sexta-feira, 26 de março de 2010

Túneis para ligar as ilhas ou metro de superfície… in Expresso das Nove 20 anos.

CRISTÓVÃO DE AGUIAR

Escritor
“Como nada sei sobre o assunto proposto, vou fazer uma composição sobre a Primavera”. Aluno liceal numa prova escrita de Língua Portuguesa

Muito gosto eu de desafios! Quem me tira um tira-me o mar e tudo! Não sei se o Arquipélago gosta deles. É natural que sim. Pelo menos, as cantigas ao desafio têm sido timbre de qualidade da cultura popular das Ilhas todas. A Terceira e São Miguel levam-lhes as lampas.

O velho Virgínio da Bretanha; o Pereira, da antiga Lomba de Santa Bárbara, da Ribeira Grande; a Turlu e o José da Lata, da Terceira, foram dos melhores cultores do despique entoado no terreiro das cantigas ou nas cantigas de terreiro. Devo ter deixado dezenas e dezenas na sombra… A omissão é filha legítima da minha ignorância. Para ela, peço uma indulgência plenária...

Sai o primeiro cantador, o Virgínio, e entoa: “Entre merda foste nascido /E na merda foste gerado /Muita merda tens comido /E dela toda tens gostado…” E o Pereira, da Lomba de Santa Bárbara: “Ainda me chamas galo, /Desses que andam pela rua /Já me viste a cavalo /Nalguma galinha tua?” Da Turlu, que, in illo tempore, ouvi despicar, boquiaberto, tamanho o aguçamento de língua e o seu poder criativo, estas duas cantigas: “A felicidade vagueia, /Fumo que passa veloz, /Está sempre na nossa ideia /E tão distante de nós…” e “A minha língua é comprida, /O que diz não te convém…/ E a tua está torcida /Por isso não fala bem…” A seguir, entra José da Lata e canta: “Deitei uma velha em choco, /Dentro de um cesto de palha, /Lá na Canada das Vinhas. //Descascou-me vinte ratas, /Cinquenta e duas patas /E trinta e cinco doninhas. //Tinha pombas e coelhos, /Melros pretos e tintilhões, /Uma porca com cabritos /E uma cabra com leitões.”

Quando há tempos recebi este desafio, por via electrónica, para ser resolvido por escrito, em três mil caracteres, sem espaços – logo me ocorreu Frei João Sem Cuidados… O seu Rei era invejoso e não podia ver nenhum dos seus Súbditos sem arrelias e apoquentações. Chamou um dia Frei João ao palácio e fez-lhe três perguntas embaraçosas para serem respondidas num dado prazo. O frade saiu do palácio real acabrunhado e cabisbaixo. Se respondesse errado, o Rei mandava-o matar… Por acaso, o moleiro do reino encontrou Frei João muito triste. Vivo e fino como azougue, logo se prontificou, depois de saber as perguntas, a apresentar-se ao Rei vestido com o hábito de Frei João. Respondeu às três perguntas como era dado, de tal sorte que Sua Majestade ficou toda contente e mandou o moleiro na paz do Senhor! Com que se entretinham os Reis de algum tempo!

Ora, este humilde escriba acocorado não tem moleiro para quem apelar! Nem moleiros existem já – os últimos que conheci iam da freguesia para a Ribeira Grande moer a moenda nos moinhos de água da ribeira, já não sei se a do Paraíso se a do Inferno… Três vezes por semana, com cães velhos e doentes amarrados ao eixo da carroça para serem lançados à Tarpeia ribeiragrandense… Caso os houvesse ainda, qual deles seria capaz de responder direito a um século pejadinho de desafios? É muito desafio numa só molhada de brócolos!

Mas há um enorme desafio já proposto às Ilhas do Grupo Central, lançado não há grande tempo pelo eterno candidato à liderança do PSD, Castanheira Barros. Andou em digressão turístico-eleitoral por aquelas Ilhas sem culpa da criatividade do social-democrata relapso. Prometeu mandar construir túneis entre o Pico e São Jorge e entre a Madalena e a Horta. O ovo do Colombo, que resolveria a insularidade de uma assentada. Em estando a obra feita e inaugurada, sempre que um ilhéu radical chegar à porta de casa para interrogar o mar, ficará menente e sem pé dentro de si: em vez de indagar o monstro de água, para ir à pesca ou contemplar a Ilha em frente para lhe sondar os ventos e as nuvens, meter-se-á logo a caminho da emigração, a cavalo no automóvel ou na camionete da carreira… Um Metro de Superfície, como o que está sendo construído em Coimbra, ficaria muito mais em conta, podendo estender-se às Flores-Corvo, à Graciosa-São Jorge-Terceira, que também são filhos e filhas do mesmo magma… Quanto a São Miguel-Santa Maria… Aqui, sim, um túnel tipo Canal da Mancha, mas em formato maior, que os micaelenses são assopradinhos e amantes fidelíssimos da monumentalidade…

Já excedi o número de caracteres. Que o Eduardo Brum se não afromente, me perdoe a incontinência, e aceite os parabéns deste ilhéu desilhado, que muita lenha apanhou nas páginas do ora aniversariante Expresso das Nove… Pois alevá!



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Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006