quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

DOIS HOMENS DE TRÁS-OS-MONTES, Miguel Torga e Paulo Quintela, por Cristóvão de Aguiar.


"Aqui, na cidade de Bragança, coração de Trás-os-Montes, grave delito seria não recordar dois grandes vultos da cultura portuguesa do século XX, Paulo Quintela e Miguel Torga. Outros haveria que realçar como o Abade de Baçal, historiador, etnógrafo, arqueólogo, autor das Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, cujo V volume é o célebre livro, Os Judeus no Distrito de Bragança… E João Araújo Correia, médico na cidade da Régua e um dos grandes Mestres da Língua Portuguesa, que mereceu de Aquilino, outro brilhante cultor da Língua, estas expressivas e legítimas palavras: «Mestre de nós todos há cinquenta anos a lavrar nesta terra ingrata e ímproba seara branca do papel almaço, e somos velhos, gloriosos ou ingloriosos, pouco importa; mestre dos que vieram no intermezzo da arte literáriacom três dimensões para a arte literária sem gramática, sem sintaxe, sem bom senso, sem pés nem cabeça; e mestre para aqueles que terão de libertar-se da acrobacia insustentável e queiram construir obra séria e duradoura». Isto só para mencionar os que desapareceram.
Sem desprimor para os dois vultos transmontanos atrás mencionados, e que de per si mereciam uma conferência inteira, ou mais, só irei debruçar-me, e espero não me despenhar da altura a que ambos se guindaram, sobre a obra e personalidade de outras duas individualidades transmontanas, mais chegadas à minha afeição, com quem durante anos convivi em Coimbra e de quem recebi grandes lições de vida, cultura, humanidade e humanidades: Paulo Quintela, filho desta cidade, onde nasceu em 1905, e Miguel Torga, natural de São Martinho de Anta, o seu lugar de onde e o seu centro do mundo, como tantas vezes escreveu nos seus livros… Paulo Quintela foi um germanista de renome internacional e um dos melhores tradutores das línguas germânicas para a Língua Portuguesa. Dir-se-ia, sem pingo de exagero, que nacionalizou esses poetas e escritores estrangeiros, principalmente alemães, para a Literatura Portuguesa, dela ficando a fazer parte: Rilke, Hölderlin, Goethe, Nietzsche, Hauptmann, Nelly Sachs e tantos outros, incluindo muitos poemas ingleses de Fernando Pessoa, a pedido de Georg Rudolf Lindt, crítico alemão, lusitanista, estudioso e tradutor de Pessoa. E foram esses poetas maiores da Literatura Universal, sobretudo Rilke, que influenciaram alguns poetas portugueses, dos quais destaco Eugénio de Andrade e o próprio Miguel Torga. Como se isto não bastasse, Paulo Quintela, um apaixonado pelo teatro e por Gil Vicente, havia de ressuscitar a sua obra dramatúrgica para as tábuas do palco, até então sepultada na poeira dos compêndios. Excetuavam-se algumas tímidas, fugazes e nem sempre logradas tentativas do Teatro Nacional Dona Maria, que, nos meados dos anos trinta do século XX, o pôs em cena. E terá sido um espetáculo, com excertos da obra de Mestre Gil, uma silva vicentina, representado por essa companhia, em uma noite de Verão, no Pátio da Universidade de Coimbra, que o catapultou para pôr de imediato a obra vicentina em
cima do palco. Escreveu ensaios sobre a obra do maior homem de teatro português, e deu a conhecer aos leitores portugueses as Líricas Castelhanas, de Gil Vicente, publicadas em livro, em meados dos anos sessenta, no Cancioneiro Vértice. Porém, Quintela não se quedou por Gil Vicente: encenou outros grandes dramaturgos; os trágicos gregos: a Medeia, de Eurípedes; a Antígona, de Sófocles; o Prometeu Agrilhoado, de Ésquilo; O Grande Teatro do Mundo, de Calderón de La Barca; Retablillo de don Cristóbal e A Sapateira Prodigiosa, de Frederico García Lorca. Nesta última peça, foi o próprio Quintela quem representou o papel de sapateiro, o principal, porque o ator que o devia interpretar ter comunicado, na véspera da estreia, que não podia comparecer – valia Quintela saber de cor todos os papéis das peças que
encenava; O Tartufo, de Molière, além de alguns portugueses contemporâneos, como Miguel Torga; José Régio e Raul Brandão… Graças ao TEUC (Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra), fundado em 1938, e que se estreou com a Farsa de Inês Pereira, foi possível a Paulo Quintela, seu diretor artístico durante mais de trinta anos, dar a conhecer não só Gil Vicente como todos os dramaturgos atrás referidos, fazendo do TEUC uma verdadeira escola de teatro por onde passaram gerações e gerações de estudantes, que, após a formatura, continuaram a lição do Mestre, organizando grupos de teatro nas locais onde foram exercer a sua profissão.
Como dizia, foi nesta cidade de Bragança que nasceu, em Dezembro de 1905, Paulo Manuel, oitavo rebento de uma prole de dez, sendo o pai pedreiro e a mãe padeira. Aqui se criou, iniciou e concluiu os estudos elementares e liceais, que o haviam de guindar à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde se matriculou no ano letivo de 1922 /1923, ainda com a idade de dezasseis anos. Aluno brilhante, concluiu o curso de Filologia Germânica com distinção, e foi bolseiro da Fundação Humboldt, o que lhe proporcionou viver, estudar e ensinar, em Berlim, durante seis anos. Com a subida de Hitler ao poder, regressou a Coimbra e à sua Faculdade, passando a exercer, durante mais de quarenta anos, o magistério nas Literaturas e Culturas Germânicas. Aqui jaz, no cemitério do “Alto do Sapato”, desde o dia 10 de Março de 1987.
Delito grave seria também deixar em silêncio o nome de Miguel Torga, um dos mais grados escritores de sempre da Literatura Portuguesa e, durante grande parte do percurso da existência, íntimo amigo de Paulo Quintela e seu companheiro de lides e aventuras literárias. Procurarei, nesta minha despretensiosa comunicação, deslindar o que os uniu e depois os separou para sempre, tentando o milagre, sempre possível, de um reatamento de relações post mortem…
Entre ambos existia uma amizade enraizada num acerado amor que consagravam a Trás-os-Montes, o «Reino Maravilhoso», de onde ambos eram oriundos. «Que belo é ter um amigo! Ontem eram ideias contra ideias. Hoje é este fraterno abraço a afirmar que acima das ideias estão os homens. Um sol tépido a iluminar a paisagem de paz  onde esse abraço se deu, forte e repousado. Que belo e natural é ter um amigo!» ─ escreveu Torga, no dia 4 de Fevereiro de 1935, no primeiro volume do Diário, referindo-se a Quintela, que conhecera um ano antes na cama de um hospital em Coimbra.
No Segundo Congresso Transmontano, realizado nas Pedras Salgadas, em Setembro de 1941, ambos participaram com duas conferências. A de Miguel Torga intitulava-se «Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes)»; a de Paulo Quintela, «Um Poeta de Trásos- Montes», Miguel Torga. E era o Poeta: «Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador. Tudo parado e mudo. Apenas se move e se faz ouvir o
coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente rasga a crosta do silêncio uma voz de franqueza desembainhada: «─ Para cá do Marão, mandam o que cá estão!» Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós? Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena: ─ Entre! ─ A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso.»
Por seu turno, Paulo Quintela: «Mas não se nasce impunemente em Trás-os-Montes, no Alentejo ou à beira-mar. Quer dizer que a paisagem, se não é o único fator determinante, é contudo primordial elemento de formação e informação. Se a poesia é no fundo expressão ─ expressão mágica ─ das coisas e dos seres, da Vida, é evidente que essa expressão há de ser em certa medida condicionada pela maneira como esses seres e coisas se nos revelam e nos solicitam, pela luz que os banha, pelo horizonte em que estão implantados, pelo ângulo por que se contemplam. O homem da planície terá uma vivência das coisas e dos homens muito diversa da do montanhês. Horizontes vastos e planos, monótonos, em que as figuras se perdem ou ficam reduzidas a contornos imprecisos, convidam a erguer os olhos e a contemplar o céu. Daqui
─ falo, evidentemente, em termos amplos que admitem toda a sorte de exceção que não abalará aliás a firmeza do princípio ─ (o próprio poeta de que me ocupo poderá por vezes parecer exceção...) ─ daqui, digo, a propensão contemplativa e a necessidade de fuga e libertação mística do homem nado e criado em ambiente destes. Daqui o caráter místico da grande literatura da estepe russa, por exemplo. Mas subamos agora uma montanha. As coisas na encosta que vamos escalando são-nos mais chegadas, mais íntimas, mais nossas, pelo esforço que pusemos em alcançá-las; a luz quebra e reflete de outra maneira nas lombas que nos rodeiam e nos limitam o horizonte; a subida é árdua, mas gostosa; o arcaboiço arfa, bate o coração encostado à fraga ou à árvore, e o arquejar do peito e a pancada do coração do homem da montanha faz-se hálito e pulsar da própria terra-mãe. Chega-se ao cimo. Mas não foi para contemplar o céu que nos aproximámos dele. Sobe-se a um monte para olhar cá para baixo, para dominar a terra que se alarga, se nos revela e nos convida. Foi no alto dum monte que o diabo patenteou a Cristo a sua maior tentação: «De novo o subiu o diabo a um monte muito alto: e lhe mostrou todos os Reinos do Mundo, e a glória deles, e lhe disse: Tudo isto te darei, se prostrado me adorares...» Deus em Cristo resistiu à tentação. Os homens sucumbem à veemência do desejo de posse do Mundo e da sua Beleza. Miguel Torga é, dos poetas portugueses modernos, o que está mais intimamente ligado à sua paisagem, que é a paisagem de Trás-os-Montes.»
Convoco agora o Poeta Manuel Alegre para, com a sua palavra poética, vir em meu auxílio. Na III Parte do seu livro, Coimbra Nunca Vista, intitulada «Abecedário de Coimbra», o poeta de Abril, grande amigo e admirador de ambos, empreende uma apolínea peregrinação afetiva através de individualidades que, em dado momento histórico-cultural, cunharam o caráter da cidade mítica. Nesse «Abecedário», figuram, entre outros, dois poemas dedicados às duas fragas graníticas transmontanas, um com o título de «Miguel Torga No Largo da Portagem»; o outro intitulado «Paulo Quintela». O dedicado ao autor de A Criação do Mundo do reza assim:
Todos os dias o poeta vem ao centro / sobe ao seu consultório e embarca para /dentro. / Diante da folha branca vai de viagem / navega sobre o tempo e nunca para / Há nele o canto de raiz e o verso vagabundo / da sua janela chega à outra margem / e dá a volta ao mundo / no Largo da Portagem.
Sobre Quintela escreve:
Nada sabíamos da língua portuguesa / e então sílaba a sílaba ele ensinou-nos / a música secreta das vogais / a cor das consoantes a ondulação o ritmo / o marulhar das frases e o seu / sabor a sal. / E também como pisar um palco / como falar como calar e sobretudo/ como sair de cena e entrar / no grande teatro deste / mundo. / Porque tudo era proibido e ele nos disse / que tudo pode ser ousado / desde que se aprenda a entrar a tempo / a colocar a voz e a não perder / a alma.
Nestas prodigiosas sínteses poéticas, de uma tão luminosa fundura a que só os príncipes da poesia têm o condão de descer ou de subir, encontra-se delineado um verdadeiro, muito completo e complexo programa de vida estética, intelectual e cívica, que tanto Paulo Quintela como Miguel Torga foram cumprindo enquanto por cá andaram. Nas facetas que no poema se realçam, tornou-se Quintela grande mestre e a sua obra de intelectual e o seu exemplo de cidadão empenhado deram disso testemunho. A poesia e a prosa de autores de «franças e araganças», que, através de traduções exemplares e recriadoras, naturalizou sem qualquer sotaque para português e que ficaram desde logo pertença da Literatura Portuguesa; se tivessem os seus autores cá nascido, seria decerto como ele as traduziu que escreveriam na nossa língua; o teatro vicentino que estudou e amou como ninguém desde os bancos do Liceu de Bragança difundiu e o elevou, depois, para o seu sítio condigno e certo: as tábuas do palco; o cidadão livre que sempre ousou ser, numa pátria contaminada por grandes medos miudinhos por tantas outras toxinas que lhe conspurcaram a atmosfera, não
raro tornando-se, armada ou armadilhada de um pesadume propenso e propício a que certas criaturas se bandeassem, fraquejassem e se perdessem, alma incluída, no céu da sua conversão…
No poema sobre Torga, Manuel Alegre, em palavras sucintas e certeiras, como é timbre dos grandes Poetas, delineia e recria, minuciosamente, o quotidiano do Poeta de Orfeu Rebelde. Era do seu consultório, no Largo da Portagem, que o Poeta, depois de regressar da noite, quase sempre insone, de macerado trabalho poético, em sua casa, zarpava todos os dias para viagens que só ele sabia deslindar. Transcrevo o
poema de abertura do 1.º Diário, 3 de Janeiro de 1932, (Torga iniciava e rematava sempre os seus Diários com um poema), que reflete esse trabalho noturno, noctívago, a que se entregava com a devoção de um crente da poesia que nunca deixou de ser:
Deixem passar quem vai na sua estrada. /Deixem passar / Quem vai cheio de luar. /Deixem passar e não lhe digam nada. // Deixem, que vai apenas / Beber água do Sonho a qualquer fonte; / Ou colher açucenas // A um jardim ali defronte. // Vem da terra de todos onde mora / E onde volta depois de amanhecer. / Deixem-no pois passar, agora // Que vai cheio de noite e solidão. / Que vai ser / Uma estrela no chão.
Vale também a pena transcrever um texto do Diário XII, de Fevereiro de 1977, em que o autor de Orfeu Rebelde revela, genialmente, a maneira como nasce um poema:
Foi durante a noite que escrevi o poema. Acordei inquieto, estremunhado, fiquei numa sonolência lúcida e, aos borbotões, os versos, na imprevisibilidade do minério arrancado às trevas da mina, começaram a surgir à tona do silêncio, alguns já estremados, puros, outros ainda agarrados ao cascalho. Depois, a razão clarificadora acudiu à inspiração tumultuosa, britou, peneirou, lavou, ordenou, e as pepitas ficaram articuladas de tal maneira que acabaram por formar um todo coeso, harmonioso e autónomo. Um texto na sua plenitude existencial, inexpugnável como um dia de sol.
Excitado pela evidência do milagre, que eu próprio mal podia compreender, não consegui mais pegar no sono. Pus-me a recitar cada estrofe, primeiro numa espécie de terror sagrado, a experimentar a segurança do ritmo, a verificar a verdade das rimas, a avaliar a flagrância das imagens. Por fim, confiado, a abaná-las rijamente, e a concluir, desvanecido, que tinha as raízes seguras. E assim tenho passado o dia com elas no ouvido, numa exaltação secreta, estranhamente otimista, menos vulnerável aos empurrões da multidão, feliz sem o dar a entender. É um regozijo íntimo, fundo, como se me encontrasse bafejado por uma graça que não tivesse merecido, nem pedido, nem recebido de ninguém. (8/2/1977, Diário XII)
Paulo Quintela foi o primeiro homem de teatro português que pôs em cena Miguel Torga. Em 1947, o TEUC representava Terra Firme no velho Teatro Avenida, e doze anos mais tarde, no mesmo local, o CITAC, que convidou expressamente Quintela para encenar uma peça de Miguel Torga, representava o poema dramático O Mar, integrado no seu I Ciclo de Teatro. A partir daí os destinos destes dois homens altivos, como duas vertentes de um Marão de carne e osso, separam-se para o resto da vida. E foi pena. Nunca soube deslindar as razões por que se deu tal rutura, nem talvez as houvesse bem definidas. Seriam fortes razões do coração, atrevo-me até a dizer de um grande amor ferido. No fundo, admiravam-se mutuamente, e outra coisa não seria de esperar de homens de tamanha envergadura. Eu próprio posso disso dar testemunho.
Paulo Quintela continua no seu labor de traduzir autores alemães, ingleses e franceses como Brecht, Nelly Sachs, Hauptmann, Nietzsche, Goethe, Kant, Ben Johnson, Molière e prossegue no TEUC durante cerca de mais dez anos, encenando Gil Vicente, Molière, autores gregos, como Eurípedes e Sófocles, e modernos como Garcia Lorca e José Régio. Miguel Torga havia ainda de publicar dois livros de poesia, Câmara Ardente e Poemas Ibéricos, três de prosa, o quinto e o sexto dias da Criação do Mundo e nove volumes do Diário. Paulo Quintela é o primeiro a sair de cena. No dia 9 de Março de 1987. Na véspera, domingo à noite, estivera a ver um programa televisivo intitulado Eu, Miguel Torga, documentário sobre o autor da Criação do Mundo. Acabado o programa, foi-se deitar e não mais acordou. Premonitório, não acham? Eu tinha estado com ele na sexta-feira anterior. E havia prometido levar-lhe na sexta seguinte o Diário XIV, acabado de sair, do qual lhe falara com entusiasmo durante a nossa última conversa de sexta-feira, 6 de Março de 1987. À despedida, no alto da escada, ainda me preveniu: «Não te esqueças de me trazer o diário do Torga...»
Miguel Torga viria a morrer cerca de oito anos mais tarde, em 17 de Janeiro de 1995.
No seu penúltimo diário, o XV, pode ler-se, na entrada com data de 9 de Março de 1987, dia da morte de Paulo Quintela: «A morte é uma grande reconciliadora. Não há desavença que lhe resista. O seu grande manto de equanimidade cobre todas as paixões da mesma vanidade. Só é pena que, depois dela, tudo seja irremediável.»
Depois de tudo, fico com a sensação de vazio absoluto, de que tudo ou quase tudo ficou por dizer. Paulo Quintela e Miguel Torga são grandes de mais para caberem nas páginas de qualquer escrito, e eu demasiado pequeno para os fazer caber numa simples e despretensiosa comunicação como esta com que vos tenho vindo a massacrar o bicho do ouvido e da paciência. Repare-se, porém, no milagre da poesia, capaz de sínteses fulgurantes: ficaram ambos retratados, em corpo e alma, no poema de Manuel Alegre. São assim os Poetas."
Bragança, 1 de Outubro de 2009

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Crónica de Ruben de Carvalho. É do Camandro. (TLEBS)

Meu, não dá para te passar tudo, mas é uma cena... Como é que t'hei-de dizer, assim uma cena um bocado marada que não dá prá agarrar logo! Tem bué de words novas, tu nem tosgas, eu pelo menos vejo-me à rasca. A profe também anda bimba com a cena, parece que não topa peva, é assim uma cena toda nova. Aquelas gaitas ca gente teve de encornar - os adjectivos, os verbos, essas cenas, 'tás a ver - agora tem tudo outros nomes, bué de compridos e depois cada cena com uma data de nomes.

Por causa daquele baril que no outro dia dizia na televisão que o fora de jogo "era consoante o árbito", até copiei a cena das consoantes que vem no paper: passou a haver consoantes surdas e sonoras mas, aguenta-te aí, que depois tens consoante oclusiva, fricativa, nasal, oral, lateral, vibrante e africada. Esta do africada julgo que é por causa dos blacks, e a minha miúda, que costuma ler os jornais, ficou lixada, diz que lhe parece é uma cena um bocado racista !
Acho que é uma lei que os políticos fizeram e depois os profes têm de andar com a cena e a gente é que amoxa! Passas a ter de meter nos cornos que há verbo principal impessoal, verbo pessoal intransitivo, verbo principal transitivo directo, verbo principal transitivo indirecto e verbo principal transitivo directo e indirecto, uma cegada! Lá o que são verbos, ainda perguntei ao meu velho lá em casa e o gajo lá disse umas coisas, até falou da cena do transitivo, mas aí já foi muita areia - mas agora isto tudo!
E, ainda por cima, dizem que é para a maralha aprender a escrever, a criar, como eles dizem, uma cena de "hábitos de leitura"! Topas, um gajo a querer ler uma cena numa curte porreira e vêm com esta trapalhada, mais vale um tipo agarrar as words do inglês, que dão para o computas e a malta até topa logo.
Houve um gajo - penso que é do sindicato ou uma cena assim, mas é fixe, alinha com a malta - que me disse que isto vem tudo do mesmo sítio, dos mesmos cromos do Governo e do Ministério que também andam a despedir os profes, a inventar aquela cena marada das "aulas de substituição", a correr com o pessoal que tratava lá da cantina e tudo isso, a fazer um granel do camandro nesta cena toda.
A minha esperança é que agora, com o TLEBS (topas? A Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário) isto vai ficar uma curte muito mais fixe e vou ler o Fernando Pessoa.

DIÁRIO DE NOTÍCIAS - 23.11.2009

sábado, 12 de dezembro de 2009

Cristóvão de Aguiar, por Chrys Crystello. 8.º Colóquio Anual de Lusófonia, 2009.

MESA QUADRADA SOBRE TRADUÇÃO E LITERATURA DE MATRIZ AÇORIANA

Grandes vultos das letras e das artes nasceram nos Açores como Gaspar Fructuoso, o conde de Ávila, Manuel de Arriaga, Antero de Quental, Teófilo Braga, Roberto Ivens, Tomás Borba, Francisco de Lacerda, Canto da Maya, Domingos Rebelo, Vitorino Nemésio, António Dacosta, Carlos Wallenstein, Victor Câmara e Carlos Carreiro. Dos autores contemporâneos de que falarei aqui, selecionei aqueles por quem nutro apreciação. Acolho como premissa o conceito de açorianidade de Martins Garcia que, admite uma literatura açoriana «enquanto superstrutura emanada dum habitat, duma vivência e duma mundividência» . A açorianidade literária (termo cunhado por Vitorino Nemésio, na revista Insula, em 1932) não está exclusivamente relacionada com peculiaridades regionais, nem com temas comummente abordados na literatura, tais como a solidão, o mar, a emigração. Martins Garcia não se mostra empenhado em definir a literatura açoriana, mas a sua qualidade estética. Na obra “Para uma literatura açoriana” (1987) afirma: “...utilizar um conceito antropológico de cultura para provar a diferença entre os Açores e o Continente é admitir que um traço distintivo venha a justificar uma autonomia, quando, na realidade, são as diferenças culturais que formam um acréscimo que dão identidade, seja a uma literatura, seja a um povo .
Em “Constantes da insularidade numa definição de literatura açoriana” J. Almeida Pavão (1988) diz “...sobre a existência de uma Literatura Açoriana...assume-se tal Literatura com o estatuto de uma autonomia, consentânea com uma essencialidade que a diferencia da Literatura Continental. No polo positivo de um extremo, enquadrar-se-ia a posição de Borges Garcia e no outro extremo situar-se-ia o polo, naturalmente contestário, formado por Gaspar Simões e Cristóvão de Aguiar. Isto, sem falarmos de outros tantos depoimentos, compendiados na obra A Questão da Literatura Açoriana, de Onésimo de Almeida (1983) .”
Depois de, no meu fervor iniciático, ter sido um adepto da Literatura Açoriana, à medida que lia os mais consagrados e badalados, ficava com uma sensação amarga. Há muitos, mas de qualidade irregular, dir-se-ia duvidosa. Sorri da minha ingenuidade. Ao ler Dias de Melo, guardei as baleias, o livro intimista “À Boquinha da Noite (2001) e poucos mais. Lera mas não gostara doutros com um neorrealismo primário que nada tem a ver com os livros mais antigos sobre os baleeiros. Onésimo fora um desapontamento mas como croniqueiro eram notáveis as piadas que sempre o caracterizaram. Daniel de Sá tem talvez como uma das suas melhores obras, a novela “O Pastor das Casas Mortas” e obras mais antigas (sobretudo “Ilha grande fechada” (1992). Dele, ressalvam-se bons textos nos últimos anos, em livros ou guias de turismo como “Santa Maria Ilha-Mãe”, “S. Miguel, a ilha esculpida” e outro sobre a Terceira (a publicar em breve, todos da VerAçor). Entretanto, JC lera outros poetas e escritores açorianos espantosos de quem poucos falavam. Martins Garcia era um deles...
Como tradutor no seio desta geografia idílica, não busquei a essência do ser azórico em miríades de variações nem cuidei de saber se o homem se adaptou às ilhas ou se estas condicionaram a presença humana, para evidenciar a sua especificidade ou açorianidade. Deduzi no decurso da sua tradução características relevantes para a açorianidade:
1. O clima inculca um caráter de torpor e de morosidade;
2. Os povos quedam hoje, física e culturalmente, quase tão distantes de Portugal como há séculos atrás;
3. O recorte dos estratos sociais: é ainda vincadamente feudal apesar do humanismo que a revolução de 1974 alegadamente introduziu nas relações sociais e familiares;
4. A adjacência das gentes à terra persiste ainda imune a aculturações, fora das pequenas metrópoles que comandam a vida em cada ilha, opondo-se ao centralismo autofágico e macrocéfalo, que regem esses dois submundos como vasos não-comunicantes.
Daniel de Sá dedicou “O Pastor das Casa Mortas” “às mulheres e aos homens que ainda acendem o lume nas últimas aldeias de Portugal. O herói busca um amor perdido no léxico e na sintaxe dos montes escalavrados da Beira Alta. Por entre o pastoreio, calcorreia paixões sofridas, numa apologia da solidão. O retrato de Manuel Cordovão, lusitano de um amor só, é uma ode ao açoriano apartado de si e do mundo por um amor impossível inconcretizado. Trata-se de uma visita ao Portugal profundo, interior e inacessível. Aqui não se fala do “despovoamento das ilhas” antes se resgata o imaginário coletivo na erudição improvável de um mero apascentador de cabras. Em “Santa Maria ilha-mãe” Daniel de Sá viaja ao passado mítico, refulgente de nostalgia lírica por uma infância despretensiosa. Visita o isolamento de séculos, permeado por ataques de piratas, a inculcar mais vincadamente as crenças religiosas. O título gerou controvérsia mas o autor notaria: “Não se trata de "mãe" adjetivo, mas sim de dois substantivos. É uma ilha que é mãe também...” As personagens são credíveis e transportam-nos a partilhar sentimentos com os interlocutores. Como magistralmente disse a escritora canadiana Ann-Marie MacDonald, “A tradução é uma arte e uma maestria, com um toque de alquimia. Quando o autor e o tradutor se reúnem, o resultado pode ser inspirador. As nuances traduzem a língua numa forma de arte
Dias de Melo escrevia sobre os baleeiros, como se da sua “Cabana do Pai Tomás”, no Alto da Rocha do Canto da Baía, na Calheta de Nesquim na açoriana ilha do Pico, vigiasse os botes e as lanchas da Calheta baleando contra os Vilas e os Ribeiras. A escrita embrenha-se como o nevoeiro em que os trancadores se debatiam na luta inglória para ganhar a vida. Resumo o autor a uma frase: Injustiça Social. É da sua denúncia que trata ao abordar a emigração, as realidades sociais e económicas, a repressão do Estado Novo e os dramas humanos, na linguagem simples dos homens do mar. Fica-se com a sensação de uma sociedade arbitrária e perversa. Coube-lhe a sorte de ter recebido homenagens públicas nos últimos meses de vida, quando a VerAçor re-editou alguns dos seus livros. Como espetador atento da luta quotidiana e da condição humana, nunca se coibiu de a viver e contar. Cumpre evitar que essa memória se esvaneça e porfiar para que seja lido pelas novas gerações, pois, como ele escreveu: “A esperança num mundo melhor já não será para mim, nem para nenhum de nós e eu revolto-me com o que vejo à volta de mim”
Nas ilhas existem interesses esconsos e panelinhas em que pontificam menos valias com fama fácil e nomes menores da literatura local. Com a paixão de descobrirmos estes autores, olvidamos o conhecimento dos restantes. Deixamo-nos embalar pela açorianidade, a diegese das ilhas, seus costumes ancestrais, o canto das suas sereias...Lemos outros açorianos espantosos de que ninguém fala como José Martins Garcia . Sobre ele escreveu David Mourão-Ferreira “Se não vivêssemos, vicentinamente, num País em que a "barca do purgatório" anda sempre mais carregada que as outras duas, o [seu] nome deveria ser hoje saudado como o do escritor mais completo e mais complexo que no último decénio entre nós se revelou; (...) com igual mestria tanto abrange os registos da mistificação narrativa como os da exegese crítica, tanto os da desmistificação satírica como os da transfiguração telúrica, e que sem dúvida não encontra paralelo, pela convergência e concentração de todos estes vetores, na produção de qualquer outro seu coetâneo ”. E Maria Lúcia Lepecki acrescenta "É a arte de narrar "em puro" que Martins Garcia cultiva: de modo que opta por não fazer quaisquer tipos de experimentações. Vai sempre re-experimentando, e confirmando, o contar histórias."
Côrtes-Rodrigues é outro nome juntamente com Emanuel de Sousa poeta e autor de Eurídice com prefácio de Natália Correia; e autor de Ariadne , Saiu agora uma rica edição de uma antologia de contos de Martins Garcia. A coleção intitula-se Biblioteca Açoriana e é dirigida por Urbano Bettencourt e Carlos Alberto Machado . Já foram publicados, nesta coleção, em 2009: Almas Cativas e Poemas Dispersos, de Roberto de Mesquita ; A Moldura, de Conceição Maciel; Português, Contrabandista, de José Martins Garcia, antologia de contos, a maior parte inexistente no mercado, com um posfácio de Urbano Bettencourt. Há mais três nomes a não esquecer: Vasco Pereira da Costa, poeta, romancista, nascido em Angra em 1948. Além disso é pintor com o pseudónimo de Manuel Policarpo. A sua Exposição de Pintura no Museu dos Baleeiros das Lajes do Pico em Junho, foi para a Terceira, e está agora nas Portas do Mar, em Ponta Delgada. Intitula-se As Ilhas Conhecidas - Cartografia e Iconografia. Os quadros relativos ao culto do Espírito Santo são uma forte crítica não só ao culto da terceira pessoa como à sociedade...Há ainda Eduardo Jorge Brum (fundador e diretor do Semanário "Expresso das Nove") poeta, contista e romancista, nascido em Rabo de Peixe. Escritor maldito, na linha de Luiz Pacheco. As suas principais obras foram todas publicadas na Europa-América, com exceção de uma, que saiu na Vega , e por último, Marcolino Candeias, nascido em Angra em 1952. Poeta de um só livro, embora se tivesse estreado aos 16 anos com um livro Por Ter Escrito Amor que terá repudiado, pois não consta na sua bibliografia. A 2.ª edição intitula-se: Na Distância deste Tempo . Como se pode ver há muito para além das hortênsias e dos romeiros, tema desesperado de tanto aspirante a escritor numa eterna antologia de autores açorianos, mas nem todos eles serão obreiros de verdadeira literatura.
Deixei premeditadamente para o fim Cristóvão de Aguiar , um escritor incómodo. Não só se libertou das grilhetas do cativeiro confinado da ilha como demonstrou com a sua prolífica publicação aquilo que mais se entreteve a negar: a existência de uma literatura açoriana. Exigente consigo e com os outros, com fama de intransigente, não se inibe com polémicas e controvérsias. Domina a língua como só os grandes escritores almejam, enquanto se deixa consumir na incandescente falta de confiança genética de ilhéu. Eterno insatisfeito burila as filigranas letras com que nos enleia no basalto da sua ilha adotiva, o Pico. Como visitou e viveu para lá da fronteira invisível do grande Mar Oceano olha retrospetivamente para o Pico da Pedra, em São Miguel, onde nasceu, e vislumbra a pequenez das gentes encarceradas nas ilhas, contentadas com qualquer emigração económica e a canga feudal que persiste. Pedaços de gente dura e impiedosa cumprindo rituais. Intolerante, devota e invejosa na sua ânsia de emigrar. Depois, o regresso de aparência gloriosa, mas sem acarrearem na desafogada bagagem algo de valor. Apenas dinheiro e bens materiais. Sobre a sua marilha natal, diz Cristóvão:

São Miguel já não é a mesma Ilha onde fui nado e criado e vivi até à arrogância dos vinte anos. Pude verificá-lo, há pouco, durante o 4.º Encontro Açoriano da Lusofonia, em que, para regozijo meu, não encontrei os costumeiros intelectuais de pacotilha, que sabem tudo quanto no Universo se passa, com retrato de pose na galeria dos imortais há muito mumificados…Nem é sequer a mesma Ilha que foi, até há poucos anos, muito nublada, já não digo por um nevoeiro absoluto, mas por alguns resquícios aparentados a certas pesporrências de má memória. Temos, porém, de convir que, durante séculos, certas forças religiosas, conluiadas com todos os poderes, foram o sustentáculo da ignorância abençoada pela trilogia Deus, Pátria e Rei de outros tempos, e Deus, Pátria e Família, do tempo de muitos de nós. Direi como Mestre Gil Vicente: E assim se fazem as cousas. Levou tempo, mas o inevitável aconteceu. Acaba sempre. O medo e outras rançosas virtudes impostos ao espírito e nele lavrado em sulcos mais ou menos profundos (nem toda a terra consente a ignomínia), com relhas enferrujadas e passadistas, têm destes percalços - no ápice de um instante imprevisto esse terreno enfastiado de tanta aridez fementida e coerciva, súbito se devolve à sua límpida condição de húmus que favorece a estrutura do solo e do subsolo e do infra-subsolo: o consciente, o subconsciente e o inconsciente.

Cristóvão é um permanente “Passageiro em trânsito”, título do seu mais benquisto livro na rota do inconformismo. É a voz ininterrupta de uma consciência coletiva que não se asfixia. Granjeou o direito a chamar os bois pelo nome sem se deter nas finuras das convenções do parece bem. É crítico impiedoso do destino que alguns queriam eterno, da subserviência e submissão aos senhores das ilhas, descendentes diretos dos feudais opressores da gleba. Narrativas dissecantes que se assemelham a uma técnica de travelling em filmagem. Grandes planos, zooms, e paragens esmiuçadas nos rostos e mentes dos atores principais dos seus diários, intitulados Relação de Bordo (trilogia) e A Tabuada do Tempo. A câmara detém-se e escalpeliza a alma daqueles que filma com palavras aceradas. Dói e magoa como o vento mata-vacas que sopra do Nordeste. Psicanalisando as gentes e a terra que o viram nascer adotou uma nova ilha mátria, em 1996.

A Ilha do Pico faz-me as vezes de mulher amada. Desvenda-se aos poucos, em erótico vagar, para se lhe descobrir os recantos e sortilégios mais íntimos. E nunca se chega, nem se precisa, ao cerne do feitiço... Meio encoberta, meio desnudada, sempre ataviada de cheiros exóticos e eróticos, faz com que se abram as narinas de cio. Colhem os olhos as tonalidades indefiníveis de seus roxos e azuis, o cinza entorresmado de seus mistérios, seus verdes percorrendo toda a escala cromática, vertidos na paleta primigénia de que se serviu o Criador para matizar a tela da Natureza. Sempre que caem sobre o mar do canal, cavado e furioso ou espelho de Narciso, a Ilha de São Jorge, nua e arroxeada, a garantir mais mundo, os olhos coalham-se de espanto em face do mistério de assistirem ao primeiro dia da Criação...Não cabe no olhar a Montanha bíblica. Extravasa a humana retina. Bíblica. Acredito ter sido em seu cimo, que roça o Céu, que Moisés recebeu as Dez Tábuas da Lei. E de um penedo fez jorrar a água que saciou a sede do seu Povo.

Cristóvão de Aguiar não é um autor fácil nem facilita o léxico para leitores de pacotilha. Amaldiçoado mas nunca maldito, outros o forjaram malquisto. Acossado por tudo e por todos. Exige tanto dos seus leitores como de si. As suas palavras pungentes estão gravadas visceralmente num granito alheio às ilhas que se encontra na trilogia Relação de Bordo. No último volume, deparámos com uma interminável história de amor sem que os leitores enxerguem esses arroubos. Ele é o magma de que são feitas as gentes de bem. Terei encontrado o escritor neste amigo novo? Este autor que ora descobri como se o conhecesse há muito, como se tivesse sido irmão caçulo ou compagnon de route 66 à la Jack Kérouac, iluminando o túnel das ideias . Navego imerso na sua escrita tateando como um recém-nascido fora do ventre materno. Aprendo com este mestre contemporâneo da literatura de matriz açoriana. Muito apoucado me aquilato em tão ínclita companhia.

Nestas navegações literárias, uma pessoa não lê apenas Cristóvão de Aguiar, empreende uma viagem tridimensional repleta de sentidos. Confluem na escrita como lava “pahoe-hoe” (pron. pah hoi-hoi) de aparência viscosa mas fluida, prateada e entrançada como cordas de baleeiro. Outros autores aparentam lava tipo “A a” (ah ah), grossa e áspera, magma de rochas solidificadas impulsionadas. Em Cristóvão de Aguiar nada é impelido embora por vezes se assemelhe na sua descrição e nos contornos emocionais à pedra-pomes, piroclasto dominante das rochas traquíticas. A observação de qualquer pedaço de basalto revela-nos, quase sempre, a existência de vesículas disseminadas na rocha, de tal modo estanques, que esta pode flutuar na água por largos períodos. Resultam de gases separados do magma que, não tendo escapado para a atmosfera, ficaram aprisionados na rocha sob a forma de bolhas onde também ficam retidos ad eternum todos os leitores. A escrita lávica de Cristóvão fica a boiar no nosso espairecido imaginário. Foi ela que nos instigou a rabiscar esta lamentação com o frémito ciumento dos que não conseguem escrever da forma única e inimitável como só ele sabe e sente sobre os Açores. Essa a forma de amar e de ressarcir a terra que o viu nascer... As ilhas irão, um dia, desatar as grilhetas que as enjaulam no passado e Cristóvão ficará então desobrigado da tarefa hercúlea de acarrear a sua ilha como um fardo ou amor enjeitado, que nisto de ilharias há muitas paixões não correspondidas.

Dias de Melo e Daniel de Sá já foram traduzidos e “O Pastor das Casas Mortas” vai surgir em castelhano. Cristóvão não foi traduzido. Além dele há outros escritores e poetas que teremos de divulgar e traduzir. Isto sim é um crime de lesa literatura. Iremos concentrar os esforços dos Colóquios em editá-lo no Brasil e tê-lo traduzido na Bulgária, Roménia, Polónia e Eslovénia. Todos nós, meros mortais, teremos de ler os restantes e apreciar a sua universalidade, apesar da matriz açoriana que a todos permeia. Sei que incorremos numa grave omissão se não conseguirmos lançar em novos mercados e traduzir “A TABUADA DO TEMPO”, “TORGA LAVRADOR DAS LETRAS”, “MARILHA”, “RAIZ COMOVIDA”, “RELAÇÃO DE BORDO I, II, III”. Este o desafio que lanço, hoje, como um repto que ninguém recusará, estou certo.

Dr. Chrys Crystello.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Apresentação crítica de Passageiro em trânsito, de Cristóvão de Aguiar, por Maria do Rosário Girão Ribeiro dos Santos. Lisboa, Edições Salamandra, col. “Garajau”, 1994.



Apresentação crítica de Passageiro em trânsito, de Cristóvão de Aguiar


Lisboa, Edições Salamandra, col. “Garajau”, 1994

De como vários contos convergem num só ponto.

Haverá quem possa afirmar nunca se ter sentido um “Passageiro em trânsito” numa estação de caminho de ferro, num ancoradouro, franco ou não, ou num aeroporto, preferencialmente internacional? Quem nunca conheceu essa sensação de ansiedade, espoletada, neste último, pelos altifalantes ‘triglotas’ [“Três são as línguas da comunicação. Todas da europeia cristandade.” (1994: 72)], pelos tremeluzentes quadros eletrónicos e pelos relógios cosmopolitas arautos do almejado anúncio da porta de embarque? Quem nunca se deixou impressionar pela exaltação vivencial num espaço intermédio, no entre dois destinos, dois tempos e dois universos?

É deste transe em trânsito que nos fala Cristóvão de Aguiar, pela via de um protagonista que, afeiçoado ao ato de partir ou, por outras palavras, a essa privilegiada faixa temporal sita, algures, entre a despedida e a largada, adquire o estatuto de “Passageiro em trânsito”, postura indubitavelmente adequada ao seu “estado de homem solto” (idem: 74). Mercê desta sua atitude perante a vida, assiste-se paulatinamente a uma conversão do real e a uma subsequente metamorfose do espaço, firmadas em definitivo pelo não enigmático alegorismo. Destarte, transmuta-se a “moderna feitoria” que é o aeroporto, detentor de uma ampla sala de espera, em laboriosa (e também penosa…) oficina de escrita, transformando-se a deambulação do peripatético protagonista em peregrinação literária do sujeito escrevente, em busca da epifania da inspiração, concretizada por “causos” ou contos desembocando num ponto [.], susceptível de ser identificado com a interiorização mítica da Ilha. Se, acaso, alguma dúvida hermenêutica persistisse a tal respeito, bastaria, para a delir de imediato, atentar na assunção do protagonista como ficcionista e narrador - “Pelo menos, é minha intenção de ficcionista que o sejam [que os caminhos sejam diferentes]. […] Palavra de narrador […]” (idem: 31-41) -, no culto do rodeio ou desvio, sinónimo de liberdade de criação e de rejeição da “linha recta” narrativa - “Nunca gostei de securas geométricas, […] Vagueio em enormes rodeios. […[ Sempre se revela o cometimento de outra grandeza semântica. E de uma maior graça estilística.” (idem: 81) -, no gosto pelo tropo [ou, mais bem dito, pela palavra metafórica (estabelecendo uma relação de analogia), pela palavra metonímica (alicerçada numa contiguidade lógica) e pela palavra sinedóquica (fundada sobre a inclusão)] “parido[a] com muita dor” (idem: 32), na estratégia que preside à opção por esta e não por aquela personagem - “Não é todavia dele que neste momento me quero ocupar. […] Mas tenciono ainda apanhá-lo no alto mar, se o tempo e a prosa estiverem de ficção.” [e não de feição…] / “Agora vou puxar o senhor Afrânio padrinho para dentro do rego desta história. […] vem vindo atraído pelo meu chamado. E cá está ele.” (idem: 103) -, na organização de planos sucessivos e de sequências narrativas encadeadas ou disjuntas - “De resto, já havia pensado em mudar o rumo magnético à rota dos passos.” (idem: 143) -, na nomeação ou batismo de dois viajantes inomados - “Tenciono baptizar neste momento a viúva e o seu companheiro em trânsito. As almas querem-se de resto cristãs e sacramentadas.” (idem: 116) -, no entrelaçamento constante entre o ponto centrífugo ou o sujeito que escreve a perambular e os contos centrípetos (estórias de vida das personagens convocadas, ou seja, de Deolinda, viúva de Joe Perry, de Manuel Reigó, tio de Antília, e do senhor Afrânio padrinho), na universalidade da condição humana, votada à morte, que a condição em trânsito metaforiza - “De resto, todos nós, nesta sala fantasmagórica de aeroporto internacional, somos passageiros em trânsito.” (idem: 96) -, e na reflexão sobre a escrita e sobre o romance, mais sobre a aventura da escrita do que sobre a escrita da aventura, que tão-somente encontra na descontinuidade da intriga a sua coerência narrativa ou no relativo da história o seu absoluto narrativizado - “O desvio que, por consequência, nesta sala se foi produzindo, […] se deveu a tudo quanto, a propósito e a despropósito, se andou atrás narrando.” (idem: 115).

O elo comum de significância a esta fantomática cadeia de passageiros em trânsito é, inegavelmente, a Ilha (recorrendo ao singular, abstrato e classicizante, místico e mítico), cuja personificação e deificação, reificando as personagens insulares, veicula uma coreografia quase ininterrupta de símbolos: presente ou ausente, extraviada ou transplantada, apaziguada ou enervada, encalhada ou embarcadiça, ela vê-se, não raro submersa, não se furtando, muito embora, a emergir no mar interior dos seus continentes humanos, que tanto a repudiam como a perseguem, num misto algo paradoxal de perda e demanda. “Implacável” (idem: 39) e vingativa, não se coíbe de criar raízes, telúrico-marítimas e literárias, no narrador (de entre as quais se destaca, pela sua tirania altaneira, a “Sebastiana” - versão feminina do mito?), de se alojar como cálculo [“em Latim. Calculus, calculi.” (idem: 47)] na sua vesícula (a ponto de a ablação constituir uma hipótese a ponderar…), de ergonomicamente obviar à sua replantação, de arrastar na enxurrada o quarto, transmudando a cama em barco, e de possuir inteiramente o sujeito que escreve - acusado pelo seu “amor” de “Cobarde, fraco, abúlico, volúvel, inconstante” (idem: 64) -, esse Homem-Ilha, já que a Ilha, supranumerária ou não, constitui parte integrante e amada do sujeito integrador e amante. Como os gémeos Armando e Armindo, Homem e Ilha tornam-se um só ente, graças a um processo irreversível de transverberação, responsável pela consubstancialização das principais raízes islenhas e dos órgãos vitais humanos, a que uma linguagem-substância, e devidamente substanciosa, dá forma.

E, de súbito (idem: 161), de repente (idem: 97) ou de supetão (idem: 103) [locuções adverbias recorrentes no texto e cuja função em mais não reside do que na instauração da rutura semântica], irrompe a sátira que, longe de ter um ethos agressivo, se faz sentir sob o modo lúdico, menos de matriz irónica do que de cariz humorístico. Alvos flagrantes do humor, por distanciamento interposto, do Autor não deixam de ser a viúva de Joe, que, havendo perdido a Ilha em mar ignoto, só com sorte a poderá reencontrar em qualquer maré-vaza, e o seu parceiro de trânsito Reigó, apreensivo quanto ao local onde deixou uma Ilha só dele conhecida e só por ele estimada a partir do momento em que dela se descartou. O falaz diálogo (com foros de monólogo…) que entre os dois se estabelece constitui per se trampolim simbólico para a crítica do ilhéu-emigrante apátrida: ao continuum verbómano de Deolinda Perry, cuja logorreia tanto sepulta, lacrimante, o defunto Joe como verbalmente o ressuscita no seu ofício exímio de envernizador de chouriços, opõe-se o silêncio complacente do seu companheiro de viagem, “de poucas falas” (idem: 88) e “com a cara falidinha” (idem: 94), destinatário mor de tanta inanidade palavrosa. É ele, porém, que fazendo jus ao chouriço ilhéu, “uma especiaria e uma bandeira de emancipação da miséria” (idem: 89), vai metamorfoseando, no seu foro íntimo em movimento a contrastar com a movimentação verbal, mas exterior, de Deolinda, a produção em série de chouriços, envernizados por Joe, em santa procissão chouriçal, resplandecente de certos emigrantes, portadores, cada qual, da “sua Ilha pela luzidia trela de ouro americano” (idem: 91). Afinal, no antanho, configurava-se a Ilha como um espaço paradisíaco, desconhecedor da hodierna dinheirama que brota, a jorros, dos partidários de automóveis de luxo, porquanto os “coriscos dos dólares são diabinhos que enfiam o rabinho tentador na cabeça de muito boa gente.” (idem: 152). À medida que se vai estreitando a intimidade unívoca entre a senhora Deolinda e o senhor Manoel (aproximação que tem em Joe o seu epicentro), não hesita a primeira, profissional oficiante da palavra, em contar ao segundo o pecadilho cometido noutros tempos, por culpa da mentalidade retrogressiva da Ilha e da branda administração americana: tendo ela, com efeito, cinco anos a mais do que Joe, e ditando o bom tom ser uma noiva mais jovem do que o noivo, não se inibiu a ainda ‘não viúva’ Perry de se aliviar e de olvidar o módico número de sete anos, como diferença de idades, já que “diferença poderá então fazer sete anos a mais ou a menos em riba do pêlo?” (idem: 148).

Crítica similar ao boateiro rigor das autoridades norte-americanas (que não apadrinham enchidos de porco nas malas, mas pactuam com vistos de turismo falaciosos) perpassa na estória de Antília, que, por cobiçar um apetecível trabalho fabril, força o tio, Manoel Reigó, a ir falar com Mr. William Cavalo. Se, por um lado, arranja emprego num “salão de beleza extraterrena” (idem: 157), imagem lúdica de “Funeral Home”, a enfeitar os “aposentado[s] da vida” (idem: 93), eufemismo jocoso de mortos, por outro, a condição sine qua non de tal angariação ou recrutamento oblíquos, a saber, a obrigatoriedade de tomar de empréstimo vitalício o nome de sua prima Ausenda e de, por conseguinte, inumar para todo o sempre o seu próprio nome, condu-la à loucura. Aliás, o nome adulterado, porque adaptado à “estranja”, oscilando entre a identidade como fonte insular e a alteridade como meta emigratória, e apanágio de certo ilhéu-emigrante (e certo, uma vez mais, porque o narrador não generaliza nem tipifica, antes individualiza…), constitui farpa recorrente no universo diegético desta novela em espiral. Quedemo-nos, por exemplo, quer em John De Suza (idem: 127) - sendo a preposição, com pretensões nobiliárquicas não raro desmentidas pelo populismo de estirpe, grafada com maiúscula e constituindo o sobrenome um aceno de cumplicidade para o leitor avisado -, quer em Joe Perry que, antes de se tornar cidadão americano, era o “José Pereira Assopradinho na Ilha” (idem: 116), quer em Manuel do Rego que, após aterrar na Nova Inglatera, fica a ser conhecido por Manoel Reigó - “Manolinho nos círculos mais íntimos.” (idem: 116) -, quer, finalmente, em William Cavalo, “descendente de um Carvalho da Ilha” (idem: 155). Os patronímicos adoptados lestos se alargam à toponomástica pela via do pastiche magistral de um certo (e a repetição do determinante é voluntária) idioleto e regioleto luso-americano, no qual açorianismos, ‘continentalismos’ e americanismos coabitam em franca harmonia. Assim sendo, New Bedford e Fall River transmudam-se em Bateféte e em Forrível (idem: 85); por seu turno, o senhor Afrânio que, aspirando a gravar o seu nome (e não veiculará o nome a identidade?) na firma industrial “William’s Cotton Mill, Co.”, apenas consegue aparecer “na cauda do nome legal” (idem: 100), ou seja, no “Co.” (abreviatura de “Corporation”), que, abreviadamente, recusa a junção do exótico “Afranio’s” (idem: 100-101); quanto ao falecido Joe, que morre em serviço ao envernizar o derradeiro chouriço, ele era o digno proprietário de “Perry’s chouricos and linguicas” (idem: 118)…

Neste linguajar ‘mascateado’, ambas as línguas, portuguesa e americana, vão perdendo as suas idiossincrasias em proveito de uma mescla que, pelo seu hibridismo, dá a sensação de se impor como língua franca: por um lado, usa-se e abusa-se do lusitano impessoal como sujeito, bem ao gosto coletivo, detentor de um incomparável valor estilístico: “A encomenda destinava-se ao Estado de Rhode Island. Aí os imigrantes contam-se aos milhares. Ele é Bristol, ele é Newport, ele é Providence, ele é Warrren…” (idem: 120); por outro, o lexema “subterrâneo” surge anodinamente como sinónimo de conterrâneo, perdendo o embarque a sua “porta” para conquistar a sua “gate”: “ - Saiba o senhor Reigó que ainda é meu subterrâneo pela banda de meu Pai; foram nascidos na mesma Ilha.” (idem: 156) / “Aqui no aeroporto o gate possui um número.” (idem: 132). Já para não falar do “my God” e do “Sorry” (idem: 118-119) que pontuam o discurso, como se os respectivos equivalentes em língua portuguesa primassem pela sua inexistência, ou, ainda, do senhor Joe que pretende fazer da esposa, a taumaturga Deolinda, uma “queen” americana (idem: 84), ou, por fim, do senhor Reigó que quebra o compungido silêncio por não resistir à tentação de confessar que vai à Ilha gozar as suas “vaqueixas” (idem: 86). Um caso inolvidável é o da senhora Deolinda Perry, que recorre apenas ao presente, desprezando o pretérito, e ao substantivo, pela realidade concreta que dele emana. O resultado final não poderia ser obnubiladamente mais promissor: “- Eh Joe, parca-me o aresmobil na cóna de baixo, que a cóna de riba está tomates fógui..” (idem: 124).

Se a sátira à América, vista pelo emigrante, firma este continente como o “Fruto da fé, do dólar e da fartura” (idem: 89) - onde o ilhéu lusíada, receoso de ser julgado em língua estrangeira (mas não ‘bárbara’…) pelo Padre Eterno, se apresta a praticar um bilinguismo de suspeita hibridez, elegendo como estandarte a quadra que uma certa folha imprimiu em resposta à diatribe da sua congénere [“Assim, pela última vez, / Vou dizer ao tal fulano / Que Deus fala português, / Nunca aprendeu amar’cano!”) (idem: 122)] -, como uma terra em que “tudo se resolve a contento das pessoas”, acreditando os Americanos “em tudo quanto se lhes diz” (idem: 147), como “a terra da liberdade” que, por não ter património milenário, anda no encalço das mais-valias alheias e europeias [“Ossos de mortos ilustres”, “Castelos inteiros, pedra por pedra” e “Espadas ferrugentas de reis” (idem: 84)] e como o país, qual conto de fadas, onde “os mortos, sem qualquer distinção de classes, se querem bem ataviados e cheirosos para entrarem os portões da eternidade” (idem: 157), a sátira à mátria insular, retomando o campo lexical da religião, é carreada pela “santíssima trindade do senhor Afrânio” - “a Ilha” [que “Reside há mais de três décadas em Massachusetts” (idem: 103)], “as moscas e a bosta” (idem: 106). Do seio destes dois universos sociolinguísticos insólitos, que funcionam como “vasos comunicantes” inter pares, eleva-se, como espécimen representativo, o senhor Afrânio, alojado pelo narrador ‘em trânsito’ no Hotel Terra Pulchra - “um dos mais estrelados de toda a Ilha” (idem: 162) -, avatar da sala de espera do aeroporto. Têm, contudo, o fatum ou o acaso desígnios com os quais nem sonha esta personagem (tio-avô de Afrânio Condinho Gaudêncio e seu padrinho por procuração), chamada pelo narrador para ilustrar uma certa teoria inovadora sobre a emigração: ao pedir, com efeito, um internacional bife com um ovo a cavalo [sendo este bife açoriano e não texano, o qual, segundo testemunho idóneo do narrador, é o “melhor do mundo” (idem: 162)], eis que um inseto díptero, vulgarmente designado por mosca (aquém e além-Atlântico), se atreve a cair na “molhanga amarela da gema esborrachada” (idem: 162-163), acabando por nela se imobilizar. Ora, como “Nisto de moscas era o senhor Afrânio muito tafe mesmo”, a crítica não tarda a fazer a sua aparição em cena, sob a forma de teoria filosófica que o acirrado pró-americano e pseudo-americano vai filosoficamente desenvolvendo: “- Ninguém me tira das ideias, meus senhores. Mas ninguém. Tanto as moscas como as baratas. Já se começam a ver na terra da América. Ninguém me tira das ideias que não foram levadas pelos emigrantes das Ilhas. Gente mais dirty outra igual no mundo não conheço. Levam-nas nas malas e nos forros dos casacos. E chouriços também. Sou ainda do tempo. Santo tempo esse, em que não se enxergava uma só mosca em toda a terra da América. Depois que a emigração abriu as pernas, foi uma enchente de mosquedo e barataria, só visto. É bom que se saiba que nada tenho contra as novas leis da emigração. Quanto mais gente vier para a América, menos míngua haverá nas nossas Ilhas…” (idem: 163-164). Numa incipiente análise do discurso, quedemo-nos, fugazmente, na tripla repetição anafórica e dogmática do indefinido “Ninguém”, na dupla retoma do plural “ideias”, inusitado e descontextualizado na expressão idiomática, nos americanismos que subrepticiamente invadem o fragmento que se quer argumentativo [“Let it go desta vez.” (idem: 163)], na associação mosquedo e barataria em que o zeugma chouriço só pode deter um caráter lúdico, na analogia, que a metáfora subentende, entre emigração e prostituição, na conceção regionalista do bem internacionalizado muscídeo e, por fim, na reviravolta ideológica do luso-americano que, após verberar a emigração, se não inibe de a defender, em nome da “Ilha transplantada”, num intuito económico e moralizador em simultâneo. Do mesmo modo, o seu amigo, eminente visitante chegado de Boston para se submeter - não em Boston… -, na Ilha, a um tratamento de bexiga, inicia-se no débil discurso independentista de uma Ilha singular (olvidando as demais oito ilhas do Arquipélago) - “[…] aproveitava o ensejo para iniciar um peditório destinado à angariação de fundos com vista à independência da Ilha. Mas só da sua Ilha. Que fique bem claro. As outras que se desunhassem.” (idem: 165) -, que o discurso indirecto livre, aliado à expressão popularmente oralizante, corrobora humoristicamente. Aliás, o contraste, por vezes aviltante, entre a fisiologia e a espiritualidade, a primeira sobrelevando a segunda, é apanágio das personagens produtoras de um discurso algo infantilizado: o senhor Reigó, depois de cumprir a sua “devoção diária no Clube do Divino Espírito Santo de Fall River” (idem: 125), dirigia-se, lesto, para casa… obcecado por uma “biinha” ou, traduzindo do luso-americano, por uma “cervejinha”:

“- Ah Janim, minha rica cara, traz uma biinha ao vavô; está na freijoeira; mim querer biinha fresca…” (idem: 125).

Um outro caso de contraste comicamente aviltante é a saída da Ilha, assolada pela superstição reinante, da imagem milagrosa do Santo Cristo, que dá início a um complicado périplo marítimo para findar, algo desairosamente, num “galinheiro de uma casa situada num lugarejo escondido”, somente descoberta por certas aves galináceas e palmípedes: “as galinhas, os frangos e um casal de patos-marrecos.” (idem: 129).

Soa, todavia, a hora (estando a noite em trânsito para a madrugada) de o narrador, esquecido de si mesmo, mas não esquecedor das estórias de outrem, por si engendradas, abandonar a sua peripatização. Cansado e endolorido, senta-se, na sala de espera vazia de um aeroporto inominável, em companhia da aquietada “Sebastiana”” que, só em trânsito, tende a serenar. Enxerga, ainda, o Carvalho Araújo, no qual deveria ter embarcado “para a boa continuação desta história”, conquanto lhe seja “impossível ir daqui a nado até alcançar o navio” (idem: 171). As suas personagens lá abalaram (podendo ser, quiçá, retomadas, por invocação e evocação, em contos a vir), e ele próprio, o “Homem-Ilha” ou a “Ilha-Homem”, bipartido entre dois pólos litigantes, o ego e o alter ego, o outro do passado e o eu do presente, aguarda uma pista desimpedida “para a descolagem de algumas das [minhas] suas aventuras aéreas, como as [minhas] suas raízes”, pois são estas que “[me] o sustentam de pé.” (idem: 172).

Que nos sejam permitidas, para concluir, algumas considerações, talvez impertinentes, sobre o mérito incontestável de Passageiro em trânsito.

1. A reflexão constante sobre o acto de escrita, genelogicamente falando, que o tentame de ‘rotulação’ da obra, por parte do Autor, evidencia à saciedade, ao subverter o cânone: “novela em espiral ou o romance de um ponto a que se vai sempre acrescentando um conto.” (idem: 3). De facto, a metáfora geométrica da “espiral” traduz geometricamente a estrutura da ficção, que redunda no escorço de uma linha curva descrita por um ponto, que tanto voluteia, de modo contínuo, em torno de outro, como dele se vai afastando em gradação crescente.

2. O poder duplamente ‘reflexivo’ da alegoria, correspondente à metáfora in absentia, desafiando o leitor para o vaivém entre a significação literal, ancorada num referente concreto, e a significação simbólica, umbilicalmente ligada à primeira pela analogia. Exemplo deste balancé é, sem sombra de dúvida, a entidade Tempo [que tanto se estende - no aeroporto - e cresce - na Ilha - como escasseia ou falha (numa trajetória englobando, algo paradoxalmente, a míngua e a abundância)], com a qual se ‘empanturra’ o narrador, desejoso de ofertar aos pobrezinhos algumas “conchas” temporais “ainda em bom uso. [...] Só um tudo-nada puído [as] nos cotovelos.” (idem: 78). Mas quem anela, hoje em dia, por uns farrapitos têxteis temporalmente usados?

3. A leitura plural, defluindo do item anterior, que é generosamente ofertada ao leitor hermeneuta, brindado, desde o incipit, com o vocativo enganadoramente ternurento “meu amor”.

Numa perspetiva psicanalítica, o fatalismo inerente ao nascimento na Ilha configura simbolicamente a ulterior condição do Homem e do Escritor ilhéu. É ele que decide, porventura inconscientemente, fazer um “ajuste de contas” consigo mesmo e com o espaço insular (do latim: insula, insulae), no encalço incessante da mítica pureza islenha de antanho, a qual, doravante contaminada, apenas se poderá lobrigar no avatar do seu transplante em terras do Novo Mundo. Daí, a apóstrofe das raízes que, entranhadas, doem - ao invés do que acontecia na sua “anterior encarnação” (idem: 54), quando era menino e, mais tarde, aquando jovem residente numa “república” em Coimbra -, o pavor no que respeita à irreversibilidade do tempo que se vai acumulando, a apostasia da fratura vulcânica que fere, a geminação dos corpos não apartáveis e a construção fragilizada do sujeito escrevente, submisso às rotas marítimas consubstanciadas pela(s) metáfora(s), no “sentido de transferência. Desvio de significação de uma palavra para outra. De um ser para outro ser. Tropo. Com ligações, claras ou subterrâneas, entre si. Por vezes clandestinas.” (idem: 25).

Do ponto de vista temático e sociológico, a sátira ‘matreirinha’ do fenómeno da emigração, carreando a caricatura magistral de certos emigrantes complexados, cuja partida se deve não tanto à superação da pobreza que grassava na Ilha, mas antes ao anelo utópico de aquisição de um estatuto de “grande senhor”, em quase tudo similar ao que, por privilégio de nascença, era concedido aos senhores feudais da Ilha-feudo. Assim é que desfilam, em sacrossanta procissão, a mentalidade estreita, conservadora ou provinciana, a ambição mesquinha do ganho iminente e do lucro rápido ou fácil, a teia da invejidade a desembocar nos ‘enredos’ da trapaça e a visão confrangedoramente redutora de um regresso apoteótico à Ilha como exteriorização de uma inexistente supremacia intelectual e de um falacioso triunfo materialista, na ausência de um genuíno progresso anímico.

Numa abordagem estilística, a hegemonia do humor sobre a ironia, ou seja, dessa operação de espírito que, lesta, deteta, mede e sublinha o desfasamento entre o ideal e o real, não se coibindo de pedir à ironia determinadas vias de pseudo-simulação tomadas de empréstimo. Nesta sequência, não se afigura despiciendo revisitar brevemente alguns desses recursos estilísticos.

- O fogo-de-artifício lúdico das palavras ‘fogosas’, aparentadas e apartadas pela via de divertida consulta do Dicionário Prático Ilustrado: “ - O meu relógio é uma matriz de infalibilidade. O teu, muito pelo contrário, parece uma meretriz de relaxamento. [....] Compreendi então a diferença entre os dois aferidores da idade dos homens. [...] Acho que outorguei toda a minha preferência ao segundo maquinismo. Mais maluco.” (idem: 82).

- O efeito cómico veiculado pelos diminutivos não hipocorísticos: “Fominha de séculos, Senhor Santo Cristo.” (idem: 92); “Um molhinho de passageiros em plena confraternização em trânsito. Que reconfortante é deixar cair os olhos nesse cachinho de pessoas.” (idem: 98); “[...] o senhor Afrânio padrinho [...] Quer apadrinhar e estar presente na cerimónia da apoteótica entrada do novel doutor na pacata e ordeira sociedade da cidadezinha há anos dorminhando de rabinho assado para o ar.” (idem: 101-102).

- A aliança de palavras que parecem contradizer-se (e, verdade seja dita, se contradizem...), tanto pela adjetivação inadequadamente expressiva, como pelo contraste entre o concreto (prosaico) e o abstrato (sublime), firmados não raro pela rima em final de frase: “Ainda se não passaram grandes momentos após ter a viúva palestrante tomado a peito fazer ressuscitar o defunto marido.” (idem: 93); “Para o fazer retornar às trabalheiras deste enchouriçado vale de lágrimas?” (idem: 93-94); “Não teve o industrial a dita de ter gerado descendentes directos. Legítimos ou de mão canhota, tanto monta.” (idem: 101).

- A adaptação subversora (pela negativa) de lugares-comuns, clichés e estereótipos: “ - Os senhores passageiros sem destino marcado no bilhete de passagem queiram dirigir-se a qualquer sala de embarque disponível. Porta alfa ou ómega. Atenção ao embarque anunciado...” (idem: 90).

- A profusão de asteísmos e de truísmos, reforçados pela focalização interna (voz dual, do narrador e da personagem) e pelo discurso indirecto livre: “A viúva vai em demanda da Ilha com o sentido de vender os bens que ao seu Joe pertenciam. Trabalhar uma vida inteira para os sobrinhos depois herdarem, não era trabalho abençoado de Deus. Do you know? Muito menos para irmãos. Cada qual se fosse governando com o que tinha. Quem quer uste que lhe custe! Mas enfim, nada de murmurações. [...] Cala-te boca!” (idem: 86).

- O recurso à antífrase, sob forma de falsa ingenuidade sarcástica, manipulando o valor (verdadeiro) do enunciado: “Nunca semelhante sociedade pacata, etcetra, poderia alguma vez consentir, em nome dos bons costumes e valores da família, que o filho de um vendedor de laranjas pudesse vir um dia a renegar o brasão dos seus antepassados vendilhões. Decidido fica por conseguinte que o filho de António Gaudêncio da Covoada, que de Coimbra veio com o canudo de leis no fundo da mala, passe a ser tratado com o respeito devido à sua pessoa e posição. - Eh laró, eh laró! É da doce e sumarenta, patroa!” (idem: 102): “Nela [em Fall River] existiam ao tempo [...] três clubes de diversão e cultura. O do Divino Espírito Santo, o de nossa Senhora de Fátima e o do Senhor Santo Cristo.” (idem: 126).

- A eventual sugestão de um enriquecedor intertexto, cujo papel passa a ser insolentemente invertido e desemboca na crítica da pseudo-intelectualidade e/ou da real ignorância: “[...] D. Cesarina andava sempre de atalaia no seu posto de vigia de mosca à vista. Ela acompanhava o marido em todas as circunstâncias e dizia para quem a queria ouvir que o seu Afrânio e o Antero de Quental faziam belas quadras porque ambos tinham muito vocabulário, além de serem oriundos da mesma Ilha. Pouco depois, e perante o pasmo da dona de casa, zumbiu a mosca islenha.” (idem: 166). Quem dá a sensação, com efeito, de ser relegado para segundo plano é o micaelense Antero de Quental...

Romance sobre o romance ou meta-romance, repassado de crónicas e de contos, Passageiro em Trânsito, obra cimeira da literatura portuguesa de feição açoriana, é o romance do entre. Até nesta conjuntura específica: entre o Autor, que não parece passar a vida “por via da inspiração, a roer em público o plástico traseiro da esferográfica”, e a crítica, que se não identifica com esses críticos que “fazem os seus biscates semióticos, e acabam por publicar autênticas peças sinfónicas em si maior.” (idem: 162).

Em si menor, talvez…
Maria do Rosário Girão Ribeiro dos Santos

“Acabado de escrever em Bracara Augusta aos 23 dias do mês de Julho de 2009. Acabado de ser revisto aos 27 dias do mesmo mês. Vale.”

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Agostinho da Silva perpetuado em Barca D´Alva com escultura de Eugénio Macedo. Uma excelente iniciativa do Município de Figueira de Castelo Rodrigo. O monumento ainda não foi oficialmente inaugurado, mas já se encontra no local.


Eugénio Macedo acabou de implantar em Barca D´Alva o monumento ao filósofo, ensaísta e escritor Agostinho da Silva.
A iniciativa foi do Município de Figueira de Castelo Rodrigo, que assim presta uma digna homenagem a Agostinho da Silva, um dos mais insignes e representativos filhos da região.
Trata-se de uma escultura da figura de Agostinho da Silva, sentado num banco, em tamanho natural, com vários tipos de granito e que se enquadra, de forma muito feliz, no anfiteatro ao ar livre, do cais do porto fluvial de Barca D´Alva, onde ficará a receber e a dar as boas-vindas aos inúmeros turistas e passantes que ali confluem. Permitindo-lhes que se sentem e descansem ao lado do grande filósofo, fonte inspiradora para meditar em tão bela paisagem ou, se não for esse o caso, apenas para tirar uma fotografia e levá-la como recordação.
É mais uma obra, de excelente qualidade artística, do escultor e artista multifaceado Eugénio Macedo, que se revela, desde já, mais um exlibris de Barca D´Alva.

José Manuel de Aguiar.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

25 de Novembro de 1975, in Relação de Bordo, 1964-1988, de Cristóvão de Aguiar.


Coimbra, 25 de Novembro de 1975

"Era de esperar este desfecho. Andámos a brincar às revoluções durante muito tempo e quem brinca com o fogo. Neste momento o panorama apresenta-se feio e muito confuso, pelo menos há um forte desânimo nas hostes de esquerda. Os reaccionários exultam e esfregam as mãos de contentes e desabafam: "Até que enfim que vai haver ordem e disciplina, no caos em que isto se tornou." Para começar, e não variar, pede-se já a ilegalização pura e simples do Partido Comunista, mas Melo Antunes, principal responsável pelo Grupo dos Nove e seu ideólogo, esfriou o entusiasmo desses ultramontanos da política portuguesa, ao declarar na televisão, para grande desgosto de muitos, que o Partido Comunista não vai ser ilegalizado, pelo contrário, vai ser tão necessário como os outros para a continuação da democracia portuguesa. Há todavia quem assegure que este vinte e cinco vai ser o princípio do fim do outro que em Abril aconteceu."

Cristóvão de Aguiar.

sábado, 14 de novembro de 2009

Cristóvão Aguiar versus José Saramago. Sobre "Caim".

Much ado about nothing
ou a Bíblia segundo Saramago















Tomei de empréstimo a Shakespeare o título de uma das suas mais hilariantes comédias. Penso que retrata bem a situação criada à volta da última obra de José Saramago, Caim. O muito barulho continua a furar-nos os tímpanos, e há-de continuar até à náusea, tanto na imprensa escrita como na difundida: artigos, entrevistas, opiniões públicas na rádio e televisão, em que ouvintes e telespectadores opinam sobre o que sabem e não sabem, maneira muito portuguesa de ser mestre em toda a arte, ou burro em qualquer parte, enfim, tudo o que imaginar se possa: até teólogos, politólogos e outros pedagogos de alto coturno… A origem de tal alvoroço na capoeira da paróquia reside nas declarações, estratégicas ou não, do autor do livro, no dia do seu lançamento, em Penafiel. O nada de toda esta lagariça será o romance que, na minha modestíssima opinião, está longe de merecer tamanho alarido.

Segundo o primeiro prémio Nobel português da Literatura, a Bíblia mais não será do que um “manual de maus costumes” e que “é preciso ter muito cuidado quando se lê a Bíblia”… Esta última afirma¬ção fez-me viajar através do tempo, como a personagem Caim do romance do mesmo nome, e ouvir de novo, quietinho para não levar um beliscão da catequista, o padre da minha freguesia, aí por volta de 1949, na altura em que lá chegaram pastores de credos evangélicos, que iam tentar a sorte com o sentido de pescar algumas almas para o seu seio. A leitura da Bíblia constituía o seu principal argumento, uma vez que o catolicismo pouco ou nada ligava ao Livro: quem não lia a Bíblia, sustentavam os pastores, não poderia compreender a palavra de Deus nem a doutrina de Jesus, nem muito menos as inovações e falsidades do Romanismo…

No Domingo seguinte, o padre, na homilia: “A Bíblia é de facto o livro sagrado dos cristãos, mas, caríssimos irmãos em Cristo, não deveis lê-lo, porque, além de difícil, não tendes luzes nem letras para compreender o verdadeiro alcance das palavras lá escritas quase sempre em parábolas; contentai-vos, irmãos, com as explicações das homilias dominicais, e não aceiteis a oferta desse livro, que sei que andam a dá-lo a quem quiser, pois, e caso aceitardes, entrará em vossas casas um livro do diabo…” Saramago não é católico, muito menos sacerdote, mas, as palavras por ele proferidas, numa entrevista ao Jornal de Notícias, de 19 de Outubro, deram-me, por instantes, a sensação de estar ouvindo o pároco da minha freguesia, nos meados do século passado… As palavras pouco se diferençam, e os argumentos são mesmo os mesmos… Não sei se isto abona ou não a favor do escritor que tem procurado, sem êxito, destruir alguns mitos do Velho e do Novo Testamento…

O escritor pode e deve destruir mitos. Mas, para derrubá-los, é mester saber em profundidade o que quer destruir. Lembro James Joyce que, com o seu romance Ulysses, destruiu a cultura clássica porque era um grande conhecedor e especialista nessa matéria. O próprio José Saramago afirma que “Nunca fui um leitor assíduo da Bíblia, mas penso que a conheço bastante bem”… Será que basta? Será assim tão fácil destruir um conjunto de livros de estilos e géneros literários diferentes que serviram de base e inspiração à Literatura e Cultura Ocidental: poesia, teatro, narrativa, música e até ao cinema? Na Faculdade de Letras que frequentei, um dos professores de Literatura avisava logo no início do ano: Quem não leu a Bíblia não pode compreender a Literatura Alemã, Inglesa, Portuguesa, Americana… Portanto, quem ainda o não fez, trate de colmatar essa grave lacuna… Tão ateu como Saramago seria esse professor, o que dá que pensar, sobretudo porque o Nobel Português afirma com a segurança de quem acaba de inventar a roda que a Bíblia devia estar escondida, em casa, fora do alcance das crianças, como se de medicamento perigoso se tratasse…

(II)
Sabendo-se pouco, isto é, sem a profundidade necessária, sobre o que se quer destruir, distorcer ou criticar, pode entrar-se num jacobinismo sem consequência, apenas para chocar o burguês, ou num anticlericalismo primário, como aconteceu durante o século XIX. Nesse tempo, o Deus do Velho Testamento era já considerado cruel, sangrento, bruto, tudo quanto dele diz agora, em segunda mão, o nosso Nobel da Literatura. Nada de novo, portanto! Dou como exemplo o poeta Guerra Junqueiro e o seu livro A Velhice do Padre Eterno. Quem o lê hoje? Quem se incomoda com as suas diatribes? Ouçamos Guerra Junqueiro:

As crianças têm medo à noite, às horas mortas,
Do papão que as espera, hediondo, atrás das portas […].
Não te rias da infância, ó velha humanidade,
Que tu também tens medo do bárbaro papão,
Que ruge pela boca enorme de um trovão,
Que abençoa os punhais sangrentos dos tiranos,
Um papão que não faz a barba há seis mil anos,
E que mora, segundo os bonzos têm escrito,
Lá em cima, detrás da porta do infinito!

Tudo isto é fogo-de-artifício, bem escrito, mas que nada adianta, porque não desce aos infernos da dúvida… É tempo de citar o Eclesiastes:

Não há nada de novo neste mundo. Aparece qualquer coisa e alguém diz: ‘Olha, isto é novo!’ Mas tudo aquilo já existiu noutros tempos, muito antes de nós. Já ninguém se lembra das coisas passadas e o mesmo acontecerá com as do futuro; não se recordarão delas os que vierem mais tarde” […].

É muito difícil ser original. E Saramago não o é. Pelo menos neste seu último romance, Caim, que se situa no Velho Testamento, nem muito menos no Evangelho Segundo Jesus Cristo, que tem como campo de confronto o Novo Testamento.

Escrevi acima que este livro não merecia o alarido que dele está sendo feito. Por duas razões: Primeira, porque o barulho não se deve à leitura do livro; segunda, porque não se trata de uma obra maior do escritor. Foram sopradas as trombetas de Jericó, não cuido nem interessa se intencionalmente, e derrubaram-se os muros da nossa cidade ou paróquia provinciana, que mostrou à saciedade que milhares dos seus habitantes ainda não saíram da idade da pedra no tocante à literatura, mas correram às livrarias para se abastecerem do romance e grande parte deles também da Bíblia. Afinal, Saramago está a ser colaborante ou então o aviso grave que fez sobre a perigosidade da Bíblia deu efeito contrário. Não conseguiu apear o mito!

José Saramago, quanto a mim, atingiu o apogeu em No Ano da Morte de Ricardo Reis, embora os dois primeiros romances, Levantado do Chão e Memorial do Convento, sejam duas obras de grande valor. É humano e natural que um escritor tenha curvas ascendentes e descendentes. Quando se alcança o cume, o que se segue é a descida. O que é preciso é saber sair a tempo, sem dramas, a fim de se não estragar o bom que para trás ficou. Saramago, com Caim, continua em linha descendente. Há por lá muitos lugares-comuns e expressões infelizes, impróprios de um escritor da sua envergadura. Escrever um livro em quatro/ cinco meses, como confessou numa entrevista televisiva, se bem que o assunto lhe estivesse a latejar há muitos anos, não será bem avisado. Aquando da publicação de A Viagem do Elefante, título que poderá ser interpretado tanto no sentido literal como no figurado, sendo que este, no meu entender (a interpretação é livre), significaria o percurso de um grande escritor (o elefante) que, com aquele livro, iria pôr um ponto final na sua carreira literária. Com certeza que alguns dos críticos maldizentes da sua obra anterior o intuíram, porque logo se apressaram ao beija-mão ou ao panegírico fúnebre: “Trata-se de um hino à Língua Portuguesa”, cantaram em coro… A nossa língua deve ser um volumoso hinário de que já ninguém se lembra nem das músicas nem das letras. Excitações… Do romance Caim foi escrito: literatura pura… Quem há-de gabar o noivo senão…?

(III)
Em continuação do santo Evangelho segundo José Saramago, é bom não esquecer que o tema do pecado de Caim, o primeiro assassino da humanidade, a tomar como verídicas as palavras do Génesis, não foi uma novidade trazida pelo nosso Nobel à Literatura. Já antes dele, Byron, Baudelaire, Victor Hugo e Tournier trataram do assunto com outra elevação, adiante-se já a bem da verdade. O que irrita em Saramago, neste seu último romance, é a leviandade e a pobreza de ideias e falta de argúcia interpretativa com que trata os textos bíblicos, não raro lançando mão de uma linguagem escabrosa, que pouco dignifica quem a utiliza.

Exemplifique-se: “O lógico, o natural, o simplesmente humano, seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim…”; ou, na mesma página: “Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor, abraão era um refinado mentiroso…”; mais adiante, na página 106, escreve o Nobel: “Lúcifer sabia o que fazia quando se rebelou contra deus, há quem diga que o fez por inveja e não é certo, o que ele conhecia era a maligna natureza do sujeito”… Linguinha de prata, como se diz na Ilha! Saramago já veio pedir desculpa por ter chamado filho da puta ao senhor. Mas, como bom teólogo que está provando ser, logo acrescentou: “Ele não é filho da puta, porque não tem pai nem mãe!”

Nada disto me choca no sentido religioso, mas convenhamos que o vazio de ideias e a escrita paupérrima, esses sim, escandalizam quem quer que seja, crente, ateu ou agnóstico, sobretudo quem ama a boa escrita e detesta mentes distorcidas!

(IV)
Saramago analisa o texto bíblico ao pé da letra. Atente-se nesta invectiva do Nobel a um teólogo, numa entrevista televisiva:

“Que autoridade têm os senhores para pôr na Bíblia o que lá não está escrito?” Que me desculpe o escritor, mas parece que a sua interpretação bíblica pede meças à das Testemunhas de Jeová e à dos Adventistas do Sétimo Dia, que esperam Cristo desde 22 de Outubro de 1844, pelas contas feitas, e bem feitas, pelo seu fundador, William Miller, antes pertencente à igreja Baptista e depois fundador do Adventismo por ter interpretado a Bíblia de modo diferente do dos baptistas. Nas suas contas baseou-se nas profecias de Daniel. Está escrito! E o que está escrito é a palavra de Deus… e a ela não se pode mudar um til! Deu no que deu: em 22 de Outubro de 1844, toda a gente, de olho no céu, à espera e Jesus não desceu… Grande foi a desilusão: ficou para a história como o Dia do Grande Desapontamento. Houve debandada quase geral dos fiéis. Sentiram-se defraudados: foram enfileirar-se noutros credos, fundando outros… Mas, e há sempre uma interpretação à letra que nos pode sair ao caminho: Os poucos que restaram fiéis à igreja, agora dirigida por Helen White, a profetisa dos adventistas, escreveu: Cristo realmente principiou a viagem, mas ficou a meio, em quarentena, num lugar entre o céu e a terra, esperando por melhor ocasião para aterrar no nosso planeta…

Não abona muito em favor de um romancista da envergadura de Saramago ser tão estrito na interpretação de um livro polissémico. E tanto assim é que há centenas e centenas de igrejas cristãs, todas elas baseadas no mesmo livro, a Bíblia, cujos textos, pelo visto, podem ser interpretados de milhentas maneiras, ao gosto da imaginação de cada qual. Cada uma religião cristã de per si (e todos os dias nasce uma nova agremiação) são, segundo os seus pastores e teólogos, as únicas verdadeiras, as que melhor interpretam a palavra inspirada de Deus… Vamos agora fazer um exercício com dois romances de José Saramago: Jangada de Pedra e No Ano da Morte de Ricardo Reis. Se os interpretarmos como Saramago o faz em relação à Bíblia, temos que, na Jangada de Pedra, a Península Ibérica se desarreiga do resto da Europa e vai pelos mares afora em forma de jangada… Assim está escrito, assim se deve interpretar, caso contrário ainda podemos ter Saramago de dedo em riste a ameaçar: “Com que autoridade pões nos meus livros o que lá não está?” O mesmo em relação ao outro romance, em que o seu autor traz Ricardo Reis (heterónimo de Pessoa) do Brasil, onde se encontrava homiziado, para Lisboa, via marítima, ressuscita-o, fá-lo viver na capital durante algum tempo, morrendo-o mais tarde e enterrando-o no cemitério do Alto de São João. Quem poderá acreditar nisso, se tomado à letra? Duas ricas metáforas serão, que como tal devem ser interpretadas, mas Saramago não consente… A avaliar pela sua exegese bíblica, tem a razão do seu lado, como sempre… Até quando discursou, em Lisboa, nas comemorações do 25.º aniversário da Revolução de Abril: Se não tivesse havido revolução, o país estava como está!

Só de um Nobel, na altura ainda a cheirar a novo, poderia sair tal pesporrência. Pôs aquele ovo na sessão comemorativa e logo abandonou a sala, para ir dizer missa em outra freguesia, que a ocasião era de discursatas… Ninguém objectou. Temor reverencial!

(V)
Nada há de novo debaixo da rosa do Sol! Nem tão-pouco o tema de Jesus Cristo, que Saramago, no seu Evangelho, apesar de páginas sublimes, não consegue desmistificar o emaranhado que se teceu à volta da figura de Jesus e seus discípulos, sendo por vezes mais fácil acreditar no Novo Testamento do que na versão saramaguiana (coteje-se os dois textos sobre o milagre das Bodas de Caná, o da Bíblia e o do Evangelho), e ficar-se-á elucidado. Essa tarefa desmistificadora coube, porém, entre outros, a Renan, em A Vida de Jesus), a Gèrard Messadié, em Um Homem que se tornou Deus, que o autor transformou em romance (edição esgotadíssima da Difusão Cultural, que esteve ao lado do Evangelho, nas livrarias, et pour cause). Trata-se de um estudo profundo sobre o primeiro século da nossa era, em que o autor é especialista. Lido, como foi o caso, na altura em que saiu, seis meses antes de o Evangelho, de Saramago, fez com que este me tivesse sido uma desilusão, tanto pela celeuma que levantou por causa do então secretário da cultura, que fez o jeito de o proibir de concorrer a um concurso internacional, como pelo consequente exílio dourado de Saramago, em Lanzarote, embezerrado com a pátria e os seus governantes…. Outros dois livros de uma teóloga alemã, Uta Ranke-Heinemann, professora de teologia católica na Universidade de Essen: Eunuchs for the Kingdom of Heaven (Eunucos para o Reino dos Céus) e, sobretudo, Putting Away Childish Things (Deixando de Criancices, tradução livre, minha) ed. HarperSanFrancisco, 1992, que lhe valeu a irradiação da cadeira de Teologia, passando a leccionar História das Religiões. Os assuntos doutrinais-chave de que trata e se desmistifica neste livro são: The divinity of Christ; the Virgin Birth; the empty tomb (o sepulcro vazio), e muitos outros, que a autora considera distorcerem a mensagem do Jesus autêntico e genuíno…

De resto, tem sido o PSD um grande adjuvante na promoção da obra saramaguiana: no século passado, foi o secretário da cultura; neste, o inefável deputado europeu… A juntar às declarações explosivas de Saramago, em Penafiel, que tanta balbúrdia tem causado, fica o ramalhete publicitário bem florido e rematado. Saramago não acredita, mas tem anjos da guarda a zelar pelo êxito comercial de algumas das suas obras mais polémicas… O autor do romance Caim deve ser dos homens mais tementes a Deus em todo o planeta…

(VI)
No JL, de 3 de Novembro, Miguel Real, entre muitas outras coisas, escreve: “Em Caim permanece o estilo tradicional de Saramago (já amiúde analisado), tanto barroquizante (…) (uma floresta de palavras (sublinhado meu) ilustradora de uma ideia) e anarquizante (uma espécie de everything goes), isto é, a confluência de um léxico antigo e vernacular – avonde (pp.16 – com um vocabulário moderno, desenhando um melting pot semântico, aparentemente espontâneo, pelo qual a lógica do texto cria as suas próprias hierarquias gramaticais e ideológicas (…)".

O estilo enxuto, descarnado, nunca foi dom de Saramago. O escritor explica tudo até à exaustão, o que não raro se torna enfadonho. Dir-se-ia que há uma inundação de palavras, grande parte delas inúteis, como se tivesse ocorrido uma séria avaria na canalização provinda da nascente criadora. Por esta e outras razões, muita boa gente letrada costuma(va) afirmar, em surdina (o politicamente correcto vigora com força), que se a certos livros de Saramago fossem retiradas cem ou cento e cinquenta páginas, não perderiam nada: pelo contrário, ficariam mais claros, exactos, sucintos…

Quando assim acontece, alguma coisa está podre no reino da literatura. A arte de dizer muito em poucas palavras é difícil, dura, requer muito esforço, muita lima, muita monda… Escrever é cortar! Veja-se Miguel Torga, um dos mais elevados expoentes de concisão de escrita! Se lhe fosse retirada uma só palavra de uma frase ou de um verso, logo ficariam mancos…

Não posso acreditar numa arte literária em que palavra menos palavra vai tudo dar ao mesmo…

Os lugares-comuns sempre ocuparam uma posição de relevo na obra romanesca de Saramago. Só do romance Caim extraí uma caterva deles: máquinas de encher chouriços; do pé para a mão; dar tempo ao tempo; para aí virado; fazendo das tripas coração; carta branca; mal se podia ter nas pernas; dois coelhos de uma cajadada; a carne é supinamente fraca (genial, o acrescento do advérbio); chorar o leite derramado (expressão traduzida, à letra, do inglês: em português de lei seria: depois de o mal feito, chorar não é proveito; mas, veja-se a frase completa, para aquilatarmos da genialidade de quem a engendrou: “Chorar o leite derramado não é tão inútil quanto se diz, é de alguma maneira instrutivo porque nos mostra a verdadeira dimensão da frivolidade de certos procedimentos humanos, porquanto se o leite se derramou, derramado está e só há que limpá-lo, e se abel foi morto de morte malvada é porque alguém lhe tirou a vida (…)” (Lili Caneças não diria melhor!) …

E por aqui me quedo, que agora me não apetece fustigar mais. Uma nota ainda: durante a leitura do livro, ouvi dezenas de vezes, a matraquear-me no pensamento, o diálogo do Ambrósio com a Senhora, tantos são os algos que o escritor utiliza ao longo do livro: “O que eu queria era algo, Ambrósio, algo de bom, entende, Ambrósio?!” “Entendo, sim, Mylady”…

Analise-se alguma da tão autoproclamada ironia saramaguiana, associada a um humor do mais fino recorte. Examinemo-los, contextualiza¬dos, em alguns passos de Caim:

“Falaste como um livro aberto, disse o querubim, e adão ficou contente por ter falado como um livro aberto, ele que nunca havia feito estudos. (…)”, pp. 30;

“(…) Esta espada de fogo, para alguma coisa servirá finalmente, basta chegar-lhe a ponta em brasa aos cardos secos e à palha e tereis aí uma fogueira capaz de ser vista desde a lua (…) acabaria por pegar fogo ao jardim do éden, e eu ficaria sem emprego (…)”, pp. 31;

“O velho das ovelhas não estava ali, o senhor, se era ele, dava-lhe carta-branca (hífen da minha responsabilidade), mas nem mapa de estradas, nem passaporte, nem recomendações de hotéis e restaurantes (…)”, pp. 78;

“Há que levar em consideração o facto de caim estar mal informado sobre questões cartográficas (…)”, pp. 80;

Acerca do jerico em que caim percorria o mundo através do espaço e do tempo: “Pena não haver ali alguém que soubesse interpretar os movimentos das suas orelhas, essa espécie de telégrafo de bandeiras com que a natureza o dotara, sem pensar o afortunado bicho que chegaria o dia em que quereria expressar o inefável, e o inefável, como sabemos, é precisamente o que está para lá de qualquer possibilidade de expressão (…), pp.81 (uma das mais profundas definições de inefável jamais proferidas);

“O anjo fez cara de contrição, Sinto muito ter chegado atrasado, mas a culpa não foi minha, quando vinha para cá surgiu-me um problema mecânico na asa direita, não sincronizava com a esquerda, o resultado foram contínuas mudanças de rumo que me desorientavam, na verdade vi-me em papos-de-aranha (palpos-de-aranha?) para chegar aqui (…)”, pp. 88… etc., etc.

A conjugação verbal da segunda pessoa do plural é tão vulgar no Norte do País e em Trás-os-Montes, que toda a gente a sabe utilizar de olhos fechados. Ao invés, no romance Caim, as misturadas são frequentes. Do mesmo modo, o descaso votado à diferenciação de tempos verbais não é despicienda. Apenas um exemplo dos muitos que poderiam ser dados “[Eva] ia, como alguém dirá, decentezinha, embora não pudesse evitar que os seios, soltos, sem amparo, se movessem ao ritmo dos passos. Não podia impedi-los, nem em tal pensou (pensara, tinha ou havia pensado), pp. 26.No tocante à conjugação verbal da segunda pessoa do plural, analisemos apenas algumas em que o autor se ensarilha e ninguém dos seus acólitos lhe acudiu: “(…) Depois é convosco, aí já não posso nada, arranjem (arranjai) maneira de se juntarem (vos juntardes) à caravana, peçam (pedi) que os contratem (vos contratem) só pela comida, estou convencido de que quatro braços por um prato de lentilhas será bom negócio para todos, tanto para a parte contratada, quando isso acontecer não se esqueçam (vos esqueçais) de apagar a fogueira, assim saberei que já se foram (vos fostes) (…)”, pp. 31.

Poderia continuar o massacre, mas não vale a pena: a um Nobel todos os pecados lhe são perdoados. Os estudiosos que o dissecam, como as beatas o Missal Romano, lá se encarregam de lhe transformar os erros em virtudes e em novas regras… Que¬rem continuar sentados ao redor da fogueira, soprando em sustenido as trombetas da louvaminhice, rindo às gargalhadas quando o patrono conta ou escreve uma frase humorística, sem piada nenhuma, na esperança de conseguir, pela devoção que lhe dedicam, a sua migalhinha de fama e prestígio, no universo globalizado da literatura! É tempo de proclamar: O rei vai mesmo nu… Nuinho em folha!

Outra das pechas que enxameiam o livro e a Língua Portuguesa: não tenho a menor dúvida, a menor ideia! Menor do que quê? Trata-se de um comparativo de inferioridade. Melhor seria escrever ou dizer não tenho a mais pequena dúvida ou a mínima ideia!

Sobre o tempo dos verbos, no discurso indirecto, há também pouca segurança ou mesmo ignorância: em pano nobelizado também chovem nódoas negras… Que dizer desta frase de Eva, no Éden, em resposta a Deus passeando pela brisa da tarde (título do livro do mesmo nome, de Mário de Carvalho, retirado do Génesis: “A serpente enganou-me e eu comi, Falsa, mentirosa, não há serpentes no paraíso, Senhor, eu não disse que haja serpentes no paraíso (…)”, pp.19.

Haja Deus! Nem um simples discurso indirecto Eva consegue encarreirar… “Não disse que haja. Não disse que havia”, assim é que está certo, D. Eva Saramago del Rio! A mesma sábia que escreveu: “Se Deus existisse, já tinha vindo falar com Voltaire e Saramago”. Ó prosápia das prosápias, tudo é prosápia e vaidade!

Tempo de fechar a tenda desta escrita. Vou já arrumar o livro na estante, junto dos irmãos colaços. Tenho a esperança de que no futuro um dos meus trinetos ou tetranetos o tire da prateleira para o ler e possa, depois, atestar, com a segurança que o tempo costuma reiterar, ou retirar, às grandiosidades fabricadas no presente, nessa altura já pretérito muito perfeito: “Foi este o primeiro Nobel da Literatura de Portugal? De certeza?"

Quanto a mim, não insisto: desisto. Não sei se perdi ou ganhei tempo. Quando o embaixador de Espanha, Porras & Porras, apresentou as credenciais ao Rei D. Carlos para encetar as suas funções diplomáticas no nosso País, El-Rei terá comentado com um dos ministros do reino: “Não é pelo nome, é pela insistência”… Eu também não insisto mais. Nem que me caiam pedaços de céu velho em cima da cabeça. Mais não ponho na carta, já vai mui longa.


Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006