sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

2.º Volume do livro Memórias do Rock Português, de Aristides Duarte, 2010

O 2.º Volume de "Memórias do Rock Português" estará à venda a partir de 27 de Fevereiro.

O livro tem 252 páginas. Contém 19 biografias de bandas importantes (não contempladas no 1.º Volume), 24 entrevistas com músicos de bandas(e artistas)importantes de Rock português (das décadas de 1960, 1970, 1980 e 1990) e 8 relatos pormenorizados de concertos a que assisti nas décadas de 1970, 1980 e século XXI.
Contém "memorabilia", fotos de concertos e reproduções de capas de discos. Para além disso contém mais bibliografia, lista de blogs e sites da internet relacionados com o Rock português e uma listagem de bandas não referidas no 1.º Volume,cronologicamente alinhadas, por décadas.
A capa (já publicada neste blog) foi, entretanto, motivo de um "upgrade" e será publicada no próximo fim-de-semana.
Desta vez a capa do livro será revestida (laminada) com um película plástica para que possa ser manuseada , sem que se deteriorem as cores.
O preço do livro será o mesmo das edições anteriores do 1.º Volume, apesar do aumento das páginas (13 euros). Para encomendas feitas directamente e pagamento antecipado por transferência bancária terão que se acrescentar os portes de correio. Também poderá ser enviado à cobrança. Contactar pelo e-mail: akapunkrural@gmail.com

O prefácio de António Manuel Ribeiro (UHF) foi alvo de uma revisão pelo próprio músico.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Desalojados da Madeira, abrigados em camaratas como se estivessemos na Segunda Guerra Mundial.

Não posso deixar de manifestar a minha indignação e de exprimir o que senti ao ver as vítimas da tragédia, que se abateu sobre a Região Autónoma da Madeira, alojadas em camaratas indignas, com as televisões a devassarem a sua intimidade. Será que com o dinheiro gasto no Falcon não poderiam ter alojado aquelas vítimas em pensões de 3 estrelas? -Já não digo hotéis.
É triste, muito triste, enviados especiais da RTP, preterindo a RTP Madeira... e outras televisões para apenas difundirem imagens online da internet e entrevistas degradantes. Governantes de Falcons e as pobres vítimas em pavilhões de bombeiros, centros de acolhimento ou o raio que o valha.
Caridade, entrevistas, pesar, contas bancárias, dinheirinho... e as vítimas no pavilhão!
Não teria sido bem mais eficaz patrocinar pequenas empresas da indústria hoteleira e alojar, com dignidade, aqueles pobres coitados?

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

CORREIO DOS AÇORES ENTREVISTA: Tertúlia Açoriana - Cristóvão de Aguiar, escritor e poeta : Escrever por amor à literatura

Tertúlia Açoriana - Cristóvão de Aguiar, escritor e poeta : Escrever por amor à literatura


28 Janeiro 2010 [Cultura]

“Hoje em dia fala-se em narrativa ou ficção, embora continue a haver romance e conto, e até prosa poética, poema em prosa, o que significa que as fronteiras entre os géneros literários se diluíram. Quanto a mim, será difícil catalogar. Talvez a narrativa seja o que melhor se coaduna com o que tenho publicado, embora haja entre a minha obra diários, contos…”


Correio dos Açores - Nome, naturalidade, cidade e país onde reside?

Cristóvão de Aguiar, de nome completo Luís Cristóvão Dias de Aguiar, nado e criado (até aos vinte anos) na freguesia de Pico da Pedra, de onde saí para Coimbra em 1960, com destino à Faculdade de Letras. Desde então, e com pequenas intermitências (Guerra Colonial, Leiria), aqui tenho vivido, exercido a minha profissão docente (Leitor de Língua Inglesa da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra) durante 32 anos. Encontro-me aposentado desde 2002, mas continuo a viver em Coimbra, agora em part time, visto que passo longas temporadas na Ilha do Pico, lugar de São Miguel Arcanjo, onde mandei construir uma casa.

O Primeiro livro que leu?

O primeiro livro que ouvi ler foi a Bíblia. Depois, logo que me apetrechei com as ferramentas da leitura, continuei na Bíblia; no Liceu, no antigo 3.º ano, o professor de Português, Dr. Ângelo Raposo Marques, mandou-nos ler a Morgadinha dos Canaviais, leitura obrigatória. Talvez tenha sido o primeiro que li. Encantou-me de tal maneira que, ainda hoje, o releio uma vez por outra, a ver se recupero o paraíso perdido…

Versos de pé quebrado

Quando sentiu o chamamento para a escrita?

Principiei, como não podia deixar de ser, pelos versos de pé-quebrado. Meu Avô materno e um Tio, filho dele, eram poetas repentistas. Meu Tio escrevia para o Diário dos Açores não só quadras e sextilhas mas também a correspondência do Pico da Pedra. Nessa altura chamava-se correspondente do jornal, uma honra, além de se receber o jornal de graça. Quis imitá-lo, tudo a escrita principia por uma imitação, e, anos depois de ele ter embarcado para a América, também me tornei correspondente do Diário dos Açores e depois do Correio dos Açores. Naquele publiquei uns versos, na página de Letras, creio que em Setembro de 1957, no último, no tempo do Dr. Read Henriques, tornei-me colaborador, mesmo depois de vir para Coimbra. Também escrevi versos e prosa no semanário A Ilha, de Manuel Barbosa. Tudo para esquecer…


Qual é o seu género literário?

Hoje os géneros literários não estão ba lizados. No meu tempo de estudante liceal, distinguia-se entre romance, novela conto, na prosa; na poesia, entre soneto de verso heróico e alexandrino, quadra de redondilha maior e menor, respectivamente de sete e cinco sílabas, sextilhas, quintilhas, oitava rima… Uma dor de cabeça para quem os tinha de estudar. Hoje em dia fala-se em narrativa ou ficção, embora continue a haver romance e conto, e até prosa poética, poema em prosa, o que significa que as fronteiras entre os géneros literários se diluíram. Quanto a mim, será difícil catalogar. Talvez a narrativa seja o que melhor se coaduna com o que tenho publicado, embora haja entre a minha obra diários, contos…


Na escola primária era habitual ter boas classificações nas redacções?

Só não era bom aluno em desenho à vista, um pesadelo de caçarolas e vasos e jarras… As redacções, na instrução primária, eram uma espécie de chapa: o professor explicava o que devíamos escrever e o resultado era uma espécie de vasos comunicantes, ou de Comunicação dos Santos. Ficava tudo mais ou menos igual. Só no Liceu, já no Curso Complementar de Letras, é que o meu professor de Português, o Doutor Almeida Pavão, elogiava a minha maneira de escrever.


Sonetos, de Antero


Há algum livro dos seus que gostaria de reescrever?

Tenho reescrito todos eles com o afã de quem os escreve pela primeira vez e altero muito, a ponto de alguns críticos, como Luiz Fagundes Duarte, dizerem ou escreverem que se trata de um livro novo, como aconteceu com Marilha, sequência narrativa que inclui Grito em Chamas e Ciclone de Setembro, publicados muito antes, separadamente, e por ordem cronológica inversa.


Quais os livros que publicou e o mais recente?

Quer mesmo a lista completa? Não será fastidioso para os leitores; que não têm nenhuma culpa dos meus pecados mortais? Já que insiste; lá vão eles; por ordem cronológica e por ela se vê o último que dei a lume: Mãos Vazias; O Pão da Palavra; Sonetos de Amor Ilhéu (poesia); Breve Memória Histórica da Faculdade de Ciências; Alguns Dados sobre a Emigração Açoriana; Raiz Comovida (trilogia romanesca); Ciclone de Setembro (romance ou o que lhe queiram chamar); Com Paulo Quintela À Mesa da Tertúlia; Passageiro em Trânsito; Braço Tatuado; Emigração e Outros Temas Ilhéus; A Descoberta da Cidade e Outras Histórias; Grito em Chamas; Relação de Bordo I, II e III (diário ou nem tanto ou talvez muito mais); Trasfega; casos e contos; Marilha; sequência narrativa; A Tabuada do Tempo; Charlas Sobre a Língua Portuguesa; Cães Letrados… Ainda há as traduções: A Riqueza das Nações; de Adam Smith; A Nobre Arquitectura, poemas de António Arnaut, traduzidos para inglês… Eu bem o avisei da chateza…


Indique-me um livro de um escritor açoriano de que gostaria de ter sido o autor?

Sonetos, de Antero de Quental.


A ‘casa de putas’


Como se relaciona com outros escritores?

Com os poucos com quem me relaciono, muito bem. Mas a chamada República das Letras mais parece uma “casa de putas”…


Pensa enriquecer como escritor?

Em Portugal só enriquecem os escritores bestsellers, como os Saramagos, Lobo Antunes, José Rodrigues dos Santos, e os ou as da profundíssima literatura cor-de-rosa, a que é conhecida por light; os outros, como eu, nem às vezes os direitos de autor recebem. Seja tudo pelo amor da Literatura…


Que livro nunca recomendaria a um amigo?

Preferia recomendar a desaconselhar… Mas não recomendaria nenhum dos livros da Margarida Rebelo Pinto.

Que livro gostaria de deixar e que ainda não escreveu?

Não vou com certeza escrever mais nenhum livro como a trilogia romanesca Raiz Comovida. Assim sendo, será este, portanto, que gostaria que ficasse como testemunho. Até já deu o nome a uma rua do Pico da Pedra…

afonsoquental@hotmail.com

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Discurso do Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados Portuguesa na Abertura do Ano Judicial 2010.



Discurso do Bastonário na Abertura do Ano Judicial


27-01-2009

Exmo. Senhor Presidente da República Exmo. Senhor Presidente da Assembleia da República Exmo. Senhor Ministro da Justiça Exmo. Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça Exmo. Senhor Procurador Geral da República Exmo. Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa Exmos. Senhores Magistrados Meus Caros Colegas Senhoras e Senhores convidados

Começo por evocar a figura do Colega Dr. Fernando Amaral, falecido no fim da semana passada e cujo funeral se realizou anteontem.

O Dr. Fernando Amaral foi um grande advogado e um probo cidadão que se distinguiu também na acção política e que sempre actuou com rectidão e elevado sentido de responsabilidade.

Ao evocá-lo nesta circunstância, faço-o também para exortar todos os advogados a reverem-se nas suas qualidades de carácter e nos valores por que orientou a sua actividade profissional e a sua acção cívica.

Fernando Amaral foi um grande Advogado, foi um grande Democrata, foi um cidadão exemplar.

Por isso, não é só a sua família que está de luto. É também a nossa democracia; é também a Advocacia portuguesa.

Dizer que a justiça está em crise é um lugar comum que ao longo do tempo se foi esvaziando de sentido.

Tudo está em crise nos tempos actuais e não se vislumbram saídas redentoras. Da política à economia, passando pelo sistema financeiro, pelo ensino, pela saúde, pela comunicação social e, obviamente, acabando na última instância de regulação que são os tribunais, nada escapa ao sentimento generalizado de desconfiança.

Instalou-se na sociedade portuguesa um sentimento de profunda desconfiança que atinge sobretudo as instituições públicas e os órgãos do estado.

Não se confia no governante porque (devido a um amplo conjunto de situações mal esclarecidas) as pessoas duvidam que as grandes decisões políticas que envolvem vultuosos recursos públicos sejam tomadas mais em benefício de interesses individuais ou de grupos privados do que em benefício do interesse colectivo

Não se confia no legislador, porque se teme que as leis e os actos normativos em geral visem mais responder a casos concretos e individuais a que alguns legisladores estão ligados do que a conter soluções gerais e abstractas para os problemas da sociedade em geral.

Não se confia no médico, porque, pela prática de alguns, teme-se que as suas prescrições sejam feitas mais no interesse do laboratório que lhe financia congressos turísticos do que em benefício da saúde do doente.

Já não se pode confiar no jornalista que nos contacta porque alguns deles não actuam em respeito dos valores do jornalismo e da deontologia profissional mas antes ao serviço dos interesses dos clientes de algumas agências de comunicação com quem têm relações ocultas e perversas.

Não se confia na investigação criminal porque muitas vezes são demasiado evidentes os indícios de que essas investigações não são orientadas na procura da verdade mas antes para a comprovação de certezas previamente estabelecidas, visando a incriminação a todo o custo dos suspeitos.

Há sérias razões para suspeitar que algumas investigações visam, em simbiose com o jornalismo sensacionalista, conseguir a criação artificial do alarme social tão necessário à aplicação de severas condenações ou de desproporcionadas medidas de coacção.

Não se confia no juiz que julga porque muitos deles não possuem as qualidades pessoais necessárias ao bom desempenho dessa função – não possuem a calma, a sensatez e a maturidade

necessárias a um julgador - e alguns deles parecem mais preocupados em exibir os seus enormes poderes do que em fazer justiça com isenção, com imparcialidade e com rectidão.

Infelizmente, em Portugal, alguns juízes parecem estar mais interessados em mostrar poder para serem temidos do que em decidir bem para serem respeitados.

A situação atingiu tais dimensões que já não se pode confiar no Advogado, porque os poderes de estado, incluindo o poder judicial, estão a desrespeitar as suas prerrogativas funcionais previstas na Constituição da República Portuguesa e consignadas em leis da República.

Fazem-se ou importam-se leis que visam transformar os Advogados portugueses em zelosos colaboradores das autoridades judiciais nacionais e/ou europeias, chegando ao ponto de querer obriga-los a denunciar os seus próprios clientes, ou a agir como alongamentos secretos de investigadores policiais ou judiciais.

E alguns sectores do governo não escondem mesmo o desejo de tutelar os advogados, chegando a anunciar que os seus escritórios irão ser sujeitos ao controlo de uma polícia económica governamental.

Para isso procura-se reduzir a advocacia a uma mera actividade económica e os seus escritórios a estabelecimentos comerciais tout court, ignorando-se ostensivamente a sua relevância constitucional.

Por que é que se pretende exigir tabelas de preços pelos serviços de advogados, quando uma lei da Assembleia da República determina que esses serviços não são tabeláveis, estatuindo que os honorários devem ser fixados de acordo com a importância dos serviços prestados, de acordo com a dificuldade e a urgência desses serviços, de acordo com o grau de criatividade intelectual do Advogado na sua prestação, de acordo com o resultado obtido, de acordo com o tempo despendido, de acordo com as responsabilidades assumidas e ainda de acordo com uma série de usos profissionais fixados em regulamento e que até variam de comarca para comarca?

Por que é que se pretende exigir publicamente livros de reclamações, quando as únicas entidades que, por lei, podem escrutinar a actividade dos Advogados são a Ordem dos Advogados e os tribunais?

Como é que se pretende exigir tudo isso quando a lei diz expressamente que compete à Ordem dos Advogados regulamentar o exercício da respectiva profissão e exercer, em exclusivo, jurisdição disciplinar sobre os advogados.

E mais: quando foi o próprio estado que delegou na Ordem dos Advogados o exclusivo da função reguladora – não para privilegiar esses profissionais mas antes para garantir que a sua função constitucional que exercem nos tribunais seja levada a cabo livre de quaisquer constrangimentos e com a independência necessária a quem, no exercício dessa actividade, tem de enfrentar o poder das polícias e, muitas vezes, opor-se com firmeza e determinação a decisões dos próprios magistrados.

Por outro lado, estamos a assistir a um crescente desrespeito evidenciado por parte de alguns magistrados em relação às prerrogativas e imunidades que a CRP prevê e que a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ) e o próprio Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA) estabelecem para os advogados portugueses.

Trata-se de prerrogativas e imunidades que, tal como as prerrogativas funcionais dos magistrados, foram criadas não como privilégios corporativos ou pessoais mas sim como garantias dos cidadãos de que poderão confiar nuns e noutros; de que poderão confiar nos Advogados que escolherem para os patrocinar, pois eles - enquanto profissionais independentes e titulares de uma função constitucional - não poderão ser alvo de medidas que diminuam o alcance prático e normativo dessas garantias.

Infelizmente, temos assistido nos tribunais portugueses a permanentes perseguições e agressões morais a Advogados que não são apenas desprestigiantes para o estado de direito, mas sobretudo constituem graves ameaças ao próprio estado de direito.

Condenam-se advogados em taxas de justiça e multas por actos praticados no âmbito do mandato forense, em nome e no interesse dos mandantes, como se os mandatários fossem partes no litígio – e isso sem um juízo prévio de conformidade ou desconformidade desses actos com o EOA como exige a LOFTJ.

Os arguidos e os seus mandatários estão, por vezes, anos e anos à espera de um julgamento, pois tudo é lento, muito lento até ao julgamento.

Porém, quando se inicia a audiência tudo se acelera numa pressa delirante, sem que, muitas vezes, os arguidos possam exercer sequer os mais elementares direitos de defesa previstos na lei.

A isso junta-se uma permanente falta de respeito pelos Advogados que chega ao ponto de se proferirem decisões contendo expressões formalmente injuriosas, formalmente ofensivas da honra pessoal e profissional desses Advogados sem quaisquer consequências para os seus autores, sendo certo que a ausência, ao menos, de um juízo de censura constituirá sempre um estímulo para o alastramento dessas práticas.

A consequência mais visível dessa situação é a quantidade de processos judiciais – em matéria crime e cível que são instaurados reciprocamente entre magistrados e Advogados - com uma pequena diferença: os processos dos Advogados contra magistrados são todos ou quase todos arquivados, mas os processos dos magistrados contra Advogados chegam todos ou quase todos a julgamento, dando quase sempre origem a condenações e a chorudas indemnizações.

Chega a ser deprimente a forma como alguns magistrados se comportam em tribunal, enquanto partes nesses processos, procurando, a pretexto de alegadas ofensas à função, obter elevadas indemnizações pessoais, naquilo a que já se chama uma espécie de «peculato moral» - ou seja, em que, para lavar supostas ofensas à função, se entrega dinheiro ao titular da função pretensamente ofendida.

É necessário proceder às pertinentes alterações legislativas para pôr cobro a estas situações, que desprestigiam ainda mais a justiça e os tribunais portugueses.

Para que possa prosseguir, por exemplo, o processo crime instaurado por Advogado contra um magistrado por alegadas ofensas à honra profissional do advogado deverá exigir-se que a Ordem dos Advogados se constitua assistente, pois só a ela verdadeiramente cabe a defesa da dignidade da Advocacia.

Deverá outrossim exigir-se que o processo crime instaurado por magistrado contra Advogado por ofensa à honra funcional do magistrado só possa prosseguir se o respectivo conselho superior se constituir assistente, pois só ao Conselho Superior da Magistratura e ao Conselho Superior da Ministério Público verdadeiramente compete a defesa da dignidade das respectivas magistraturas.

Em caso de acção cível e como condição de procedibilidade deveria igualmente estatuir-se a exigência legal de o respectivo órgão regulador emitir um prévio juízo de conformidade ou desconformidade com o respectivo estatuto funcional e profissional dos actos integradores da causa de pedir.

Enquanto tais alterações não forem estabelecidas vamos continuar a assistir a esse espectáculo degradante para a justiça portuguesa.

Mas pior do que tudo isso, chegou-se já ao ponto de não se poder confiar nos Advogados porque os seus escritórios podem ser alvo de buscas sem respeito pelas suas imunidades legais e constitucionais.

As prerrogativas e imunidades profissionais dos Advogados são garantias a favor dos cidadãos e da boa administração da justiça

Portanto, aquilo que o poder legislativo outorga pela porta da frente (e que consta da CRP, da LOFTJ e do EOA) não pode ser retirado pelo poder judicial pela porta das traseiras. Aquilo que é concedido pelas leis da República não pode ser desrespeitado pela prática judicial.

O fundamentalismo justiceiro que se instalou em certos sectores judiciais, sobretudo ligados à investigação criminal, sente que vale tudo para apresentar resultados espectaculares, mesmo que espectaculares só sejam as acções desencadeadas e não os resultados obtidos. Aliás, parece mesmo que a espectacularidade de certas investigações judiciais é inversamente proporcional à sua eficácia real.

Somos permanentemente bombardeados com notícias sobre grandiosas acções de investigação que dão excelentes manchetes ou aberturas de telejornais, mas sobre as quais, durante anos e anos, não se conhece nenhum resultado palpável.

Parece que certos processos em investigação, que aliás são baptizadas com designações

espampanantes, bem ao estilo das acções militares ou de espionagem, só produzem efeitos para certos órgãos da comunicação social, indiciando a existência de relações promíscuas entre os investigadores e esses órgãos de comunicação social.

Parece também, infelizmente, que algumas investigações estão mais vocacionadas para conseguir o aplauso estridente dos sectores mais justiceiros da sociedade portuguesa do que para descobrir crimes e punir os seus autores.

Mas não é só no domínio da investigação criminal. Também alguns julgadores já foram contaminados por esses métodos de acção, originando condenações verdadeiramente desproporcionadas para a gravidade dos delitos em causa.

Infelizmente, um juiz que cumpra com probidade e recato os seus deveres funcionais e aplicar a lei com respeito pelos critérios legais estabelecidos, com ponderação, com sensatez, com respeito pelos direitos dos arguidos e dos seus mandatários, estará condenado a um quotidiano anónimo e rotineiro, mas se não cumprir nenhum desses deveres tem sérias possibilidades de se tornar vedeta mediática e herói dos sectores mais fundamentalistas da nossa sociedade.

Assiste-se em muitos casos a uma espécie de Paradigma de Pilatos, o tal que lavou as mãos e permitiu que a questão fosse decidida pelos justiceiros que se concentravam em frente ao seu palácio.

Só que hoje, o que parece seduzir alguns magistrados já não é, obviamente, a mesma multidão que há 2000 anos exigiu a libertação de um criminoso e a condenação de um inocente, mas antes a turba mediática que exige e exulta com condenações cada vez mais pesadas e leis cada vez mais implacáveis.

Em muitos processos, quando se chega ao julgamento, já não é a acusação que tem de demonstrar a culpa dos arguidos; são estes que têm provar a sua inocência, pois, devido à acção conjunta de certos órgãos de comunicação social e de certos investigadores, há muito que esses arguidos estão condenados perante a opinião pública e a sua absolvição, mesmo quando justa, exigirá um esforço adicional do julgador e dificilmente será compreendida e aceite pela sociedade.

Já se chegou ao ponto de, até certas práticas que ao longo de anos foram levadas a cabo nos tribunais portugueses, com o conhecimento e mesmo com a autorização de magistrados, serem de repente transformadas em tenebrosos crimes punidos com penas de prisão absolutamente irracionais pela sua desproporcionalidade em relação à gravidade dos factos e ao grau de culpa dos arguidos.

Os magistrados que assim actuam podem ser temidos mas nunca serão respeitados. E, numa sociedade democrática, não tem futuro uma justiça que não é respeitada pelos cidadãos a quem se destina.

Exmo. Senhor Presidente da República Exmo. Senhor Presidente da Assembleia da República Exmo. Senhor Ministro da Justiça

É preciso que os magistrados sejam respeitados mas é igualmente necessário que eles respeitem os cidadãos e os Advogados nos tribunais; é imperioso que os tribunais respeitem as imunidades dos Advogados e a inviolabilidade dos seus escritórios.

Um escritório de um Advogado só pode ser alvo de buscas quando haja fortes indícios de que o Advogado em causa cometeu um crime que permita essa diligência.

Eu próprio venho afirmando (o que, aliás, me tornou alvo de muito incompreensões) que o papel dos Advogados é o de auxiliar uma pessoa que cometeu um crime a defender-se em juízo e não o de a auxiliar a cometer o crime e muito menos o de cometê-lo em nome dela.

Porém, já existem sérias razões para suspeitar que alguns Advogados são constituídos arguidos em certos processos-crime, unicamente para se poderem efectuar buscas aos seus escritórios e às suas residências com a finalidade de obter provas contra os seus clientes.

Repito: uma busca a um escritório só deverá ser efectuada quando houver indícios seguros de que o advogado em causa é autor ou comparticipante num crime que admita essa perigosa intrusão e o respectivo mandado deve indicar com precisão o concreto elemento de prova a apreender.

É esta a essência do patrocínio, é esta a essência da Advocacia em qualquer estado de direito democrático. Quando assim não for não haverá democracia, muito menos estado de direito.

Convém recordar que, fora de flagrante delito, a busca ao escritório de um advogado só poderá ser autorizada quando houver fortes indícios dos crimes de terrorismo ou de criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada;

Não se podem permitir buscas ao escritório de um advogado unicamente para, através do método de arrasto, tentar encontrar quaisquer provas que incriminem os seus clientes. Essas práticas judiciais constituem degenerescências que devem ser eliminadas e que a Ordem dos Advogados combaterá com firmeza.

É óbvio que no escritório de um qualquer advogado que patrocine um cidadão ou uma empresa em processo-crime estarão sempre elementos que poderiam ser muito úteis à polícia e ao Ministério Público para a sustentar as teses da acusação. Mas isso não autoriza que se possa lá ir buscá-los; isso não permite que mesmo um juiz de direito realize uma busca judicial a esse escritório. Uma das provas limite que servem para avaliar a consistência do estado de direito democrático é precisamente o respeito pelas prerrogativas e imunidades dos Advogados.

Não compreender isto é não compreender a essência do estado de direito democrático, é não compreender os limites que ele próprio estabelece à acção da justiça, justamente para que seja estado de direito, justamente para que seja estado democrático.

Sempre disse que os casos concretos de violação da legalidade devem ser punidos exemplarmente. O que não se pode admitir é que, a pretexto dos abusos de alguns, se eliminem os direitos de todos.

Uma palavra mais para reafirmar a profunda preocupação da Ordem dos Advogados com as mais recentes reformas na área da justiça e que apontam para um afastamento ainda maior dos cidadãos dos tribunais.

Os tribunais são órgãos que administram a justiça em nome do povo.

A administração da justiça assenta em três funções complementares entre si que são exercidas por juízes, por procuradores e por advogados.

Não há tribunais quando faltam os titulares de alguma dessas funções.

Por isso é incompreensível que em recente alteração legislativa, a gestão dos tribunais tenha sido entregue em exclusivo aos titulares de uma dessas funções com afastamento das outras duas.

Não há tribunais sem procuradores da república, como não há tribunais sem advogados. Por isso, uns e outros devem ter na gestão dos futuros tribunais de comarca um lugar compatível com a importância das respectivas funções, sendo certo que o advogado, enquanto representante dos cidadãos que vão a tribunal, tem um direito acrescido a esse reconhecimento, justamente porque os tribunais existem para administrar a justiça em nome do povo.

Por outro lado, é necessário garantir no novo mapa judiciário uma justiça de proximidade.

Não é curial obrigarem-se os cidadãos a deslocar-se a tribunais de outros concelhos quando as diligências processuais e os julgamentos podem ser realizados nos juízos existentes no seu concelho, bastando apenas que os magistrados lá se desloquem.

Há regiões do país onde os cidadãos precisarão de dois dias para se deslocarem em transportes públicos a certos tribunais. Por isso não é lícito exigir tamanho sacrifício aos cidadãos unicamente por comodidade dos magistrados e funcionários judiciais.

Está em curso desde há vários anos um processo de desjudicialização da justiça, a que tem de se pôr cobro rapidamente.

A justiça tem de ser, só pode ser administrada nos tribunais por magistrados e advogados e não em repartições por funcionários públicos, muito menos em entidades privadas orientadas para o lucro ou por burocratas em arremedos de tribunais.

A justiça tem uma dimensão de soberania que não pode ser alienada por necessidades economicistas ou por interesses corporativos. Por isso só nos tribunais ela deve ser administrada, pois só assim cumprirá o seu desígnio constitucional.

A desjudicialização da justiça constitui um perigoso retrocesso civilizacional que trará consequências funestas para a sociedade democrática e para o estado de direito, se entretanto não for atalhada.

Uma das formas por que se materializa essa desjudicialização é através das elevadas custas judiciais que são exigidas em tribunal. A justiça não pode ser transformada num bem de luxo que o estado coloque no mercado a preços impeditivos.

Infelizmente, quanto a este aspecto, a OA não pode deixar de condenar com veemência o novo Regulamento das Custas Processuais, cuja entrada em vigor foi diferida para Abril próximo.

Trata-se de um diploma que contém medidas extremamente gravosas para os cidadãos e para as empresas, impedindo-os ainda mais de recorrer aos tribunais.

A OA não pode aceitar que os sinistrados em acidentes de trabalho e vítimas de doenças profissionais deixem de beneficiar da isenção de taxas de justiça nem que os custos com exames médicos passem a ficar a cargo do trabalhador quando antes eram suportadas pelas companhias de seguro.

A OA não pode aceitar que se crie e deixe ao arbítrio do julgador a aplicação de uma taxa sancionatória especial que pode chegar às 15 Unidades de Conta nem que, nas acções executivas, se onere ainda mais a posição do credor com o aumento da taxa de justiça, beneficiando indirectamente os devedores.

A OA não pode aceitar que a taxa de justiça varie em função do número de processos instaurados no ano anterior, nem que se exija a cada interveniente o seu pagamento na totalidade logo no inicio do processo, nem que o autor com ganho de causa só tenha direito às custas de parte, se tiver recorrido aos meios alternativos para resolução do conflito.

Enfim, a Ordem dos Advogados está contra esse diploma porque ele mais não visa do que afastar os cidadãos dos tribunais e dificultar a acção dos seus mandatários em juízo, tornando assim a justiça ainda mais inacessível devido ao seu insuportável custo.

O novo diploma prevê a isenção de custas judiciais para os magistrados e para todos os vogais do Conselho Superior de Magistratura (incluindo os não magistrados), em quaisquer acções em que sejam parte por via do exercício das suas funções.

E por que é que não se prevê igual isenção para os advogados nas acções em que os mesmos sejam parte por via do exercício do patrocínio forense?

Exmo. Senhor Presidente da República Exmo. Senhor Presidente da Assembleia da República Exmo. Senhor Ministro da Justiça

Apesar do diagnóstico da justiça que acabo de fazer poder parecer pessimista, ele é, na realidade, lisonjeiro por defeito. Todos sabemos que ele corresponde apenas a uma parte da verdade.

Mesmo assim quero terminar, como o fiz há um ano, com uma palavra de esperança e de confiança.

Os poderes soberanos do estado de direito democrático, incluindo, obviamente o poder judicial, podem contar com a Ordem dos Advogados e com o Bastonário, para a construção de soluções consistentes para os problemas da justiça e dos tribunais. Não contem connosco para ocultar esses problemas; não contem connosco para ficar calados.

Muito obrigado.

Lisboa, 27 de Janeiro de 2009

A. Marinho e Pinto

Fonte: Ordem dos Advogados

TVI

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Cristóvão de Aguiar apresenta livro "Anamnese" de José Ferraz Alçada, no dia 23 de Janeiro de 2010, na Casa dos Açores Norte, na cidade do Porto.

" "Anamnese" de José Ferraz Alçada, edição de autor. Trata-se de um conjunto de contos (alguns premiados) e de crónicas que o autor publicou no Comércio do Porto e no Jornal de Notícias. Digo-vos: escrita de se lhe tirar o chapéu. Domínio da língua, consciência social.
Ferraz Alçada nasceu em Belmonte em 1938, frequentou o Liceu da Guarda e licenciou-se em Medicina na Universidade de Coimbra. Pneumologista, exerceu em Moçambique e em Vila Nova de Gaia, entre outros locais. Agora vive na sua quinta na aldeia da Vela, a que está ligado desde a infância.
As estórias referem-se, a maior parte delas, a situações, personagens e paisagens nossas conhecidas por serem da nossa região. O autor conta-nos essas estórias com uma mestria invulgar, pelo que recomendo vivamente que comprem um exemplar desta "Anamnese" que, presumo, deve vender-se nas papelarias locais ou na Livraria Municipal."

Américo Rodrigues Texto retirado do blogue Café Mondego.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Blogues e livros, in blogue "Mau Tempo no Jornal", por Pedro Barros Costa.


Quando a escrita diarística se publicava em livro e não na internet, Cristóvão de Aguiar deu à estampa três volumes de Relação de Bordo — “diário ou nem tanto ou talvez muito mais”. Leitura de férias natalícias, com segundo volume adquirido na feira do livro da Tabacaria Açoriana, em Ponta Delgada. Prosa escorreita, de trechos sintéticos, pelos quais perpassa a trilogia geográfica Ilha/Continente/América, ao longo de três décadas de divisão existencial do insular. Interessante, também, a acesa polémica sobre a literatura de marca açoriana entre o autor e o crítico Vamberto Freitas. Hoje, os blogues, registos diários on-line, resultam em livros; talvez num amanhã não muito distante estes livros, registos diários em papel, resultem em blogues.

Mau Tempo no Jornal , 05 de Janeiro de 2010

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

DOIS HOMENS DE TRÁS-OS-MONTES, Miguel Torga e Paulo Quintela, por Cristóvão de Aguiar.


"Aqui, na cidade de Bragança, coração de Trás-os-Montes, grave delito seria não recordar dois grandes vultos da cultura portuguesa do século XX, Paulo Quintela e Miguel Torga. Outros haveria que realçar como o Abade de Baçal, historiador, etnógrafo, arqueólogo, autor das Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, cujo V volume é o célebre livro, Os Judeus no Distrito de Bragança… E João Araújo Correia, médico na cidade da Régua e um dos grandes Mestres da Língua Portuguesa, que mereceu de Aquilino, outro brilhante cultor da Língua, estas expressivas e legítimas palavras: «Mestre de nós todos há cinquenta anos a lavrar nesta terra ingrata e ímproba seara branca do papel almaço, e somos velhos, gloriosos ou ingloriosos, pouco importa; mestre dos que vieram no intermezzo da arte literáriacom três dimensões para a arte literária sem gramática, sem sintaxe, sem bom senso, sem pés nem cabeça; e mestre para aqueles que terão de libertar-se da acrobacia insustentável e queiram construir obra séria e duradoura». Isto só para mencionar os que desapareceram.
Sem desprimor para os dois vultos transmontanos atrás mencionados, e que de per si mereciam uma conferência inteira, ou mais, só irei debruçar-me, e espero não me despenhar da altura a que ambos se guindaram, sobre a obra e personalidade de outras duas individualidades transmontanas, mais chegadas à minha afeição, com quem durante anos convivi em Coimbra e de quem recebi grandes lições de vida, cultura, humanidade e humanidades: Paulo Quintela, filho desta cidade, onde nasceu em 1905, e Miguel Torga, natural de São Martinho de Anta, o seu lugar de onde e o seu centro do mundo, como tantas vezes escreveu nos seus livros… Paulo Quintela foi um germanista de renome internacional e um dos melhores tradutores das línguas germânicas para a Língua Portuguesa. Dir-se-ia, sem pingo de exagero, que nacionalizou esses poetas e escritores estrangeiros, principalmente alemães, para a Literatura Portuguesa, dela ficando a fazer parte: Rilke, Hölderlin, Goethe, Nietzsche, Hauptmann, Nelly Sachs e tantos outros, incluindo muitos poemas ingleses de Fernando Pessoa, a pedido de Georg Rudolf Lindt, crítico alemão, lusitanista, estudioso e tradutor de Pessoa. E foram esses poetas maiores da Literatura Universal, sobretudo Rilke, que influenciaram alguns poetas portugueses, dos quais destaco Eugénio de Andrade e o próprio Miguel Torga. Como se isto não bastasse, Paulo Quintela, um apaixonado pelo teatro e por Gil Vicente, havia de ressuscitar a sua obra dramatúrgica para as tábuas do palco, até então sepultada na poeira dos compêndios. Excetuavam-se algumas tímidas, fugazes e nem sempre logradas tentativas do Teatro Nacional Dona Maria, que, nos meados dos anos trinta do século XX, o pôs em cena. E terá sido um espetáculo, com excertos da obra de Mestre Gil, uma silva vicentina, representado por essa companhia, em uma noite de Verão, no Pátio da Universidade de Coimbra, que o catapultou para pôr de imediato a obra vicentina em
cima do palco. Escreveu ensaios sobre a obra do maior homem de teatro português, e deu a conhecer aos leitores portugueses as Líricas Castelhanas, de Gil Vicente, publicadas em livro, em meados dos anos sessenta, no Cancioneiro Vértice. Porém, Quintela não se quedou por Gil Vicente: encenou outros grandes dramaturgos; os trágicos gregos: a Medeia, de Eurípedes; a Antígona, de Sófocles; o Prometeu Agrilhoado, de Ésquilo; O Grande Teatro do Mundo, de Calderón de La Barca; Retablillo de don Cristóbal e A Sapateira Prodigiosa, de Frederico García Lorca. Nesta última peça, foi o próprio Quintela quem representou o papel de sapateiro, o principal, porque o ator que o devia interpretar ter comunicado, na véspera da estreia, que não podia comparecer – valia Quintela saber de cor todos os papéis das peças que
encenava; O Tartufo, de Molière, além de alguns portugueses contemporâneos, como Miguel Torga; José Régio e Raul Brandão… Graças ao TEUC (Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra), fundado em 1938, e que se estreou com a Farsa de Inês Pereira, foi possível a Paulo Quintela, seu diretor artístico durante mais de trinta anos, dar a conhecer não só Gil Vicente como todos os dramaturgos atrás referidos, fazendo do TEUC uma verdadeira escola de teatro por onde passaram gerações e gerações de estudantes, que, após a formatura, continuaram a lição do Mestre, organizando grupos de teatro nas locais onde foram exercer a sua profissão.
Como dizia, foi nesta cidade de Bragança que nasceu, em Dezembro de 1905, Paulo Manuel, oitavo rebento de uma prole de dez, sendo o pai pedreiro e a mãe padeira. Aqui se criou, iniciou e concluiu os estudos elementares e liceais, que o haviam de guindar à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde se matriculou no ano letivo de 1922 /1923, ainda com a idade de dezasseis anos. Aluno brilhante, concluiu o curso de Filologia Germânica com distinção, e foi bolseiro da Fundação Humboldt, o que lhe proporcionou viver, estudar e ensinar, em Berlim, durante seis anos. Com a subida de Hitler ao poder, regressou a Coimbra e à sua Faculdade, passando a exercer, durante mais de quarenta anos, o magistério nas Literaturas e Culturas Germânicas. Aqui jaz, no cemitério do “Alto do Sapato”, desde o dia 10 de Março de 1987.
Delito grave seria também deixar em silêncio o nome de Miguel Torga, um dos mais grados escritores de sempre da Literatura Portuguesa e, durante grande parte do percurso da existência, íntimo amigo de Paulo Quintela e seu companheiro de lides e aventuras literárias. Procurarei, nesta minha despretensiosa comunicação, deslindar o que os uniu e depois os separou para sempre, tentando o milagre, sempre possível, de um reatamento de relações post mortem…
Entre ambos existia uma amizade enraizada num acerado amor que consagravam a Trás-os-Montes, o «Reino Maravilhoso», de onde ambos eram oriundos. «Que belo é ter um amigo! Ontem eram ideias contra ideias. Hoje é este fraterno abraço a afirmar que acima das ideias estão os homens. Um sol tépido a iluminar a paisagem de paz  onde esse abraço se deu, forte e repousado. Que belo e natural é ter um amigo!» ─ escreveu Torga, no dia 4 de Fevereiro de 1935, no primeiro volume do Diário, referindo-se a Quintela, que conhecera um ano antes na cama de um hospital em Coimbra.
No Segundo Congresso Transmontano, realizado nas Pedras Salgadas, em Setembro de 1941, ambos participaram com duas conferências. A de Miguel Torga intitulava-se «Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes)»; a de Paulo Quintela, «Um Poeta de Trásos- Montes», Miguel Torga. E era o Poeta: «Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador. Tudo parado e mudo. Apenas se move e se faz ouvir o
coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente rasga a crosta do silêncio uma voz de franqueza desembainhada: «─ Para cá do Marão, mandam o que cá estão!» Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós? Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena: ─ Entre! ─ A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso.»
Por seu turno, Paulo Quintela: «Mas não se nasce impunemente em Trás-os-Montes, no Alentejo ou à beira-mar. Quer dizer que a paisagem, se não é o único fator determinante, é contudo primordial elemento de formação e informação. Se a poesia é no fundo expressão ─ expressão mágica ─ das coisas e dos seres, da Vida, é evidente que essa expressão há de ser em certa medida condicionada pela maneira como esses seres e coisas se nos revelam e nos solicitam, pela luz que os banha, pelo horizonte em que estão implantados, pelo ângulo por que se contemplam. O homem da planície terá uma vivência das coisas e dos homens muito diversa da do montanhês. Horizontes vastos e planos, monótonos, em que as figuras se perdem ou ficam reduzidas a contornos imprecisos, convidam a erguer os olhos e a contemplar o céu. Daqui
─ falo, evidentemente, em termos amplos que admitem toda a sorte de exceção que não abalará aliás a firmeza do princípio ─ (o próprio poeta de que me ocupo poderá por vezes parecer exceção...) ─ daqui, digo, a propensão contemplativa e a necessidade de fuga e libertação mística do homem nado e criado em ambiente destes. Daqui o caráter místico da grande literatura da estepe russa, por exemplo. Mas subamos agora uma montanha. As coisas na encosta que vamos escalando são-nos mais chegadas, mais íntimas, mais nossas, pelo esforço que pusemos em alcançá-las; a luz quebra e reflete de outra maneira nas lombas que nos rodeiam e nos limitam o horizonte; a subida é árdua, mas gostosa; o arcaboiço arfa, bate o coração encostado à fraga ou à árvore, e o arquejar do peito e a pancada do coração do homem da montanha faz-se hálito e pulsar da própria terra-mãe. Chega-se ao cimo. Mas não foi para contemplar o céu que nos aproximámos dele. Sobe-se a um monte para olhar cá para baixo, para dominar a terra que se alarga, se nos revela e nos convida. Foi no alto dum monte que o diabo patenteou a Cristo a sua maior tentação: «De novo o subiu o diabo a um monte muito alto: e lhe mostrou todos os Reinos do Mundo, e a glória deles, e lhe disse: Tudo isto te darei, se prostrado me adorares...» Deus em Cristo resistiu à tentação. Os homens sucumbem à veemência do desejo de posse do Mundo e da sua Beleza. Miguel Torga é, dos poetas portugueses modernos, o que está mais intimamente ligado à sua paisagem, que é a paisagem de Trás-os-Montes.»
Convoco agora o Poeta Manuel Alegre para, com a sua palavra poética, vir em meu auxílio. Na III Parte do seu livro, Coimbra Nunca Vista, intitulada «Abecedário de Coimbra», o poeta de Abril, grande amigo e admirador de ambos, empreende uma apolínea peregrinação afetiva através de individualidades que, em dado momento histórico-cultural, cunharam o caráter da cidade mítica. Nesse «Abecedário», figuram, entre outros, dois poemas dedicados às duas fragas graníticas transmontanas, um com o título de «Miguel Torga No Largo da Portagem»; o outro intitulado «Paulo Quintela». O dedicado ao autor de A Criação do Mundo do reza assim:
Todos os dias o poeta vem ao centro / sobe ao seu consultório e embarca para /dentro. / Diante da folha branca vai de viagem / navega sobre o tempo e nunca para / Há nele o canto de raiz e o verso vagabundo / da sua janela chega à outra margem / e dá a volta ao mundo / no Largo da Portagem.
Sobre Quintela escreve:
Nada sabíamos da língua portuguesa / e então sílaba a sílaba ele ensinou-nos / a música secreta das vogais / a cor das consoantes a ondulação o ritmo / o marulhar das frases e o seu / sabor a sal. / E também como pisar um palco / como falar como calar e sobretudo/ como sair de cena e entrar / no grande teatro deste / mundo. / Porque tudo era proibido e ele nos disse / que tudo pode ser ousado / desde que se aprenda a entrar a tempo / a colocar a voz e a não perder / a alma.
Nestas prodigiosas sínteses poéticas, de uma tão luminosa fundura a que só os príncipes da poesia têm o condão de descer ou de subir, encontra-se delineado um verdadeiro, muito completo e complexo programa de vida estética, intelectual e cívica, que tanto Paulo Quintela como Miguel Torga foram cumprindo enquanto por cá andaram. Nas facetas que no poema se realçam, tornou-se Quintela grande mestre e a sua obra de intelectual e o seu exemplo de cidadão empenhado deram disso testemunho. A poesia e a prosa de autores de «franças e araganças», que, através de traduções exemplares e recriadoras, naturalizou sem qualquer sotaque para português e que ficaram desde logo pertença da Literatura Portuguesa; se tivessem os seus autores cá nascido, seria decerto como ele as traduziu que escreveriam na nossa língua; o teatro vicentino que estudou e amou como ninguém desde os bancos do Liceu de Bragança difundiu e o elevou, depois, para o seu sítio condigno e certo: as tábuas do palco; o cidadão livre que sempre ousou ser, numa pátria contaminada por grandes medos miudinhos por tantas outras toxinas que lhe conspurcaram a atmosfera, não
raro tornando-se, armada ou armadilhada de um pesadume propenso e propício a que certas criaturas se bandeassem, fraquejassem e se perdessem, alma incluída, no céu da sua conversão…
No poema sobre Torga, Manuel Alegre, em palavras sucintas e certeiras, como é timbre dos grandes Poetas, delineia e recria, minuciosamente, o quotidiano do Poeta de Orfeu Rebelde. Era do seu consultório, no Largo da Portagem, que o Poeta, depois de regressar da noite, quase sempre insone, de macerado trabalho poético, em sua casa, zarpava todos os dias para viagens que só ele sabia deslindar. Transcrevo o
poema de abertura do 1.º Diário, 3 de Janeiro de 1932, (Torga iniciava e rematava sempre os seus Diários com um poema), que reflete esse trabalho noturno, noctívago, a que se entregava com a devoção de um crente da poesia que nunca deixou de ser:
Deixem passar quem vai na sua estrada. /Deixem passar / Quem vai cheio de luar. /Deixem passar e não lhe digam nada. // Deixem, que vai apenas / Beber água do Sonho a qualquer fonte; / Ou colher açucenas // A um jardim ali defronte. // Vem da terra de todos onde mora / E onde volta depois de amanhecer. / Deixem-no pois passar, agora // Que vai cheio de noite e solidão. / Que vai ser / Uma estrela no chão.
Vale também a pena transcrever um texto do Diário XII, de Fevereiro de 1977, em que o autor de Orfeu Rebelde revela, genialmente, a maneira como nasce um poema:
Foi durante a noite que escrevi o poema. Acordei inquieto, estremunhado, fiquei numa sonolência lúcida e, aos borbotões, os versos, na imprevisibilidade do minério arrancado às trevas da mina, começaram a surgir à tona do silêncio, alguns já estremados, puros, outros ainda agarrados ao cascalho. Depois, a razão clarificadora acudiu à inspiração tumultuosa, britou, peneirou, lavou, ordenou, e as pepitas ficaram articuladas de tal maneira que acabaram por formar um todo coeso, harmonioso e autónomo. Um texto na sua plenitude existencial, inexpugnável como um dia de sol.
Excitado pela evidência do milagre, que eu próprio mal podia compreender, não consegui mais pegar no sono. Pus-me a recitar cada estrofe, primeiro numa espécie de terror sagrado, a experimentar a segurança do ritmo, a verificar a verdade das rimas, a avaliar a flagrância das imagens. Por fim, confiado, a abaná-las rijamente, e a concluir, desvanecido, que tinha as raízes seguras. E assim tenho passado o dia com elas no ouvido, numa exaltação secreta, estranhamente otimista, menos vulnerável aos empurrões da multidão, feliz sem o dar a entender. É um regozijo íntimo, fundo, como se me encontrasse bafejado por uma graça que não tivesse merecido, nem pedido, nem recebido de ninguém. (8/2/1977, Diário XII)
Paulo Quintela foi o primeiro homem de teatro português que pôs em cena Miguel Torga. Em 1947, o TEUC representava Terra Firme no velho Teatro Avenida, e doze anos mais tarde, no mesmo local, o CITAC, que convidou expressamente Quintela para encenar uma peça de Miguel Torga, representava o poema dramático O Mar, integrado no seu I Ciclo de Teatro. A partir daí os destinos destes dois homens altivos, como duas vertentes de um Marão de carne e osso, separam-se para o resto da vida. E foi pena. Nunca soube deslindar as razões por que se deu tal rutura, nem talvez as houvesse bem definidas. Seriam fortes razões do coração, atrevo-me até a dizer de um grande amor ferido. No fundo, admiravam-se mutuamente, e outra coisa não seria de esperar de homens de tamanha envergadura. Eu próprio posso disso dar testemunho.
Paulo Quintela continua no seu labor de traduzir autores alemães, ingleses e franceses como Brecht, Nelly Sachs, Hauptmann, Nietzsche, Goethe, Kant, Ben Johnson, Molière e prossegue no TEUC durante cerca de mais dez anos, encenando Gil Vicente, Molière, autores gregos, como Eurípedes e Sófocles, e modernos como Garcia Lorca e José Régio. Miguel Torga havia ainda de publicar dois livros de poesia, Câmara Ardente e Poemas Ibéricos, três de prosa, o quinto e o sexto dias da Criação do Mundo e nove volumes do Diário. Paulo Quintela é o primeiro a sair de cena. No dia 9 de Março de 1987. Na véspera, domingo à noite, estivera a ver um programa televisivo intitulado Eu, Miguel Torga, documentário sobre o autor da Criação do Mundo. Acabado o programa, foi-se deitar e não mais acordou. Premonitório, não acham? Eu tinha estado com ele na sexta-feira anterior. E havia prometido levar-lhe na sexta seguinte o Diário XIV, acabado de sair, do qual lhe falara com entusiasmo durante a nossa última conversa de sexta-feira, 6 de Março de 1987. À despedida, no alto da escada, ainda me preveniu: «Não te esqueças de me trazer o diário do Torga...»
Miguel Torga viria a morrer cerca de oito anos mais tarde, em 17 de Janeiro de 1995.
No seu penúltimo diário, o XV, pode ler-se, na entrada com data de 9 de Março de 1987, dia da morte de Paulo Quintela: «A morte é uma grande reconciliadora. Não há desavença que lhe resista. O seu grande manto de equanimidade cobre todas as paixões da mesma vanidade. Só é pena que, depois dela, tudo seja irremediável.»
Depois de tudo, fico com a sensação de vazio absoluto, de que tudo ou quase tudo ficou por dizer. Paulo Quintela e Miguel Torga são grandes de mais para caberem nas páginas de qualquer escrito, e eu demasiado pequeno para os fazer caber numa simples e despretensiosa comunicação como esta com que vos tenho vindo a massacrar o bicho do ouvido e da paciência. Repare-se, porém, no milagre da poesia, capaz de sínteses fulgurantes: ficaram ambos retratados, em corpo e alma, no poema de Manuel Alegre. São assim os Poetas."
Bragança, 1 de Outubro de 2009

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006