi a passagem abrupta da política de apoio à economia - com investimentos públicos na renovação do parque escolar, por exemplo, ou com a promessa de um TGV que ligue Portugal à Europa - para uma estratégia de aumento de impostos e corte a direito nas despesas.

"A segunda grande alteração foi na política de obras públicas", acrescenta Laíns, referindo-se ao congelamento das linhas de alta-velocidade Lisboa-Porto e Porto-Vigo, mais uma inevitabilidade ditada pela obrigação de poupar.
Mas não é só o Estado que será obrigado a fechar os cordões à bolsa. As famílias e as empresas também não terão outra alternativa. Os impostos, tanto sobre os rendimentos do trabalho, como nos lucros das empresas estão mais altos; os juros já começaram a subir, inflacionando as prestações dos empréstimos à habitação; e os preços dão sinais de aumento, com a subida do IVA e a valorização do petróleo.

Perante este aperto, os salários mantiveram-se, na grande maioria dos casos, inalterados. A Função Pública teve aumento zero e muitas empresas seguiram o exemplo do Estado. Feitas as contas, o rendimento disponível já está em queda e o Banco de Portugal antecipa que o corte no dinheiro que os consumidores têm disponível todos os meses seja de 1,3% este ano.

A juntar a estas dificuldades, o medo do desemprego mantém-se, com a agravante de os apoios sociais serem agora mais restritos. "Muitas medidas de combate à crise foram revertidas. Mas o que é mais grave é que, neste momento, o desemprego não é uma escolha pessoal e por isso estamos a negar apoio a quem mais precisa", critica Luís Aguiar-Conraria.

As expectativas para 2011 não são melhores. É que se é certo que a economia saiu do vermelho no primeiro trimestre deste ano, com um crescimento de 1,8% face ao período homólogo, nada garante que o crescimento se vai manter na segunda metade do ano e durante 2011.

A razão é simples: a economia funciona como uma espécie de bola de neve. Se as famílias têm os rendimentos reduzidos e estão ameaçadas pelo desemprego, diminuem os níveis de consumo - a previsão é que em 2011 haja uma retracção de 0,9% do consumo privado, o pior valor desde o 25 de Abril, diz o Banco de Portugal. E se não consomem, as empresas não vendem, tornando muito difícil colocar a economia a crescer. Um argumento a favor poderia ser o bom comportamento das exportações na primeira metade do ano (cresceram 9,8%), mas também os principais parceiros comerciais portugueses estão a colocar no terreno medidas de austeridade, pelo que tudo indica que também aqui tenha sido sol de pouca dura.

10/07/15 11:14

terça-feira, 13 de julho de 2010

CAPEIA ARRAIANA: "há tourada na aldeia", filme/documentário do realizador Pedro Sena Nunes foi apresentado ontem em Coimbra, no âmbito do Seminário Internacional "SABEReseArtes" como investigação, uma iniciativa do Núcleo de Estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

Todos os anos, na Beira Alta, a província com maior índice de desrtificação, treze aldeias da Raia Sabugalense rejuvenescem para uma tourada com características únicas no mundo. a CAPEIA ARRAIANA. Os mordomos preparam as festas e contribuem para o património etnográfico, iniciando um ritual de emancipação onde se vêem confrontados com a força do toiro.
Vários homens envergam o forcão, objecto rudimentar feito de madeira, e lidam os touros que são trazidos, muitas vezes, de Espanha. As aldeias competem entre si à procura da melhor Capeia do ano.
Beira Alta, Raia Sabugalense.

_Gostei do filme, mas o Soito não está tão representado como se exigia neste tema.

Ideia original e realização de Pedro Sena Nunes; Direcção de produção Ana Rita Barata; Imagem Pedro Sena Nunes, Fábio M. Martins, David La Rua, Pedro Pinho; Som Ricardo Sequeira; Música- Criação Gravação e Mistura Fernando Mota; Produção Geral VOARTE

quarta-feira, 7 de julho de 2010

(2008) Cristóvão de Aguiar, Braço Tatuado. Lisboa, Dom Quixote. Crítica literária de Manuel Tomás. In Boletim do Núcleo Cultural da Horta. n.º 448

Braço Tatuado, é um “livro negro da guerra”, como vem afirmado na dedicatória com que o autor me honrou. “Retalhos da guerra colonial” é a expressão que surge inscrita como subtítulo ou complemento para
o entendimento do romance que vai ao mais profundo de uma guerra, injusta como todas elas são, ao âmago da profundidade psicológica de cada participante e à dimensão sociológica do grupo que luta em “comboio humano, agarrados uns aos outros pela cintura”.
Braço Tatuado é a recriação de uma dolorosa vivência pessoal de Cristóvão de Aguiar, durante a guerra colonial na Guiné. Essa experiência deu origem ao livro Ciclone de Setembro (1985), tendo uma das suas partes se autonomizado, posteriormente, com o título de Braço Tatuado (1990), saindo agora em uma nova versão (2008), para mostrar, de uma forma irónica e trágica, como se vivia a guerra, pois “só nos era permitido fazer manguitos por dentro ou roer as unhas de memória até ao sabugo; chorar não podíamos, nem, se calhar, teríamos lágrimas disponíveis no canto do saco– estávamos, exteriormente, em sentido e essa posição era sagrada”. Esta era a situação à partida, enquanto o capelão fazia o apelo ao patriotismo dos “bravos rapazes”. À saída do teatro de guerra, a ausência psicológica é ainda maior e ao discurso do governador militar, de copo na mão, só os “farrapos das palavras” são apanhados, cá-e-lá, e só são inteligíveis por quem esteja “animado de um profundo amor à pátria do copo”.
O livro escrito de rajada, como afirmou Carlos Ascenso André, in Jornal de Letras (23 de Abril de 2008), também é lido nesse mesmo impulso que não dá lugar a paragens e saltamos de página em página, ora procurando a emboscada, ora fugindo-lhe no matagal da angústia de algo que se faz para salvar a pele, mas o inesperado, maiorainda do que a emboscada do inimigo militar, de um caso pessoal pode virar tudo do avesso, onde já nada está às direitas, e esse inesperado vai causar o maior embaraço da missão, porque uma relação amorosa se perdeu na ausência de quem partiu para a guerra e se perdeu por completo na mistura de pânicos de guerra, com o pânico interior de um amor perdido. Na guerra, só se vive em pleno clímax de tudo e de todas as acções e recordações. Na guerra, “estamos cansados de tudo. Até de regressar. Tantas vezes foi este mágico verbo transitivo e intransitivo conjugado que se gastou tal qual um pataco…”, diz-nos o narrador que, às vezes, está a dar‑nos uma imagem visual e realista das operações em curso, obrigando-nos a visualizar toda a acção e a senti-la nos seus cheiros, sons e arrepios em momentos de vigoroso pânico derramado pelo ambiente onde se desenrolam as operações militares. Este forte e provocante realismo visualista revela-nos algumas atrocidades inimagináveis em seres humanos, mesmo em ambiente de guerra. O tenente Roberto, as suas atrocidades e o envolvimento educativo de seus filhos em uma autêntica barbárie evidenciam-nos, claramente, que aqueles são lugares de massacre tão violentos que o autor de tantas e malvadas acções criminosas actua de uma forma tão cruel que só no próprio enforcamento é que acha a solução para a previsível e desejável traição de sua mulher que, tempos mais tarde, há-de receber, como viúva, as insígnias dos grandes feitos de seu enforcado marido.
É de absurdos impostos, como dever, por um regime despótico e anacrónico, fazendo tantas vítimas, que Cristóvão de Aguiar nos dá conta, talvez com uma fidelidade sentida de tal modo que só mesmo a ficção nos poderia aproximar tanto da realidade e qualquer coincidência com essa realidade longínqua da Guiné-Bissau, mas ainda presente e não exorcizada totalmente na sociedade portuguesa, não será fruto de nenhum acaso.
Não fui à guerra colonial, mas não sou capaz de imaginar alguém a escrever ficção de esta maneira sobre ela sem por lá ter passado.

Manuel Tomás.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Cristóvão de Aguiar, justamente referenciado pelo escritor João Luís de Medeiros, numa entrevista que deu ao jornal Correio dos Açores.

Tertúlia Açoriana - João Luís de Medeiros, poeta escritor: As minhas cartas de amor eram copiadas na tropa

02 Julho 2010 [Cultura]
“Como estamos na alvorada do século XXI, numa época em que as religiões, o futebol, as drogas ilícitas, a glorificação hedonista são alguns dos capitais mais negociáveis na esfera do globalismo, o escritor (operário da escrita) tanto pode ser um cúmplice do negócio vigente ou sujeitar-se à missão de ‘subversivo’ da alternativa...”, afirma o poeta e escritor João Luis de Medeiros.
Correio dos Açores: Nome, naturalidade, cidade e país onde reside?
João Luís de Medeiros – Em Janeiro de 1942, fui baptizado na igreja micaelense de São Roque com o nome que continuo a usar: João Luís Tavares de Medeiros.
Em finais de 1980, emigrei com a família para os Estados Unidos, mais precisamente para Fall River (Massachusetts) onde vivi até finais do século XX. No ano 2000, resolvi experimentar a rota do “sonho americano”, rumo ao sudoeste da Califórnia, onde continuo a viver como aprendiz da vida, numa pequena cidade do Coachella Valley, chamada Rancho Mirage.
O Primeiro livro que leu?
Faço parte das gerações que certamente ainda guardam recordações (embora amarelecidas) de que o famoso livro das primeiras classes da instrução primária terá sido o livro do pedagogo Virgílio Couto, hoje porventura imerecidamente esquecido...
Quando sentiu o chamamento para a escrita?
Creio que “assentei praça” na escrita devido a circunstâncias meramente casuais. Com cerca de 10 anos de idade, já tinha a incumbência de escrever as cartas que a saudosa avó ditava para serem enviadas ao filho que, por volta de 1946, embarcara para Angola integrado no corpo expedicionário açoriano para substituir o batalhão continental número 13 (Nova Lisboa, Angola).
Mais tarde, já com a adolescência a rondar as ameias da juventude, divertia-me imenso a escrever bilhetes românticos àquelas raparigas conhecidas que tinham autorização familiar para dar banho à beleza, no ambiente outrora meigo e calmo dos areais da área. Anos mais tarde, durante o “cruzeiro colonial”, em Moçambique (1963-66) aceitei o cativante desafio de redigir as “cartas-de-amor”, que eram depois copiadas (secretamente) pelos meus companheiros mais avessos à escrita...
Qual o seu género literário?
Desde muito moço fiquei cativo voluntário da Poesia. O conto e a crónica são dois géneros que continuo a espreitar como janelas criativas. Todavia, se tiver vida e não me sentir órfão de talento, gostaria de enveredar com sensatez criativa pelo estilo da Prosopopeia...
Na escola primária era habitual ter boas qualificações nas redacções?
Sinceramente, não tenho memórias gratificantes desse período. Apenas me lembro de ter escrito duas ou três linhas para ler junto à campa do antigo professor Almeida Pavão (pai), na peregrinacão anual dos miúdos do ensino primário ao cemitério de são Roque...
Há algum livro dos seus que gostaria de reescrever?
Reconheço a benignidade da pergunta, mas devo esclarecer que não nunca perdi a noção do meu tamanho como operário da escrita. Até hoje, tive a boa sorte de não ter publicado livros de que poderia estar agora arrependido. No universo das ideias, a mensagem vale muito mais do que o mensageiro...
Quais os livros que publicou e o mais recente?
Parabéns pela clarividente pergunta. Não tenho habilidade para esgrimir segredos comerciais, porque não gozo do estatuto para escrever para o mercado livreiro. Dito isto, meu caro, abro a confidência: dentro em breve aparecerá ao público da diáspora lusófona o livro “Canteiro da Memória” (colectânea alusiva a 10% das minhas crónicas publicadas entre 1979-2009, sob o pálio da coluna memorandum).
Recordo que no Outono de 2007 veio a público a minha presença poética com o livro “(Re)verso da Palavra”, cujos poemas (1957-2007) fazem parte da (minha) fase “poesia-de-combate” que, obviamente, continua alérgica ao fervor encomiástico da confraria da literatagem oficiosa da nossa praça psico-literária...
Em 1993, apareci como co-autor do livro “Em Louvor do Divino”, cuja edição está esgotada...
Indique-me um livro de um escritor açoriano de que gostaria de ter sido autor?
Ó deuses! ... sinto-me agora atraído pela categoria psico-literária da resposta do nosso conterrâneo Cristóvão de Aguiar, quando há semanas admitiu, com sincera angústia, que gostaria ter sido o autor dos SONETOS anterianos. Depois dessa resposta, só me resta dizer que vou morrer sem ter tentado escrever algo semelhante à sua “RAIZ COMOVIDA”... Todavia, no calendário da eternidade, espero (re)encontrar ambos Antero & Cristóvão no pavilhão dos vencidos mas nunca convencidos...
Como se relaciona com os escritores?
Para confirmar os meus dizeres, seria preciso contactar alguns deles... (alguns já estão à nossa espera na quinta da eternidade); Mas arrisco sem temor nomear os amigos Cristóvão de Aguiar, Fernando Aires, Onésimo Almeida, Urbano Bettencourt, Rui-Galvão de Carvalho, Mayone Dias, Daniel de Sá, Francisco Fagundes, Dias de Melo, Mário Mesquita, Álamo Oliveira...
Pensa enriquecer como escritor?
Bem sei que a pergunta não é maliciosa – é apenas pedagógica. Como operário da escrita sou porventura (em segredo) um abastado milionário! Embora ausente da confraria do turismo académico que tirou (inteligentemente) partido da mal-disfarçada subalternidade académica da açorianidade nascente (1985-2005), tenho procurado cultivar a prudência de não usar as conexões político-emocionais ao meu dispor... para facilitar o meu percurso de “missionário da escrita”...
Nesse aspecto, limito-me a imaginar a banda passar! Enfim, são feitios...
Que livro nunca recomendaria a um amigo?
... não desejo ser endossado de tal autoridade...
Que livro gostaria de deixar e que ainda não escreveu...?
Como estamos na alvorada do século XXI, numa época em que as religiões, o futebol, as drogas ilícitas, a glorificação hedonista são alguns dos capitais mais negociáveis na esfera do globalismo, o escritor (operário da escrita) tanto pode ser um cúmplice do negócio vigente ou sujeitar-se à missão de “subversivo” da alternativa...
Antes de sucumbir, involuntariamente, à febre global da trivialidade, talvez seja contemplado com o carimbo “subversivo” na última página do meu ignorado passaporte da alternativa...



Autor: Afonso Quental

terça-feira, 29 de junho de 2010

Abri o Diário de Coimbra e na necrologia noticiam a morte de um dos maiores poetas que conheci pessoalmente: João Damasceno (Albuquerque) 55 anos, professor de história. Ainda ontem o tinha recitado. Espero que Coimbra lhe preste a devida e justa homenagem. "Em terra de cegos/ quem tem um olho é rei/ e quem tem dois/ é frequentemente abatido... ".

O Poeta João Damasceno, 1955 - 2010, publicou, pelo menos: Corpo Cru, 1983; Alma Fria, Sketches Policiários, 1985; Cinco Suicídios, 1986, 300 exemplares; Retrato do Artista Quando Jovem aos Pés da Rainha Santa Isabel; 1989. Fenda Edições.


domingo, 13 de junho de 2010

Um Livro por Semana LXXVIII. Relação de bordo, de Cristóvão de Aguiar. Faial Online, por Victor Rui Dores.


Um Livro por Semana LXXVIII

13 de Junho de 2010

Relação de bordo, de Cristóvão de Aguiar

ou a memória vasculhada
“Viajo por dentro de mim e chego sempre à Ilha onde Ela ficou.”

Homem inquieto e irrequieto, escritor telúrico e intempestivo, observador infatigável e dotado de discernimento crítico, Cristóvão de Aguiar escreve com os olhos da memória.

A sua trilogia romanesca Raiz Comovida – A semente e a seiva (1978), Vindima de Fogo (1979) e O fruto e o sonho (1981) – é a prova disso mesmo: ali se dá conta da memória da infância açoriana, no microcosmo da Tronqueira, com gente de grande riqueza psicológica e funda expressão humana, de que são exemplos a avó Luzia, o avô José dos Reis, o Ti José Pascoal entre muitas outras personagens que falam com sotaque micaelense, sendo o(s) livro(s) servido(s) por uma escrita que mergulha fundo no húmus do discurso popular e vernáculo. (Recorde-se a propósito que, em 1987, Raiz Comovida foi publicado pela Editorial Caminho, em edição revista e remodelada num só volume).

Todas as obras de Cristóvão de Aguiar são atravessadas pela memória do vivido e do sentido. Há efectivamente uma memória que escreve este autor, quer na sua poesia – Mãos vazias (1965), O Pão da palavra (1977), Sonetos de Amor Ilhéu (1992) –, quer na ficção narrativa, sendo nesta última que este escritor tem dado melhor conta de si.

Cristóvão de Aguiar é, acima de tudo, um romancista. Para além da já referida Raiz Comovida (sem dúvida a sua obra emblemática), escreveu outros livros, cujos géneros literários ele vai classificando de forma criativa e da seguinte maneira: Ciclone de Setembro (1985), “romance ou o que lhe queiram chamar”; Passageiro em trânsito (edições de 1988 e 1994), “novela em espiral ou o romance de um ponto a que se vai acrescentando sempre mais um conto”; O braço tatuado (1990), “narrativa militar aplicada”; Um grito em chamas (1995), “polifonia romanesca”; e, agora, Relação de bordo (1999), “diário ou nem tanto ou talvez muito mais”.
Há três grandes vectores que atravessam toda a obra de Cristóvão de Aguiar: a memória insular, a emigração e a guerra colonial.

Para melhor conhecer este autor e a sua escrita, convirá aqui avançar com alguns dados biográficos.

Luís Cristóvão Dias de Aguiar nasceu no dia 8 de Setembro de 1940, na freguesia do Pico da Pedra, ilha de S. Miguel, e aí viveu até aos 20 anos de idade. Cresceu num ambiente familiar completo de avós, tios, primos e vizinhos. Deles ouviu histórias que lhe regalavam a imaginação nos serões de Inverno. A oralidade exerceu sobre ele uma influência decisiva: neto e sobrinho de poetas repentistas, o avô era tanoeiro, o pai serralheiro e a mãe era dada às poesias – com todo este “pecúlio afectivo e humano” estava destinado a ser escritor.

Concluídos os estudos liceais em Ponta Delgada, no Liceu Antero de Quental (onde foi aluno de Armando Côrtes-Rodrigues e Ruy Galvão de Carvalho), Cristóvão de Aguiar embarcou para o continente, em Outubro de 1960, “com duas malas cheias de roupa e de muitas ilusões”, conforme nos relata em Relação de bordo.
“A ilha foi comigo e comigo permaneceu até hoje, como companheira fiel. Foi então que a compreendi! A distância traz-nos a nitidez das coisas e das pessoas”. (p.

Estudante em Coimbra, sofre “fortes abalos sísmicos afectivos”, anda transviado pelos caminhos da vida e da literatura e vive a agitação cultural que eclode nos anos 60. Interrompe os estudos por causa da tropa. Faz a recruta em Mafra e, depois, parte para a Guiné, onde viverá, durante quase dois anos, a “patriótica estopada”, isto é, a dolorosa experiência da Guerra Colonial. Dessa guerra e dos retroactivos da sua memória, dão conta os livros Ciclone de Setembro e O braço tatuado.

Regressado da Guiné, fixa residência em Coimbra, em cuja Faculdade de Letras conclui a licenciatura em Germânicas, desenvolvendo depois actividade como professor e tradutor. Pai de três filhos, entrega-se à “lavoura das palavras” e vive a dúvida e a inquietação da escrita. Escreve ele na sua Relação de bordo:
“E quanto mais leio o que escrevi, mais insegurança sinto”. (p. )
Em 1978 dá à estampa Raiz Comovida, que viria a receber, nesse mesmo ano, o Prémio Ricardo Malheiros e a merecer, três anos mais tarde, uma crítica elogiosa do temível e temido João Gaspar Simões, no jornal “Diário de Notícias” (2 de Abril de 1981), que ficou deslumbrado com o “pitoresco léxico” da obra.

Aquele exigente crítico, referindo-se à originalidade linguística e à técnica narrativa de Raiz Comovida, nomeadamente à assimilação de uma linguagem estritamente popular, ambientada no espaço geo-social micaelense, escreve que Cristóvão de Aguiar “é ágil e forte na linguagem” e considera-o “mestre na invenção de ambientes”.
Outros reputados críticos e escritores acolhem Raiz Comovida da melhor forma, entre os quais se destaca Urbano Tavares Rodrigues, Fernando Namora, José Manuel Mendes, João de Melo e Vasco Pereira da Costa.
É chegada agora a altura de lançar alguns olhares ao livro Relação de bordo (Campo das Letras, 1999), dário que Cristóvão de Aguiar escreveu entre os anos de 1964 e 1988. O autor deixa aqui a marca do seu indiscutível talento literário, demonstrando (à semelhança de Samuel Pepys, Jonathan Swift, William Byrd, ou, no caso português, de um Miguel Torga, ou de um Fernando Aires) que a escrita diarística não é um género menor.
Relação de bordo é uma obra importante, por três razões maiores. Em primeiro lugar, porque nos informa sobre as ideias, as opiniões e as reacções de Cristóvão de Aguiar sobre as coisas, os acontecimentos e as pessoas de um tempo e de um lugar. Em segundo lugar, porque espalha alguma luz sobre aspectos relacionados com alguns eventos que marcaram este país, contribuindo, assim, para que fiquemos a fazer uma ideia mais pormenorizada e, por isso mesmo, mais rica e mais perfeita do período em apreço. Em terceiro lugar, porque nos pôe em contacto com o estilo do autor, levando-nos a surpreendê-lo em estado puro e nascente, tal e qual ele surge no movimento despreocupado de quem não pensa na futura publicação.

Por conseguinte, este livro vem contribuir para que o nosso conhecimento de Cristóvão de Aguiar – do homem, do seu estilo e de uma época específica – seja mais amplo e mais completo.

De resto, o diário é um dos meios privilegiados de revelação das personalidades. A obra destinada à publicação e à publicidade rodeia-se de precauções para que não se corra o risco de se dizer mais do que se deseja. No diário (registo íntimo de pensamentos, atitudes, observações e experiências do escritor) é-se mais verdadeiro, no sentido de que se é mais natural e mais sincero.

Em Relação de bordo, autor e narrador são entidades coincidentes. Cristóvão de Aguiar deixa neste diário olhares inesperados e originais sobre os homens, as coisas e os acontecimentos, fazendo um ajuste de contas consigo próprio (por vezes o eu do texto dá lugar a um tu judicioso e imperativo – a voz da sua consciência ?), com os outros e com o mundo. “Escrever é escrever-se”, disse Julia Kristeva. O escritor fala abundantemente de si e dos seus familiares: os que com ele vivem, os que ficaram na Ilha (a qual se lhe “reverteu em pedra alojada na vesícula”) e os que se encontram emigrados.

Aliás, a (numerosa) família de Cristóvão Aguiar possui uma “tradição embarcadiça”, movimentando-se por espaços dos Açores, do Continente português e das Américas. Ao lermos este diário, estamos condenados a entrar na intimidade não só do autor, mas também dos seus familiares – de tal maneira eles se expôem e nos são expostos. Isto faz com que o autor circule num apetecível triângulo amoroso: a Ilha, Coimbra e a América. Vivendo na sua encantada e romântica Coimbra, ele recorda a Ilha namorada (e a “namorada da Ilha”) e escuta as vozes da avó Luz, do avô Anselmo, da mãe (que lhe escreve bonitas cartas) do pai (com quem mantém uma relação nada pacífica), do irmão Francisco e de muitas tias e primas. No dia 9 de Julho de 1979, referindo-se á sua herança sócio-cultural, escreve:

“O romance Raiz Comovida (…) não nasceu do pé para a mão: teve uma longa gestação, praticamente desde que saí da Ilha e comecei a compreendê-la com mais profundidade. Não é em vão que se nasce numa Ilha e se vive nela até aos vinte anos, para depois a deixar para sempre, na pele de um emigrante que sou, filho e neto de embarcadiços. Entre a parca bagagem de estudante, vinha também a minha Ilha, que, a pouco e pouco, se foi entornando para dentro de mim, transfigurando-se. Tinha sido nela que dera os primeiros passos, com muitas topadas (no verdadeiro sentido do termo), fora nela que aprendera, por dentro, o gosto amargo dos dias sujeitos e sem futuro, onde apenas floria a flor da esperança numa mítica América, paraíso atado na bolsa da imaginação e agarrado ao desejo, sempre à mão para qualquer eventualidade.

No início da década de sessenta, Coimbra teve em mim o efeito de um tremor de terra dos mais elevados da escala de Richter. Foi um deslumbramento e uma bebedeira constantes, que me deixaram os miolos em calda de pimenta. O ilhéu-bicho-de-conta que era (e ainda sou) passou num repente a viver num mundo explosivo de sensações novas, que, de tão intensas e variadas, mal conseguiam assento no rústico universo que me deixaram em herança” (… p. )

Relação de bordo vale também pelos ecos que nos dá da génese dos livros do seu autor, à medida que vão sendo escritos. Ei-lo a questionar o seu próprio acto de escrita (que lhe causa angústia), a registar o “feed back” dos seus romances junto dos críticos e dos leitores. De resto, ele deixa-nos, neste diário, um perfil que se casa perfeitamente com o que se surpreende nos seus romances.

Por outro lado, este livro é um animado filme mostrando cenas da vida vivida entre 1964 e 1988. Surpreendemos o autor (com o seu “feitio eriçado”) enredado em frustrações, amores mal sucedidos e súbitas paixões impossíveis… Aluno da Faculdade de Letras de Coimbra, vive atormentado com os estudos e alimenta a vaga ideia de vir a ser escritor. O seu primeiro livro de poesia, Mãos Vazias, não é bem recebido pela crítica… A tropa chama-o. Feita a recruta, parte para a Guiné. Temendo a morte em combate, pede à mulher que venha ter com ele – para lhe fazer um filho e, assim, deixar descendência… E é na qualidade de combatente da Guerra Colonial que escreve páginas magistrais dando conta dos angustiados e angustiantes dias de guerra:
“… E eis-me aqui, diante de mim, nu, andrajoso, suplicante, a alma enregelada e crucificada na cruz destes dias sem nome. Nos olhos, uma fornalha de fúria e uma fome antiga não sei em que víscera, essa fome de séculos que é já grito milenário de todas as bocas em mim. Eis-me, pois, aqui, disparando bombas de palavras ao concentrado silêncio da noite. Eis-me aqui, tentando pescar estrelas no poço aberto do firmamento. Eis-me aqui, indefeso e nu, interrogando não sei que morto que vive numa parte de mim… Em frente de mim, nu e com o frio de todos os pólos, interrogo-me como se fosse réu e juiz ao mesmo tempo. E as palavras que ouço vêm da minha voz antiga, saída do mais fundo de mim, carregada de pedras e de cardos, que grita e se contorce, morre e ressuscita, e continuo, indefeso e nu, aqui em frente de mim…” (p. )

Este autor é mais prosador que poeta. No entanto, em Relação de bordo, exprime-se, aqui e ali, em poesia: de realçar os admiráveis sonetos O visionário e Alma dolente, bem como esse notável poema que dá pelo nome de Sentimento de um ilhéu encalhado na praia.

Numa prosa nervosa e viva, Cristóvão de Aguiar comenta livremente e sem rebuços acontecimentos que marcaram os anos 60: dá conta da morte de Nikita Krutschov, manifesta-se contra as guerras do Vietname e do Ultramar; testemunha o impacto causado pela publicação do livro Praça da Canção, de Manuel Alegre; critica a apreensão, levada a cabo pela PIDE, da Antologia da Poesia Erótica e Satírica, de Natália Correia; entusiasma-se com o primeiro homem a caminhar sobre a lua; assiste, com sentido crítico e irónico, à queda de Salazar; desconfia de Marcelo Caetano; denuncia o regime, os vícios e os ridículos da sociedade.
Depois vem o 25 de Abril de 1974, em que a revolução e a poesia andaram de mãos dadas na rua… Cristóvão de Aguiar descreve, com grande perspicácia, o impacto dessa revolução por todo o país, o derrube do antigo regime, a rendição da PIDE, os primeiros vagidos da democracia, a celebração do 1º de Maio…Atento e vigilante, reage criticamente à imprensa reaccionária (a do Continente, a das ilhas e a da diáspora), denuncia os movimentos separatistas dos Açores e da Madeira e lança golpes certeiros à “insular bazófia”… Aos microfones do Emissor Regional de Coimbra, vai relatando cenas da vida social, política e familiar. Ainda e sempre, vai reagindo, pela escrita, a um quotidiano cheio de “tão belas contradições”…

Regressa frequentemente à ilha (há em Cristóvão de Aguiar um permanente desejo de a ela voltar), onde reencontra as raizes e revisita toda a geografia sentimental e humana ligada à memória da infância, seu paraíso perdido. Impressiona-se com a riqueza vocabular das suas gentes e regista: alpardusco (lusco-fusco), garetos (biscates), batacum (escorregadela), fiminha (fêmea), etc. Delicia-se a ouvir o Ti José da Costa a dizer, em Coimbra: “Estou-me consolando a apreciar lindeza tamanha”.
O escritor efectua várias viagens aos Estados Unidos da América e fica impressionado com as contradições americanas. Ali vai encontrar “a mais requintada libertinagem” a par do “mais conservador puritanismo”. Desperta-o o “imigrês” e a aculturação dos emigrantes (tema que viria a desenvolver em Passageiro em trânsito). E é assaltado por preocupações de cariz universal.
“E se mudássemos de planeta ? O nosso já deu o que tinha a dar” (p. )
Neste autor está vivo o interesse vital da experiência humana, tanto como o interesse intelectual pelas criações do espírito.

Prossigamos a nossa viagem pelo diário. Cristóvão de Aguiar é agora pai de três filhos (José Manuel, Artur João e Luís Francisco), marido afectuoso e cidadão responsável. Fala apaixonadamente do seu grande mestre Paulo Quintela, com quem privou de perto e de quem nos traça um retrato admirável. Aliás, convirá recordar que Cristóvão de Aguiar é autor de um trabalho (de “nótulas biográficas”) de referência intitulado Com Paulo Quintela à Mesa da Tertúlia (1986).

Recorda também outras grandes referências na sua vida: Miguel Torga, Joaquim Namorado, Fernando Namora, Luís Albuquerque e Mário Braga. Com igual paixão fala dos seus amigos do Liceu e dos seus “companheiros de República e da Guerra”: Antero Dias, Medeiros Ferreira, Viriato Madeira, Jorge Ormonde de Aguiar, Weber Mendonça, José Noronha Bretão (de quem nos dá inesquecível testemunho), entre outros. E dá conta de pessoas com quem convive(u) e que se lhe atravessaram na vida: Vitorino Nemésio, Aurélio Quintanilha, Natália Correia, Fernando Assis Pacheco, Baptista Bastos, Almeida Pavão, Dias de Melo, Manuel Ferreira, Pedro da Silveira, Rui Alarcão, Jaime Gralheiro, Louzã Henriques, Linhares Furtado, Fernandes Martins, Carlos Moreira, Zeferino Coelho, Vital Ferrão, Teixeira Ribeiro, Álamo Oliveira, João Afonso, João de Melo, Luís Fagundes Duarte, Marcolino Candeias, Vasco Pereira da Costa, Onésimo Teotónio de Almeida, Duarte e Ciríaco (o duo que popularizou o poema de Cristóvão de Aguiar intitulado Naufrágio, escrito a partir da melodia da canção tradicional terceirense Charamba), etc.
Enfim, ao longo desta Relação de bordo – “o caderno das minhas contas correntes” –, Cristóvão de Aguiar vai (d)escrevendo acontecimentos que marcaram uma época (a par do interesse literário, há, nesta obra, uma importância sociológica que convirá não perder de vista). Por outro lado, através de uma escrita acutilante, contemplativa, impressionista, terna e rebarbativa, o autor vai exercendo alguma catarse relativamente às minudências da vida: as arrelias domésticas, as preocupações quotidianas, familiares e sociais e as muitas dúvidas que o assaltam. E tudo isto nos é dado de forma sincera e sentida, com mágoa e alegria, com amargura e esperança. Mas sempre com uma visão crítica e muito lúcida.
Em Relação de bordo, Cristóvão de Aguiar escreve a falar. Com grande poder evocativo e boa capacidade expressiva. E lançando sobre as coisas do mundo um olhar profundamente humano e universal, ele que encontrou a salvação nas palavras e através da escrita.

Victor Rui Dores

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006