quinta-feira, 18 de junho de 2009

Marilha ou as marés da inquietação. Crítica literária de Victor Rui Dores, in Faial Online. 17- 06-2009.

Um livro por semana XXX
17 de Junho de 2009
Marilha
ou as marés da inquietação

Falar de Cristóvão de Aguiar é falar da força telúrica de uma escrita que, ainda e sempre, parte ao encontro das raízes e fica entre a ilha e a viagem. Uma escrita que, mergulhando fundo no húmus da oralidade e da linguagem popular das ilhas açorianas (essencialmente a de S. Miguel) dignifica sobremaneira a literatura portuguesa.

Falar deste autor é também falar da exigência estética, pois que estamos perante alguém que possui uma arte literária e cultiva um estilo próprio, sendo de salientar a regionalização de uma linguística (consagradíssima em Raiz Comovida, sua obra emblemática), a exploração da sonoridade, a manipulação a nível lexical, a ordenação rítmica, a ousadia sintáctica, a par de outros recursos e virtualidades: imaginação verbal, capacidade narrativa e mestria discursiva..

Cristóvão de Aguiar é, efectivamente, um persistente e incansável trabalhador da palavra pois que, com notável afinco, escreve e reescreve os seus livros, assumindo nesta matéria uma posição que julgo ser única no âmbito da actual literatura portuguesa.

Vem isto a propósito da publicação do seu romance Marilha (Dom Quixote, 2005) que resulta precisamente da reescrita de dois livros deste autor – Grito em Chamas (edições Salamandra, 1995) e Ciclone de Setembro (editorial Caminho, 1985) – que agora se constituem numa só obra dividida em duas partes, mas com um fio condutor que as interliga.

Atentemos no título: Marilha, “a sílaba primordial de mar quase aberto e as restantes palatizadas no lh de ilha” (pág. 281) é Marília: mar e ilha. O mar, aprisionamento e evasão, é símbolo eterno de um regresso às águas amnióticas do ventre materno. A ilha, sendo a beleza e o fascínio, simboliza a mulher genesíaca e fecunda, a mulher-ilha – Marília – princípio e fim de todas as coisas, portadora da vida e da morte, anunciadora dos sinais e dos mistérios.

Recorrendo à memória e à invenção, e através de um processo de cruzamento entre a experiência real e a reelaboração desse mesmo real, Cristóvão de Aguiar lança, neste livro, profundas interrogações sobre a condição humana.

Está aqui o tema maior deste autor: os sonhos perdidos da infância insular enquanto paraíso irremediavelmente perdido e enquanto aprendizagem feita, na família e fora dela, através de muitas interrogações, aquisições e angústias… Que o diga Severianinha que, por ser canhota, é castigada pela solteiríssima professora D. Jacintha da Luz, a “Caracola” que, na sua escola, não admite coisas diabólicas. “Cruzes, canhoto”…

Marilha é um tumulto de memórias e recordações. Aqui se fala de um povo obediente e temeroso em busca de uma redenção e de uma salvação nos “incertos caminhos da emigração” (pág.275). Aqui se fala de um sentido da vida, de uma ancestralidade virada para a dimensão humana: a vida e a morte, os sonhos desfeitos, as vozes resignadas, as inquietações e alegrias, o mar e a distância, a ausência e a saudade, as partidas e os regressos, o fluir do tempo, os encontros, os reencontros, os desencontros…

As personagens são muito humanas, mas não menos frenéticas e tumultuosas… São personagens do infortúnio e do sobressalto que vivem num universo abrasado e perturbador e se movimentam num contexto rústico e telúrico da ilha de S. Miguel, a freguesia da Tronqueira (porventura um outro modo de dizer Pico da Pedra, terra natal do autor), onde a tensão se sobrepõe à acção e a intensidade ao conflito.

Ressalta, desde logo, tia Severiana de Jesus, cujo grito estridente acontecido numa manhã de Agosto põe em alvoroço a vizinhança. Motivo: por engano, Severiana acabava de ver as suas economias consumidas pelo fogo. Uma consumição, tanto mais que a poupança (treze contos de reis, uma fortuna para quem era pobre) estava destinada a um negócio apalavrado de Ti Aristides, seu marido. Tudo começou quando ela esvaziou na boca do forno a gaveta atafulhada de velhos recibos e outra tralha inútil. Só que com a tralha lá se foram os treze contos de réis, “queimados para todo o sempre”…

O grito (agónico) de Tia Severiana é o drama de um povo triste em tempo de subdesenvolvimento, pobreza, intolerância e opressão.

A acção situa-se no primeiro quartel do século XX , desenrolando-se até aos nossos dias. Há ecos da Primeira Guerra Mundial. Aqui se recorda a gripe pneumónica trazida pelos tripulantes de um navio japonês e que causou 2000 vítimas na ilha de S. Miguel. Como se não bastassem as “convulsões telúricas”, os poderes instituídos exerciam então funções de vigilância repressiva: o regedor, a professora Caracola, o padre Crisóstomo. Os ricos eram ricos (o doutor Virgínio de Medeiros, Dona Taveira Moniz e o industrial Jovino de Faria) e os pobres cada vez mais pobres (José dos Reis, cantador, o Guilherme, maluco e vagabundo, Chico Moleiro… E há o Angelino Bem-Falante, o Almeida Progressista, Presidente da Casa do Povo, o Couvinha, dono do Café Pérola Tronqueira, Jacinto Correia, o arqueólogo e Dona Clarinda, sua esposa. Há festanças e há a filarmónica Música Nova e há beatas que engrolam o terço e há muita e desvairada gente que alimenta mexericos… Neste, como em todos os livros de Cristóvão de Aguiar, ouve-se um malho a bater na bigorna…

Num discurso (em monólogo interior) balançado entre o passado e o presente, o narrador capta, com notável poder de observação e extraordinária pormenorização, o “espírito do lugar” desse microcosmos da Tronqueira. Cortará o “cordão umbilical” que o liga(va) a esta freguesia e rumará para o espaço mais vasto de Coimbra, “cidade sem mar” (pág. 224). Na memória levará a recordação do Pai, da Mãe, de Vavó Luzia, do Largo do Coreto e do povo que é seu: pedreiros, sapateiros, moleiros, cantoneiros, lavradores, campónios, corcundas, aleijados e tantos outros “servos da gleba”… Na sua memória há-de ecoar as badaladas do relógio da Torre da Matriz, o convívio com Marília no Café Milhafre e a visão apetecível da baía de ver passar navios… Não se concretiza o desejo de assistirem ao nascer do sol na Serra da Lagoa do Fogo, na Ponta da Madrugada ou na Ponta do Silêncio porque, entretanto, ocorrerá um eclipse total do sol…

De resto o narrador continuará a sentir a acidez do limão galego que vai espremendo nas agruras da sua vida… Ri-se da prosápia de alguns e da bazófia de muitos… Revisitará Tronqueira e aí encontrará uma nova geração de lavradores e “exércitos de funcionários públicos”… Longe vão os tempos em que um velhote não queria aceitar a instalação de luz eléctrica na freguesia… Agora é tempo de uma nova ordem social. O regime autonómico vigora nas ilhas e fala-se dos “custos da insularidade ou da insalubridade” (pág. 247).

Estamos perante uma escrita que é também ela lugar de confronto, porque Cristóvão de Aguiar denuncia as verdades ilusórias, renuncia às máscaras de um quotidiano alienante, questiona os mitos do nosso passado e as mitologias do nosso presente incerto.

Considero que uma das facetas mais aliciantes da arte verbal deste escritor reside na perspicácia da sua ironia. Refira-se, a propósito, as referências que, a pretexto da defesa da dignidade canina, nos são dadas aos cães das Faculdades de Letras, Direito, Medicina e Ciências e Tecnologia…

De salientar o processo de intromissão de uma voz narrativa que surge (grafada em itálico) enquanto veículo de uma visão da realidade ficcionada e que poderá muito bem ser o autor enquanto responsável pelo texto narrativo. Este mesmo processo havia já sido experimentado em Trasfega, seu livro anterior.

Rico de espessura evocativa e bem carpinteirado, Marilha aí fica a merecer a nossa melhor atenção. Porque este é, decididamente, um livro que se lê com infinito prazer.


Victor Rui Dores, in Faial Online Publicação Periódica Online
faialonline@gmail.com

Sem comentários:

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006