domingo, 13 de junho de 2010

Um Livro por Semana LXXVIII. Relação de bordo, de Cristóvão de Aguiar. Faial Online, por Victor Rui Dores.


Um Livro por Semana LXXVIII

13 de Junho de 2010

Relação de bordo, de Cristóvão de Aguiar

ou a memória vasculhada
“Viajo por dentro de mim e chego sempre à Ilha onde Ela ficou.”

Homem inquieto e irrequieto, escritor telúrico e intempestivo, observador infatigável e dotado de discernimento crítico, Cristóvão de Aguiar escreve com os olhos da memória.

A sua trilogia romanesca Raiz Comovida – A semente e a seiva (1978), Vindima de Fogo (1979) e O fruto e o sonho (1981) – é a prova disso mesmo: ali se dá conta da memória da infância açoriana, no microcosmo da Tronqueira, com gente de grande riqueza psicológica e funda expressão humana, de que são exemplos a avó Luzia, o avô José dos Reis, o Ti José Pascoal entre muitas outras personagens que falam com sotaque micaelense, sendo o(s) livro(s) servido(s) por uma escrita que mergulha fundo no húmus do discurso popular e vernáculo. (Recorde-se a propósito que, em 1987, Raiz Comovida foi publicado pela Editorial Caminho, em edição revista e remodelada num só volume).

Todas as obras de Cristóvão de Aguiar são atravessadas pela memória do vivido e do sentido. Há efectivamente uma memória que escreve este autor, quer na sua poesia – Mãos vazias (1965), O Pão da palavra (1977), Sonetos de Amor Ilhéu (1992) –, quer na ficção narrativa, sendo nesta última que este escritor tem dado melhor conta de si.

Cristóvão de Aguiar é, acima de tudo, um romancista. Para além da já referida Raiz Comovida (sem dúvida a sua obra emblemática), escreveu outros livros, cujos géneros literários ele vai classificando de forma criativa e da seguinte maneira: Ciclone de Setembro (1985), “romance ou o que lhe queiram chamar”; Passageiro em trânsito (edições de 1988 e 1994), “novela em espiral ou o romance de um ponto a que se vai acrescentando sempre mais um conto”; O braço tatuado (1990), “narrativa militar aplicada”; Um grito em chamas (1995), “polifonia romanesca”; e, agora, Relação de bordo (1999), “diário ou nem tanto ou talvez muito mais”.
Há três grandes vectores que atravessam toda a obra de Cristóvão de Aguiar: a memória insular, a emigração e a guerra colonial.

Para melhor conhecer este autor e a sua escrita, convirá aqui avançar com alguns dados biográficos.

Luís Cristóvão Dias de Aguiar nasceu no dia 8 de Setembro de 1940, na freguesia do Pico da Pedra, ilha de S. Miguel, e aí viveu até aos 20 anos de idade. Cresceu num ambiente familiar completo de avós, tios, primos e vizinhos. Deles ouviu histórias que lhe regalavam a imaginação nos serões de Inverno. A oralidade exerceu sobre ele uma influência decisiva: neto e sobrinho de poetas repentistas, o avô era tanoeiro, o pai serralheiro e a mãe era dada às poesias – com todo este “pecúlio afectivo e humano” estava destinado a ser escritor.

Concluídos os estudos liceais em Ponta Delgada, no Liceu Antero de Quental (onde foi aluno de Armando Côrtes-Rodrigues e Ruy Galvão de Carvalho), Cristóvão de Aguiar embarcou para o continente, em Outubro de 1960, “com duas malas cheias de roupa e de muitas ilusões”, conforme nos relata em Relação de bordo.
“A ilha foi comigo e comigo permaneceu até hoje, como companheira fiel. Foi então que a compreendi! A distância traz-nos a nitidez das coisas e das pessoas”. (p.

Estudante em Coimbra, sofre “fortes abalos sísmicos afectivos”, anda transviado pelos caminhos da vida e da literatura e vive a agitação cultural que eclode nos anos 60. Interrompe os estudos por causa da tropa. Faz a recruta em Mafra e, depois, parte para a Guiné, onde viverá, durante quase dois anos, a “patriótica estopada”, isto é, a dolorosa experiência da Guerra Colonial. Dessa guerra e dos retroactivos da sua memória, dão conta os livros Ciclone de Setembro e O braço tatuado.

Regressado da Guiné, fixa residência em Coimbra, em cuja Faculdade de Letras conclui a licenciatura em Germânicas, desenvolvendo depois actividade como professor e tradutor. Pai de três filhos, entrega-se à “lavoura das palavras” e vive a dúvida e a inquietação da escrita. Escreve ele na sua Relação de bordo:
“E quanto mais leio o que escrevi, mais insegurança sinto”. (p. )
Em 1978 dá à estampa Raiz Comovida, que viria a receber, nesse mesmo ano, o Prémio Ricardo Malheiros e a merecer, três anos mais tarde, uma crítica elogiosa do temível e temido João Gaspar Simões, no jornal “Diário de Notícias” (2 de Abril de 1981), que ficou deslumbrado com o “pitoresco léxico” da obra.

Aquele exigente crítico, referindo-se à originalidade linguística e à técnica narrativa de Raiz Comovida, nomeadamente à assimilação de uma linguagem estritamente popular, ambientada no espaço geo-social micaelense, escreve que Cristóvão de Aguiar “é ágil e forte na linguagem” e considera-o “mestre na invenção de ambientes”.
Outros reputados críticos e escritores acolhem Raiz Comovida da melhor forma, entre os quais se destaca Urbano Tavares Rodrigues, Fernando Namora, José Manuel Mendes, João de Melo e Vasco Pereira da Costa.
É chegada agora a altura de lançar alguns olhares ao livro Relação de bordo (Campo das Letras, 1999), dário que Cristóvão de Aguiar escreveu entre os anos de 1964 e 1988. O autor deixa aqui a marca do seu indiscutível talento literário, demonstrando (à semelhança de Samuel Pepys, Jonathan Swift, William Byrd, ou, no caso português, de um Miguel Torga, ou de um Fernando Aires) que a escrita diarística não é um género menor.
Relação de bordo é uma obra importante, por três razões maiores. Em primeiro lugar, porque nos informa sobre as ideias, as opiniões e as reacções de Cristóvão de Aguiar sobre as coisas, os acontecimentos e as pessoas de um tempo e de um lugar. Em segundo lugar, porque espalha alguma luz sobre aspectos relacionados com alguns eventos que marcaram este país, contribuindo, assim, para que fiquemos a fazer uma ideia mais pormenorizada e, por isso mesmo, mais rica e mais perfeita do período em apreço. Em terceiro lugar, porque nos pôe em contacto com o estilo do autor, levando-nos a surpreendê-lo em estado puro e nascente, tal e qual ele surge no movimento despreocupado de quem não pensa na futura publicação.

Por conseguinte, este livro vem contribuir para que o nosso conhecimento de Cristóvão de Aguiar – do homem, do seu estilo e de uma época específica – seja mais amplo e mais completo.

De resto, o diário é um dos meios privilegiados de revelação das personalidades. A obra destinada à publicação e à publicidade rodeia-se de precauções para que não se corra o risco de se dizer mais do que se deseja. No diário (registo íntimo de pensamentos, atitudes, observações e experiências do escritor) é-se mais verdadeiro, no sentido de que se é mais natural e mais sincero.

Em Relação de bordo, autor e narrador são entidades coincidentes. Cristóvão de Aguiar deixa neste diário olhares inesperados e originais sobre os homens, as coisas e os acontecimentos, fazendo um ajuste de contas consigo próprio (por vezes o eu do texto dá lugar a um tu judicioso e imperativo – a voz da sua consciência ?), com os outros e com o mundo. “Escrever é escrever-se”, disse Julia Kristeva. O escritor fala abundantemente de si e dos seus familiares: os que com ele vivem, os que ficaram na Ilha (a qual se lhe “reverteu em pedra alojada na vesícula”) e os que se encontram emigrados.

Aliás, a (numerosa) família de Cristóvão Aguiar possui uma “tradição embarcadiça”, movimentando-se por espaços dos Açores, do Continente português e das Américas. Ao lermos este diário, estamos condenados a entrar na intimidade não só do autor, mas também dos seus familiares – de tal maneira eles se expôem e nos são expostos. Isto faz com que o autor circule num apetecível triângulo amoroso: a Ilha, Coimbra e a América. Vivendo na sua encantada e romântica Coimbra, ele recorda a Ilha namorada (e a “namorada da Ilha”) e escuta as vozes da avó Luz, do avô Anselmo, da mãe (que lhe escreve bonitas cartas) do pai (com quem mantém uma relação nada pacífica), do irmão Francisco e de muitas tias e primas. No dia 9 de Julho de 1979, referindo-se á sua herança sócio-cultural, escreve:

“O romance Raiz Comovida (…) não nasceu do pé para a mão: teve uma longa gestação, praticamente desde que saí da Ilha e comecei a compreendê-la com mais profundidade. Não é em vão que se nasce numa Ilha e se vive nela até aos vinte anos, para depois a deixar para sempre, na pele de um emigrante que sou, filho e neto de embarcadiços. Entre a parca bagagem de estudante, vinha também a minha Ilha, que, a pouco e pouco, se foi entornando para dentro de mim, transfigurando-se. Tinha sido nela que dera os primeiros passos, com muitas topadas (no verdadeiro sentido do termo), fora nela que aprendera, por dentro, o gosto amargo dos dias sujeitos e sem futuro, onde apenas floria a flor da esperança numa mítica América, paraíso atado na bolsa da imaginação e agarrado ao desejo, sempre à mão para qualquer eventualidade.

No início da década de sessenta, Coimbra teve em mim o efeito de um tremor de terra dos mais elevados da escala de Richter. Foi um deslumbramento e uma bebedeira constantes, que me deixaram os miolos em calda de pimenta. O ilhéu-bicho-de-conta que era (e ainda sou) passou num repente a viver num mundo explosivo de sensações novas, que, de tão intensas e variadas, mal conseguiam assento no rústico universo que me deixaram em herança” (… p. )

Relação de bordo vale também pelos ecos que nos dá da génese dos livros do seu autor, à medida que vão sendo escritos. Ei-lo a questionar o seu próprio acto de escrita (que lhe causa angústia), a registar o “feed back” dos seus romances junto dos críticos e dos leitores. De resto, ele deixa-nos, neste diário, um perfil que se casa perfeitamente com o que se surpreende nos seus romances.

Por outro lado, este livro é um animado filme mostrando cenas da vida vivida entre 1964 e 1988. Surpreendemos o autor (com o seu “feitio eriçado”) enredado em frustrações, amores mal sucedidos e súbitas paixões impossíveis… Aluno da Faculdade de Letras de Coimbra, vive atormentado com os estudos e alimenta a vaga ideia de vir a ser escritor. O seu primeiro livro de poesia, Mãos Vazias, não é bem recebido pela crítica… A tropa chama-o. Feita a recruta, parte para a Guiné. Temendo a morte em combate, pede à mulher que venha ter com ele – para lhe fazer um filho e, assim, deixar descendência… E é na qualidade de combatente da Guerra Colonial que escreve páginas magistrais dando conta dos angustiados e angustiantes dias de guerra:
“… E eis-me aqui, diante de mim, nu, andrajoso, suplicante, a alma enregelada e crucificada na cruz destes dias sem nome. Nos olhos, uma fornalha de fúria e uma fome antiga não sei em que víscera, essa fome de séculos que é já grito milenário de todas as bocas em mim. Eis-me, pois, aqui, disparando bombas de palavras ao concentrado silêncio da noite. Eis-me aqui, tentando pescar estrelas no poço aberto do firmamento. Eis-me aqui, indefeso e nu, interrogando não sei que morto que vive numa parte de mim… Em frente de mim, nu e com o frio de todos os pólos, interrogo-me como se fosse réu e juiz ao mesmo tempo. E as palavras que ouço vêm da minha voz antiga, saída do mais fundo de mim, carregada de pedras e de cardos, que grita e se contorce, morre e ressuscita, e continuo, indefeso e nu, aqui em frente de mim…” (p. )

Este autor é mais prosador que poeta. No entanto, em Relação de bordo, exprime-se, aqui e ali, em poesia: de realçar os admiráveis sonetos O visionário e Alma dolente, bem como esse notável poema que dá pelo nome de Sentimento de um ilhéu encalhado na praia.

Numa prosa nervosa e viva, Cristóvão de Aguiar comenta livremente e sem rebuços acontecimentos que marcaram os anos 60: dá conta da morte de Nikita Krutschov, manifesta-se contra as guerras do Vietname e do Ultramar; testemunha o impacto causado pela publicação do livro Praça da Canção, de Manuel Alegre; critica a apreensão, levada a cabo pela PIDE, da Antologia da Poesia Erótica e Satírica, de Natália Correia; entusiasma-se com o primeiro homem a caminhar sobre a lua; assiste, com sentido crítico e irónico, à queda de Salazar; desconfia de Marcelo Caetano; denuncia o regime, os vícios e os ridículos da sociedade.
Depois vem o 25 de Abril de 1974, em que a revolução e a poesia andaram de mãos dadas na rua… Cristóvão de Aguiar descreve, com grande perspicácia, o impacto dessa revolução por todo o país, o derrube do antigo regime, a rendição da PIDE, os primeiros vagidos da democracia, a celebração do 1º de Maio…Atento e vigilante, reage criticamente à imprensa reaccionária (a do Continente, a das ilhas e a da diáspora), denuncia os movimentos separatistas dos Açores e da Madeira e lança golpes certeiros à “insular bazófia”… Aos microfones do Emissor Regional de Coimbra, vai relatando cenas da vida social, política e familiar. Ainda e sempre, vai reagindo, pela escrita, a um quotidiano cheio de “tão belas contradições”…

Regressa frequentemente à ilha (há em Cristóvão de Aguiar um permanente desejo de a ela voltar), onde reencontra as raizes e revisita toda a geografia sentimental e humana ligada à memória da infância, seu paraíso perdido. Impressiona-se com a riqueza vocabular das suas gentes e regista: alpardusco (lusco-fusco), garetos (biscates), batacum (escorregadela), fiminha (fêmea), etc. Delicia-se a ouvir o Ti José da Costa a dizer, em Coimbra: “Estou-me consolando a apreciar lindeza tamanha”.
O escritor efectua várias viagens aos Estados Unidos da América e fica impressionado com as contradições americanas. Ali vai encontrar “a mais requintada libertinagem” a par do “mais conservador puritanismo”. Desperta-o o “imigrês” e a aculturação dos emigrantes (tema que viria a desenvolver em Passageiro em trânsito). E é assaltado por preocupações de cariz universal.
“E se mudássemos de planeta ? O nosso já deu o que tinha a dar” (p. )
Neste autor está vivo o interesse vital da experiência humana, tanto como o interesse intelectual pelas criações do espírito.

Prossigamos a nossa viagem pelo diário. Cristóvão de Aguiar é agora pai de três filhos (José Manuel, Artur João e Luís Francisco), marido afectuoso e cidadão responsável. Fala apaixonadamente do seu grande mestre Paulo Quintela, com quem privou de perto e de quem nos traça um retrato admirável. Aliás, convirá recordar que Cristóvão de Aguiar é autor de um trabalho (de “nótulas biográficas”) de referência intitulado Com Paulo Quintela à Mesa da Tertúlia (1986).

Recorda também outras grandes referências na sua vida: Miguel Torga, Joaquim Namorado, Fernando Namora, Luís Albuquerque e Mário Braga. Com igual paixão fala dos seus amigos do Liceu e dos seus “companheiros de República e da Guerra”: Antero Dias, Medeiros Ferreira, Viriato Madeira, Jorge Ormonde de Aguiar, Weber Mendonça, José Noronha Bretão (de quem nos dá inesquecível testemunho), entre outros. E dá conta de pessoas com quem convive(u) e que se lhe atravessaram na vida: Vitorino Nemésio, Aurélio Quintanilha, Natália Correia, Fernando Assis Pacheco, Baptista Bastos, Almeida Pavão, Dias de Melo, Manuel Ferreira, Pedro da Silveira, Rui Alarcão, Jaime Gralheiro, Louzã Henriques, Linhares Furtado, Fernandes Martins, Carlos Moreira, Zeferino Coelho, Vital Ferrão, Teixeira Ribeiro, Álamo Oliveira, João Afonso, João de Melo, Luís Fagundes Duarte, Marcolino Candeias, Vasco Pereira da Costa, Onésimo Teotónio de Almeida, Duarte e Ciríaco (o duo que popularizou o poema de Cristóvão de Aguiar intitulado Naufrágio, escrito a partir da melodia da canção tradicional terceirense Charamba), etc.
Enfim, ao longo desta Relação de bordo – “o caderno das minhas contas correntes” –, Cristóvão de Aguiar vai (d)escrevendo acontecimentos que marcaram uma época (a par do interesse literário, há, nesta obra, uma importância sociológica que convirá não perder de vista). Por outro lado, através de uma escrita acutilante, contemplativa, impressionista, terna e rebarbativa, o autor vai exercendo alguma catarse relativamente às minudências da vida: as arrelias domésticas, as preocupações quotidianas, familiares e sociais e as muitas dúvidas que o assaltam. E tudo isto nos é dado de forma sincera e sentida, com mágoa e alegria, com amargura e esperança. Mas sempre com uma visão crítica e muito lúcida.
Em Relação de bordo, Cristóvão de Aguiar escreve a falar. Com grande poder evocativo e boa capacidade expressiva. E lançando sobre as coisas do mundo um olhar profundamente humano e universal, ele que encontrou a salvação nas palavras e através da escrita.

Victor Rui Dores

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Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006