sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Cães Letrados, ou a fusão dos afectos, recensão crítica de Victor Rui Dores.

“Minha pobre Pantera, que tão cedo deste mundo cão te vais apartar.”
(pág. 138)

Em permanente desassossego criativo, Cristóvão de Aguiar andou, mais uma vez, pelo sótão da memória a mexer em penumbras empoeiradas…
Isto significa que, com mais um livro publicado, este autor continua a arrumar, nas páginas que escreve, os sonhos da infância.
Falar de Cristóvão de Aguiar é falar de uma reinvenção constante e de uma contínua e continuada necessidade de expressão literária. Ao (re)escrever os seus livros, ele carrega consigo a ilha perdida e mitificada, num diálogo que, partindo dos Açores, atravessa a história de Portugal da segunda metade do século XX até aos nossos dias, e busca espaços do universal.
Este açoriano escreve com mestria narrativa e imaginação verbal, num discurso literário que mergulha fundo no húmus da oralidade. De resto toda a sua obra é uma revisitação a lugares, pessoas, memórias, coisas e animais que povoam o seu imaginário.
Em Cães Letrados (2008, Calendário, geral@calendario.pt), Cristóvão de Aguiar lança olhares sobre cães e cadelas que foram “os inseparáveis e afectuosos companheiros da minha infância e juventude” (pág. 10). Os textos que compõem a obra foram extraídos, com ligeiras alterações, de vários livros seus onde as histórias sobre os referidos canídeos se encontram.
Com expressivos desenhos da autoria de André Caetano, Cães Letrados desperta em nós uma imediata adesão afectiva. E isto porque o autor humaniza os cães, emprestando-lhes sentimentos, emoções e estados de alma, dotando-os de grande lucidez e fascínio. Nesta matéria, aprendeu, e bem, a lição de Miguel Torga na referência incontornável que é esse clássico da literatura portuguesa que dá pelo título de Bichos (1940).
Mais do que cães e cadelas, mais do que companheiros fiéis, amigos e protectores, a Girafa, o Alex, a Monalisa, o Adónis, o Isquininho, a Tina, o Ligeiro, a Regina, o Schwarz, a Ísis, o Valente, a Pantera a Petruska, o Polícia, a Andorinha, entre outros, são personagens que sentem e agem como se de humanos se tratassem. Inevitavelmente o leitor tornar-se-á cúmplice deles e das suas aventuras e desventuras. Neste último caso, o atropelamento na via pública é um perigo que, a cada momento, espreita esses animais.
Os homens (pela voz e experiência do narrador) compartilham com os cães o grande valor da amizade – e a amizade é, aqui, a lição essencial da vida –, estando uns e outros irmanados na luta pela sobrevivência e a contas com as perplexidades, as inquietações, as vicissitudes e os dramas do dia a dia. A natureza instintiva de uns é a natureza instintiva de outros. E, para todos, o mistério da vida reside como a questão maior.
(Há também a considerar o papel simbólico do cão e, a propósito, convirá lembrar que uma das primeiras citações sobre cães na literatura nos remete para a Odisseia, de Homero, quando Ulisses, após longo exílio e diversas aventuras, regressa à ilha de Ítaca disfarçado de mendigo e é reconhecido apenas por Argos, o seu cão já velho e sem forças para qualquer acção além de abanar o rabo ao reencontrar o dono. Ulisses então chora…).
Tal como no mundo dos humanos, também na canidade há hierarquias e estratificações sociais. Os cães também são vítimas de injustiças, sejam eles dobermann, setter, pastor alemão, husky, ou um simples rafeiro. Há cães de “vocação aristocrática” (pág. 93) e que têm “casa, cama, mesa e pêlo esfregado” (pág. 61) e há “a cachorrada vadia e plebeia” (pág. 85); há os que são rafeiros e os que vivem “abarrotando de pedigree” (pág. 113); há os que recebem “a costumada ração de meiguice e afagos” (pág. 136) e os que fogem à rede da brigada camarária, ou pura e simplesmente são abatidos no canil municipal… Há o cão vadio da rua e há “o cãozinho pekinois de luxo de fidedigna linhagem” (pág. 160). Uns são órfãos, outros mimados…
Mas, em Cristóvão de Aguiar, os caninos nunca deixam de ter grandeza e verticalidade, possuem até comportamentos de gente… Como esquecer, por exemplo, a descrição (ia escrever cena) comovente e comovida em que o Alex, na véspera de morrer atropelado, se deita ao lado do dono, no sofá da sala, e o beija sofregamente como que a adivinhar a sua morte prematura?... E como não recordar, para sempre, a Andorinha a parir seis cachorros, em pleno palco de Guerra Colonial?
Por conseguinte, a força de Cães Letrados está precisamente nessa afeição canídea, isto é, na humanidade e na fraternidade partilhadas.
Mas há uma excepção que o autor, não inocentemente, reserva aos “Cães universitários”, numa das mais bem conseguidas narrativas do livro. Com efeito, os cães das Faculdades de Letras, Direito, Medicina e Ciências e Tecnologia não são amoráveis nem íntegros… A carga semântica de “canzoada” diz tudo. (“Cão que ladra não morde”. Enquanto ladra…).
Esta é uma das facetas mais aliciantes da arte verbal de Cristóvão de Aguiar: a perspicácia da ironia. Neste autor a ironia não é um dom – é um dado.
Numa prosa de afectos, rica de espessura evocativa e profundamente humana, e num registo que varia entre a narrativa, o conto e a crónica memorialista, Cães Letrados é um livro simples, honesto e sentido. Escrito com os olhos da memória.

Horta, 17 de Dezembro de 2008

Victor Rui Dores
Escritor

2 comentários:

Anónimo disse...

Já vi este livro à venda em Angola.
Só não tinha reparado que era do escritor Cristóvão de Aguiar.

Moura ao Luar disse...

Acredito que os cães têm sentimentos, podem ser dedicados de uma forma tão ternurenta que se torna complicado explicar, tenho um exemplo cá em casa. Beijos e boas festas

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006