quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Blogues e livros, in blogue "Mau Tempo no Jornal", por Pedro Barros Costa.


Quando a escrita diarística se publicava em livro e não na internet, Cristóvão de Aguiar deu à estampa três volumes de Relação de Bordo — “diário ou nem tanto ou talvez muito mais”. Leitura de férias natalícias, com segundo volume adquirido na feira do livro da Tabacaria Açoriana, em Ponta Delgada. Prosa escorreita, de trechos sintéticos, pelos quais perpassa a trilogia geográfica Ilha/Continente/América, ao longo de três décadas de divisão existencial do insular. Interessante, também, a acesa polémica sobre a literatura de marca açoriana entre o autor e o crítico Vamberto Freitas. Hoje, os blogues, registos diários on-line, resultam em livros; talvez num amanhã não muito distante estes livros, registos diários em papel, resultem em blogues.

Mau Tempo no Jornal , 05 de Janeiro de 2010

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

DOIS HOMENS DE TRÁS-OS-MONTES, Miguel Torga e Paulo Quintela, por Cristóvão de Aguiar.


"Aqui, na cidade de Bragança, coração de Trás-os-Montes, grave delito seria não recordar dois grandes vultos da cultura portuguesa do século XX, Paulo Quintela e Miguel Torga. Outros haveria que realçar como o Abade de Baçal, historiador, etnógrafo, arqueólogo, autor das Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, cujo V volume é o célebre livro, Os Judeus no Distrito de Bragança… E João Araújo Correia, médico na cidade da Régua e um dos grandes Mestres da Língua Portuguesa, que mereceu de Aquilino, outro brilhante cultor da Língua, estas expressivas e legítimas palavras: «Mestre de nós todos há cinquenta anos a lavrar nesta terra ingrata e ímproba seara branca do papel almaço, e somos velhos, gloriosos ou ingloriosos, pouco importa; mestre dos que vieram no intermezzo da arte literáriacom três dimensões para a arte literária sem gramática, sem sintaxe, sem bom senso, sem pés nem cabeça; e mestre para aqueles que terão de libertar-se da acrobacia insustentável e queiram construir obra séria e duradoura». Isto só para mencionar os que desapareceram.
Sem desprimor para os dois vultos transmontanos atrás mencionados, e que de per si mereciam uma conferência inteira, ou mais, só irei debruçar-me, e espero não me despenhar da altura a que ambos se guindaram, sobre a obra e personalidade de outras duas individualidades transmontanas, mais chegadas à minha afeição, com quem durante anos convivi em Coimbra e de quem recebi grandes lições de vida, cultura, humanidade e humanidades: Paulo Quintela, filho desta cidade, onde nasceu em 1905, e Miguel Torga, natural de São Martinho de Anta, o seu lugar de onde e o seu centro do mundo, como tantas vezes escreveu nos seus livros… Paulo Quintela foi um germanista de renome internacional e um dos melhores tradutores das línguas germânicas para a Língua Portuguesa. Dir-se-ia, sem pingo de exagero, que nacionalizou esses poetas e escritores estrangeiros, principalmente alemães, para a Literatura Portuguesa, dela ficando a fazer parte: Rilke, Hölderlin, Goethe, Nietzsche, Hauptmann, Nelly Sachs e tantos outros, incluindo muitos poemas ingleses de Fernando Pessoa, a pedido de Georg Rudolf Lindt, crítico alemão, lusitanista, estudioso e tradutor de Pessoa. E foram esses poetas maiores da Literatura Universal, sobretudo Rilke, que influenciaram alguns poetas portugueses, dos quais destaco Eugénio de Andrade e o próprio Miguel Torga. Como se isto não bastasse, Paulo Quintela, um apaixonado pelo teatro e por Gil Vicente, havia de ressuscitar a sua obra dramatúrgica para as tábuas do palco, até então sepultada na poeira dos compêndios. Excetuavam-se algumas tímidas, fugazes e nem sempre logradas tentativas do Teatro Nacional Dona Maria, que, nos meados dos anos trinta do século XX, o pôs em cena. E terá sido um espetáculo, com excertos da obra de Mestre Gil, uma silva vicentina, representado por essa companhia, em uma noite de Verão, no Pátio da Universidade de Coimbra, que o catapultou para pôr de imediato a obra vicentina em
cima do palco. Escreveu ensaios sobre a obra do maior homem de teatro português, e deu a conhecer aos leitores portugueses as Líricas Castelhanas, de Gil Vicente, publicadas em livro, em meados dos anos sessenta, no Cancioneiro Vértice. Porém, Quintela não se quedou por Gil Vicente: encenou outros grandes dramaturgos; os trágicos gregos: a Medeia, de Eurípedes; a Antígona, de Sófocles; o Prometeu Agrilhoado, de Ésquilo; O Grande Teatro do Mundo, de Calderón de La Barca; Retablillo de don Cristóbal e A Sapateira Prodigiosa, de Frederico García Lorca. Nesta última peça, foi o próprio Quintela quem representou o papel de sapateiro, o principal, porque o ator que o devia interpretar ter comunicado, na véspera da estreia, que não podia comparecer – valia Quintela saber de cor todos os papéis das peças que
encenava; O Tartufo, de Molière, além de alguns portugueses contemporâneos, como Miguel Torga; José Régio e Raul Brandão… Graças ao TEUC (Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra), fundado em 1938, e que se estreou com a Farsa de Inês Pereira, foi possível a Paulo Quintela, seu diretor artístico durante mais de trinta anos, dar a conhecer não só Gil Vicente como todos os dramaturgos atrás referidos, fazendo do TEUC uma verdadeira escola de teatro por onde passaram gerações e gerações de estudantes, que, após a formatura, continuaram a lição do Mestre, organizando grupos de teatro nas locais onde foram exercer a sua profissão.
Como dizia, foi nesta cidade de Bragança que nasceu, em Dezembro de 1905, Paulo Manuel, oitavo rebento de uma prole de dez, sendo o pai pedreiro e a mãe padeira. Aqui se criou, iniciou e concluiu os estudos elementares e liceais, que o haviam de guindar à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde se matriculou no ano letivo de 1922 /1923, ainda com a idade de dezasseis anos. Aluno brilhante, concluiu o curso de Filologia Germânica com distinção, e foi bolseiro da Fundação Humboldt, o que lhe proporcionou viver, estudar e ensinar, em Berlim, durante seis anos. Com a subida de Hitler ao poder, regressou a Coimbra e à sua Faculdade, passando a exercer, durante mais de quarenta anos, o magistério nas Literaturas e Culturas Germânicas. Aqui jaz, no cemitério do “Alto do Sapato”, desde o dia 10 de Março de 1987.
Delito grave seria também deixar em silêncio o nome de Miguel Torga, um dos mais grados escritores de sempre da Literatura Portuguesa e, durante grande parte do percurso da existência, íntimo amigo de Paulo Quintela e seu companheiro de lides e aventuras literárias. Procurarei, nesta minha despretensiosa comunicação, deslindar o que os uniu e depois os separou para sempre, tentando o milagre, sempre possível, de um reatamento de relações post mortem…
Entre ambos existia uma amizade enraizada num acerado amor que consagravam a Trás-os-Montes, o «Reino Maravilhoso», de onde ambos eram oriundos. «Que belo é ter um amigo! Ontem eram ideias contra ideias. Hoje é este fraterno abraço a afirmar que acima das ideias estão os homens. Um sol tépido a iluminar a paisagem de paz  onde esse abraço se deu, forte e repousado. Que belo e natural é ter um amigo!» ─ escreveu Torga, no dia 4 de Fevereiro de 1935, no primeiro volume do Diário, referindo-se a Quintela, que conhecera um ano antes na cama de um hospital em Coimbra.
No Segundo Congresso Transmontano, realizado nas Pedras Salgadas, em Setembro de 1941, ambos participaram com duas conferências. A de Miguel Torga intitulava-se «Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes)»; a de Paulo Quintela, «Um Poeta de Trásos- Montes», Miguel Torga. E era o Poeta: «Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador. Tudo parado e mudo. Apenas se move e se faz ouvir o
coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente rasga a crosta do silêncio uma voz de franqueza desembainhada: «─ Para cá do Marão, mandam o que cá estão!» Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós? Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena: ─ Entre! ─ A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso.»
Por seu turno, Paulo Quintela: «Mas não se nasce impunemente em Trás-os-Montes, no Alentejo ou à beira-mar. Quer dizer que a paisagem, se não é o único fator determinante, é contudo primordial elemento de formação e informação. Se a poesia é no fundo expressão ─ expressão mágica ─ das coisas e dos seres, da Vida, é evidente que essa expressão há de ser em certa medida condicionada pela maneira como esses seres e coisas se nos revelam e nos solicitam, pela luz que os banha, pelo horizonte em que estão implantados, pelo ângulo por que se contemplam. O homem da planície terá uma vivência das coisas e dos homens muito diversa da do montanhês. Horizontes vastos e planos, monótonos, em que as figuras se perdem ou ficam reduzidas a contornos imprecisos, convidam a erguer os olhos e a contemplar o céu. Daqui
─ falo, evidentemente, em termos amplos que admitem toda a sorte de exceção que não abalará aliás a firmeza do princípio ─ (o próprio poeta de que me ocupo poderá por vezes parecer exceção...) ─ daqui, digo, a propensão contemplativa e a necessidade de fuga e libertação mística do homem nado e criado em ambiente destes. Daqui o caráter místico da grande literatura da estepe russa, por exemplo. Mas subamos agora uma montanha. As coisas na encosta que vamos escalando são-nos mais chegadas, mais íntimas, mais nossas, pelo esforço que pusemos em alcançá-las; a luz quebra e reflete de outra maneira nas lombas que nos rodeiam e nos limitam o horizonte; a subida é árdua, mas gostosa; o arcaboiço arfa, bate o coração encostado à fraga ou à árvore, e o arquejar do peito e a pancada do coração do homem da montanha faz-se hálito e pulsar da própria terra-mãe. Chega-se ao cimo. Mas não foi para contemplar o céu que nos aproximámos dele. Sobe-se a um monte para olhar cá para baixo, para dominar a terra que se alarga, se nos revela e nos convida. Foi no alto dum monte que o diabo patenteou a Cristo a sua maior tentação: «De novo o subiu o diabo a um monte muito alto: e lhe mostrou todos os Reinos do Mundo, e a glória deles, e lhe disse: Tudo isto te darei, se prostrado me adorares...» Deus em Cristo resistiu à tentação. Os homens sucumbem à veemência do desejo de posse do Mundo e da sua Beleza. Miguel Torga é, dos poetas portugueses modernos, o que está mais intimamente ligado à sua paisagem, que é a paisagem de Trás-os-Montes.»
Convoco agora o Poeta Manuel Alegre para, com a sua palavra poética, vir em meu auxílio. Na III Parte do seu livro, Coimbra Nunca Vista, intitulada «Abecedário de Coimbra», o poeta de Abril, grande amigo e admirador de ambos, empreende uma apolínea peregrinação afetiva através de individualidades que, em dado momento histórico-cultural, cunharam o caráter da cidade mítica. Nesse «Abecedário», figuram, entre outros, dois poemas dedicados às duas fragas graníticas transmontanas, um com o título de «Miguel Torga No Largo da Portagem»; o outro intitulado «Paulo Quintela». O dedicado ao autor de A Criação do Mundo do reza assim:
Todos os dias o poeta vem ao centro / sobe ao seu consultório e embarca para /dentro. / Diante da folha branca vai de viagem / navega sobre o tempo e nunca para / Há nele o canto de raiz e o verso vagabundo / da sua janela chega à outra margem / e dá a volta ao mundo / no Largo da Portagem.
Sobre Quintela escreve:
Nada sabíamos da língua portuguesa / e então sílaba a sílaba ele ensinou-nos / a música secreta das vogais / a cor das consoantes a ondulação o ritmo / o marulhar das frases e o seu / sabor a sal. / E também como pisar um palco / como falar como calar e sobretudo/ como sair de cena e entrar / no grande teatro deste / mundo. / Porque tudo era proibido e ele nos disse / que tudo pode ser ousado / desde que se aprenda a entrar a tempo / a colocar a voz e a não perder / a alma.
Nestas prodigiosas sínteses poéticas, de uma tão luminosa fundura a que só os príncipes da poesia têm o condão de descer ou de subir, encontra-se delineado um verdadeiro, muito completo e complexo programa de vida estética, intelectual e cívica, que tanto Paulo Quintela como Miguel Torga foram cumprindo enquanto por cá andaram. Nas facetas que no poema se realçam, tornou-se Quintela grande mestre e a sua obra de intelectual e o seu exemplo de cidadão empenhado deram disso testemunho. A poesia e a prosa de autores de «franças e araganças», que, através de traduções exemplares e recriadoras, naturalizou sem qualquer sotaque para português e que ficaram desde logo pertença da Literatura Portuguesa; se tivessem os seus autores cá nascido, seria decerto como ele as traduziu que escreveriam na nossa língua; o teatro vicentino que estudou e amou como ninguém desde os bancos do Liceu de Bragança difundiu e o elevou, depois, para o seu sítio condigno e certo: as tábuas do palco; o cidadão livre que sempre ousou ser, numa pátria contaminada por grandes medos miudinhos por tantas outras toxinas que lhe conspurcaram a atmosfera, não
raro tornando-se, armada ou armadilhada de um pesadume propenso e propício a que certas criaturas se bandeassem, fraquejassem e se perdessem, alma incluída, no céu da sua conversão…
No poema sobre Torga, Manuel Alegre, em palavras sucintas e certeiras, como é timbre dos grandes Poetas, delineia e recria, minuciosamente, o quotidiano do Poeta de Orfeu Rebelde. Era do seu consultório, no Largo da Portagem, que o Poeta, depois de regressar da noite, quase sempre insone, de macerado trabalho poético, em sua casa, zarpava todos os dias para viagens que só ele sabia deslindar. Transcrevo o
poema de abertura do 1.º Diário, 3 de Janeiro de 1932, (Torga iniciava e rematava sempre os seus Diários com um poema), que reflete esse trabalho noturno, noctívago, a que se entregava com a devoção de um crente da poesia que nunca deixou de ser:
Deixem passar quem vai na sua estrada. /Deixem passar / Quem vai cheio de luar. /Deixem passar e não lhe digam nada. // Deixem, que vai apenas / Beber água do Sonho a qualquer fonte; / Ou colher açucenas // A um jardim ali defronte. // Vem da terra de todos onde mora / E onde volta depois de amanhecer. / Deixem-no pois passar, agora // Que vai cheio de noite e solidão. / Que vai ser / Uma estrela no chão.
Vale também a pena transcrever um texto do Diário XII, de Fevereiro de 1977, em que o autor de Orfeu Rebelde revela, genialmente, a maneira como nasce um poema:
Foi durante a noite que escrevi o poema. Acordei inquieto, estremunhado, fiquei numa sonolência lúcida e, aos borbotões, os versos, na imprevisibilidade do minério arrancado às trevas da mina, começaram a surgir à tona do silêncio, alguns já estremados, puros, outros ainda agarrados ao cascalho. Depois, a razão clarificadora acudiu à inspiração tumultuosa, britou, peneirou, lavou, ordenou, e as pepitas ficaram articuladas de tal maneira que acabaram por formar um todo coeso, harmonioso e autónomo. Um texto na sua plenitude existencial, inexpugnável como um dia de sol.
Excitado pela evidência do milagre, que eu próprio mal podia compreender, não consegui mais pegar no sono. Pus-me a recitar cada estrofe, primeiro numa espécie de terror sagrado, a experimentar a segurança do ritmo, a verificar a verdade das rimas, a avaliar a flagrância das imagens. Por fim, confiado, a abaná-las rijamente, e a concluir, desvanecido, que tinha as raízes seguras. E assim tenho passado o dia com elas no ouvido, numa exaltação secreta, estranhamente otimista, menos vulnerável aos empurrões da multidão, feliz sem o dar a entender. É um regozijo íntimo, fundo, como se me encontrasse bafejado por uma graça que não tivesse merecido, nem pedido, nem recebido de ninguém. (8/2/1977, Diário XII)
Paulo Quintela foi o primeiro homem de teatro português que pôs em cena Miguel Torga. Em 1947, o TEUC representava Terra Firme no velho Teatro Avenida, e doze anos mais tarde, no mesmo local, o CITAC, que convidou expressamente Quintela para encenar uma peça de Miguel Torga, representava o poema dramático O Mar, integrado no seu I Ciclo de Teatro. A partir daí os destinos destes dois homens altivos, como duas vertentes de um Marão de carne e osso, separam-se para o resto da vida. E foi pena. Nunca soube deslindar as razões por que se deu tal rutura, nem talvez as houvesse bem definidas. Seriam fortes razões do coração, atrevo-me até a dizer de um grande amor ferido. No fundo, admiravam-se mutuamente, e outra coisa não seria de esperar de homens de tamanha envergadura. Eu próprio posso disso dar testemunho.
Paulo Quintela continua no seu labor de traduzir autores alemães, ingleses e franceses como Brecht, Nelly Sachs, Hauptmann, Nietzsche, Goethe, Kant, Ben Johnson, Molière e prossegue no TEUC durante cerca de mais dez anos, encenando Gil Vicente, Molière, autores gregos, como Eurípedes e Sófocles, e modernos como Garcia Lorca e José Régio. Miguel Torga havia ainda de publicar dois livros de poesia, Câmara Ardente e Poemas Ibéricos, três de prosa, o quinto e o sexto dias da Criação do Mundo e nove volumes do Diário. Paulo Quintela é o primeiro a sair de cena. No dia 9 de Março de 1987. Na véspera, domingo à noite, estivera a ver um programa televisivo intitulado Eu, Miguel Torga, documentário sobre o autor da Criação do Mundo. Acabado o programa, foi-se deitar e não mais acordou. Premonitório, não acham? Eu tinha estado com ele na sexta-feira anterior. E havia prometido levar-lhe na sexta seguinte o Diário XIV, acabado de sair, do qual lhe falara com entusiasmo durante a nossa última conversa de sexta-feira, 6 de Março de 1987. À despedida, no alto da escada, ainda me preveniu: «Não te esqueças de me trazer o diário do Torga...»
Miguel Torga viria a morrer cerca de oito anos mais tarde, em 17 de Janeiro de 1995.
No seu penúltimo diário, o XV, pode ler-se, na entrada com data de 9 de Março de 1987, dia da morte de Paulo Quintela: «A morte é uma grande reconciliadora. Não há desavença que lhe resista. O seu grande manto de equanimidade cobre todas as paixões da mesma vanidade. Só é pena que, depois dela, tudo seja irremediável.»
Depois de tudo, fico com a sensação de vazio absoluto, de que tudo ou quase tudo ficou por dizer. Paulo Quintela e Miguel Torga são grandes de mais para caberem nas páginas de qualquer escrito, e eu demasiado pequeno para os fazer caber numa simples e despretensiosa comunicação como esta com que vos tenho vindo a massacrar o bicho do ouvido e da paciência. Repare-se, porém, no milagre da poesia, capaz de sínteses fulgurantes: ficaram ambos retratados, em corpo e alma, no poema de Manuel Alegre. São assim os Poetas."
Bragança, 1 de Outubro de 2009

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Crónica de Ruben de Carvalho. É do Camandro. (TLEBS)

Meu, não dá para te passar tudo, mas é uma cena... Como é que t'hei-de dizer, assim uma cena um bocado marada que não dá prá agarrar logo! Tem bué de words novas, tu nem tosgas, eu pelo menos vejo-me à rasca. A profe também anda bimba com a cena, parece que não topa peva, é assim uma cena toda nova. Aquelas gaitas ca gente teve de encornar - os adjectivos, os verbos, essas cenas, 'tás a ver - agora tem tudo outros nomes, bué de compridos e depois cada cena com uma data de nomes.

Por causa daquele baril que no outro dia dizia na televisão que o fora de jogo "era consoante o árbito", até copiei a cena das consoantes que vem no paper: passou a haver consoantes surdas e sonoras mas, aguenta-te aí, que depois tens consoante oclusiva, fricativa, nasal, oral, lateral, vibrante e africada. Esta do africada julgo que é por causa dos blacks, e a minha miúda, que costuma ler os jornais, ficou lixada, diz que lhe parece é uma cena um bocado racista !
Acho que é uma lei que os políticos fizeram e depois os profes têm de andar com a cena e a gente é que amoxa! Passas a ter de meter nos cornos que há verbo principal impessoal, verbo pessoal intransitivo, verbo principal transitivo directo, verbo principal transitivo indirecto e verbo principal transitivo directo e indirecto, uma cegada! Lá o que são verbos, ainda perguntei ao meu velho lá em casa e o gajo lá disse umas coisas, até falou da cena do transitivo, mas aí já foi muita areia - mas agora isto tudo!
E, ainda por cima, dizem que é para a maralha aprender a escrever, a criar, como eles dizem, uma cena de "hábitos de leitura"! Topas, um gajo a querer ler uma cena numa curte porreira e vêm com esta trapalhada, mais vale um tipo agarrar as words do inglês, que dão para o computas e a malta até topa logo.
Houve um gajo - penso que é do sindicato ou uma cena assim, mas é fixe, alinha com a malta - que me disse que isto vem tudo do mesmo sítio, dos mesmos cromos do Governo e do Ministério que também andam a despedir os profes, a inventar aquela cena marada das "aulas de substituição", a correr com o pessoal que tratava lá da cantina e tudo isso, a fazer um granel do camandro nesta cena toda.
A minha esperança é que agora, com o TLEBS (topas? A Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário) isto vai ficar uma curte muito mais fixe e vou ler o Fernando Pessoa.

DIÁRIO DE NOTÍCIAS - 23.11.2009

sábado, 12 de dezembro de 2009

Cristóvão de Aguiar, por Chrys Crystello. 8.º Colóquio Anual de Lusófonia, 2009.

MESA QUADRADA SOBRE TRADUÇÃO E LITERATURA DE MATRIZ AÇORIANA

Grandes vultos das letras e das artes nasceram nos Açores como Gaspar Fructuoso, o conde de Ávila, Manuel de Arriaga, Antero de Quental, Teófilo Braga, Roberto Ivens, Tomás Borba, Francisco de Lacerda, Canto da Maya, Domingos Rebelo, Vitorino Nemésio, António Dacosta, Carlos Wallenstein, Victor Câmara e Carlos Carreiro. Dos autores contemporâneos de que falarei aqui, selecionei aqueles por quem nutro apreciação. Acolho como premissa o conceito de açorianidade de Martins Garcia que, admite uma literatura açoriana «enquanto superstrutura emanada dum habitat, duma vivência e duma mundividência» . A açorianidade literária (termo cunhado por Vitorino Nemésio, na revista Insula, em 1932) não está exclusivamente relacionada com peculiaridades regionais, nem com temas comummente abordados na literatura, tais como a solidão, o mar, a emigração. Martins Garcia não se mostra empenhado em definir a literatura açoriana, mas a sua qualidade estética. Na obra “Para uma literatura açoriana” (1987) afirma: “...utilizar um conceito antropológico de cultura para provar a diferença entre os Açores e o Continente é admitir que um traço distintivo venha a justificar uma autonomia, quando, na realidade, são as diferenças culturais que formam um acréscimo que dão identidade, seja a uma literatura, seja a um povo .
Em “Constantes da insularidade numa definição de literatura açoriana” J. Almeida Pavão (1988) diz “...sobre a existência de uma Literatura Açoriana...assume-se tal Literatura com o estatuto de uma autonomia, consentânea com uma essencialidade que a diferencia da Literatura Continental. No polo positivo de um extremo, enquadrar-se-ia a posição de Borges Garcia e no outro extremo situar-se-ia o polo, naturalmente contestário, formado por Gaspar Simões e Cristóvão de Aguiar. Isto, sem falarmos de outros tantos depoimentos, compendiados na obra A Questão da Literatura Açoriana, de Onésimo de Almeida (1983) .”
Depois de, no meu fervor iniciático, ter sido um adepto da Literatura Açoriana, à medida que lia os mais consagrados e badalados, ficava com uma sensação amarga. Há muitos, mas de qualidade irregular, dir-se-ia duvidosa. Sorri da minha ingenuidade. Ao ler Dias de Melo, guardei as baleias, o livro intimista “À Boquinha da Noite (2001) e poucos mais. Lera mas não gostara doutros com um neorrealismo primário que nada tem a ver com os livros mais antigos sobre os baleeiros. Onésimo fora um desapontamento mas como croniqueiro eram notáveis as piadas que sempre o caracterizaram. Daniel de Sá tem talvez como uma das suas melhores obras, a novela “O Pastor das Casas Mortas” e obras mais antigas (sobretudo “Ilha grande fechada” (1992). Dele, ressalvam-se bons textos nos últimos anos, em livros ou guias de turismo como “Santa Maria Ilha-Mãe”, “S. Miguel, a ilha esculpida” e outro sobre a Terceira (a publicar em breve, todos da VerAçor). Entretanto, JC lera outros poetas e escritores açorianos espantosos de quem poucos falavam. Martins Garcia era um deles...
Como tradutor no seio desta geografia idílica, não busquei a essência do ser azórico em miríades de variações nem cuidei de saber se o homem se adaptou às ilhas ou se estas condicionaram a presença humana, para evidenciar a sua especificidade ou açorianidade. Deduzi no decurso da sua tradução características relevantes para a açorianidade:
1. O clima inculca um caráter de torpor e de morosidade;
2. Os povos quedam hoje, física e culturalmente, quase tão distantes de Portugal como há séculos atrás;
3. O recorte dos estratos sociais: é ainda vincadamente feudal apesar do humanismo que a revolução de 1974 alegadamente introduziu nas relações sociais e familiares;
4. A adjacência das gentes à terra persiste ainda imune a aculturações, fora das pequenas metrópoles que comandam a vida em cada ilha, opondo-se ao centralismo autofágico e macrocéfalo, que regem esses dois submundos como vasos não-comunicantes.
Daniel de Sá dedicou “O Pastor das Casa Mortas” “às mulheres e aos homens que ainda acendem o lume nas últimas aldeias de Portugal. O herói busca um amor perdido no léxico e na sintaxe dos montes escalavrados da Beira Alta. Por entre o pastoreio, calcorreia paixões sofridas, numa apologia da solidão. O retrato de Manuel Cordovão, lusitano de um amor só, é uma ode ao açoriano apartado de si e do mundo por um amor impossível inconcretizado. Trata-se de uma visita ao Portugal profundo, interior e inacessível. Aqui não se fala do “despovoamento das ilhas” antes se resgata o imaginário coletivo na erudição improvável de um mero apascentador de cabras. Em “Santa Maria ilha-mãe” Daniel de Sá viaja ao passado mítico, refulgente de nostalgia lírica por uma infância despretensiosa. Visita o isolamento de séculos, permeado por ataques de piratas, a inculcar mais vincadamente as crenças religiosas. O título gerou controvérsia mas o autor notaria: “Não se trata de "mãe" adjetivo, mas sim de dois substantivos. É uma ilha que é mãe também...” As personagens são credíveis e transportam-nos a partilhar sentimentos com os interlocutores. Como magistralmente disse a escritora canadiana Ann-Marie MacDonald, “A tradução é uma arte e uma maestria, com um toque de alquimia. Quando o autor e o tradutor se reúnem, o resultado pode ser inspirador. As nuances traduzem a língua numa forma de arte
Dias de Melo escrevia sobre os baleeiros, como se da sua “Cabana do Pai Tomás”, no Alto da Rocha do Canto da Baía, na Calheta de Nesquim na açoriana ilha do Pico, vigiasse os botes e as lanchas da Calheta baleando contra os Vilas e os Ribeiras. A escrita embrenha-se como o nevoeiro em que os trancadores se debatiam na luta inglória para ganhar a vida. Resumo o autor a uma frase: Injustiça Social. É da sua denúncia que trata ao abordar a emigração, as realidades sociais e económicas, a repressão do Estado Novo e os dramas humanos, na linguagem simples dos homens do mar. Fica-se com a sensação de uma sociedade arbitrária e perversa. Coube-lhe a sorte de ter recebido homenagens públicas nos últimos meses de vida, quando a VerAçor re-editou alguns dos seus livros. Como espetador atento da luta quotidiana e da condição humana, nunca se coibiu de a viver e contar. Cumpre evitar que essa memória se esvaneça e porfiar para que seja lido pelas novas gerações, pois, como ele escreveu: “A esperança num mundo melhor já não será para mim, nem para nenhum de nós e eu revolto-me com o que vejo à volta de mim”
Nas ilhas existem interesses esconsos e panelinhas em que pontificam menos valias com fama fácil e nomes menores da literatura local. Com a paixão de descobrirmos estes autores, olvidamos o conhecimento dos restantes. Deixamo-nos embalar pela açorianidade, a diegese das ilhas, seus costumes ancestrais, o canto das suas sereias...Lemos outros açorianos espantosos de que ninguém fala como José Martins Garcia . Sobre ele escreveu David Mourão-Ferreira “Se não vivêssemos, vicentinamente, num País em que a "barca do purgatório" anda sempre mais carregada que as outras duas, o [seu] nome deveria ser hoje saudado como o do escritor mais completo e mais complexo que no último decénio entre nós se revelou; (...) com igual mestria tanto abrange os registos da mistificação narrativa como os da exegese crítica, tanto os da desmistificação satírica como os da transfiguração telúrica, e que sem dúvida não encontra paralelo, pela convergência e concentração de todos estes vetores, na produção de qualquer outro seu coetâneo ”. E Maria Lúcia Lepecki acrescenta "É a arte de narrar "em puro" que Martins Garcia cultiva: de modo que opta por não fazer quaisquer tipos de experimentações. Vai sempre re-experimentando, e confirmando, o contar histórias."
Côrtes-Rodrigues é outro nome juntamente com Emanuel de Sousa poeta e autor de Eurídice com prefácio de Natália Correia; e autor de Ariadne , Saiu agora uma rica edição de uma antologia de contos de Martins Garcia. A coleção intitula-se Biblioteca Açoriana e é dirigida por Urbano Bettencourt e Carlos Alberto Machado . Já foram publicados, nesta coleção, em 2009: Almas Cativas e Poemas Dispersos, de Roberto de Mesquita ; A Moldura, de Conceição Maciel; Português, Contrabandista, de José Martins Garcia, antologia de contos, a maior parte inexistente no mercado, com um posfácio de Urbano Bettencourt. Há mais três nomes a não esquecer: Vasco Pereira da Costa, poeta, romancista, nascido em Angra em 1948. Além disso é pintor com o pseudónimo de Manuel Policarpo. A sua Exposição de Pintura no Museu dos Baleeiros das Lajes do Pico em Junho, foi para a Terceira, e está agora nas Portas do Mar, em Ponta Delgada. Intitula-se As Ilhas Conhecidas - Cartografia e Iconografia. Os quadros relativos ao culto do Espírito Santo são uma forte crítica não só ao culto da terceira pessoa como à sociedade...Há ainda Eduardo Jorge Brum (fundador e diretor do Semanário "Expresso das Nove") poeta, contista e romancista, nascido em Rabo de Peixe. Escritor maldito, na linha de Luiz Pacheco. As suas principais obras foram todas publicadas na Europa-América, com exceção de uma, que saiu na Vega , e por último, Marcolino Candeias, nascido em Angra em 1952. Poeta de um só livro, embora se tivesse estreado aos 16 anos com um livro Por Ter Escrito Amor que terá repudiado, pois não consta na sua bibliografia. A 2.ª edição intitula-se: Na Distância deste Tempo . Como se pode ver há muito para além das hortênsias e dos romeiros, tema desesperado de tanto aspirante a escritor numa eterna antologia de autores açorianos, mas nem todos eles serão obreiros de verdadeira literatura.
Deixei premeditadamente para o fim Cristóvão de Aguiar , um escritor incómodo. Não só se libertou das grilhetas do cativeiro confinado da ilha como demonstrou com a sua prolífica publicação aquilo que mais se entreteve a negar: a existência de uma literatura açoriana. Exigente consigo e com os outros, com fama de intransigente, não se inibe com polémicas e controvérsias. Domina a língua como só os grandes escritores almejam, enquanto se deixa consumir na incandescente falta de confiança genética de ilhéu. Eterno insatisfeito burila as filigranas letras com que nos enleia no basalto da sua ilha adotiva, o Pico. Como visitou e viveu para lá da fronteira invisível do grande Mar Oceano olha retrospetivamente para o Pico da Pedra, em São Miguel, onde nasceu, e vislumbra a pequenez das gentes encarceradas nas ilhas, contentadas com qualquer emigração económica e a canga feudal que persiste. Pedaços de gente dura e impiedosa cumprindo rituais. Intolerante, devota e invejosa na sua ânsia de emigrar. Depois, o regresso de aparência gloriosa, mas sem acarrearem na desafogada bagagem algo de valor. Apenas dinheiro e bens materiais. Sobre a sua marilha natal, diz Cristóvão:

São Miguel já não é a mesma Ilha onde fui nado e criado e vivi até à arrogância dos vinte anos. Pude verificá-lo, há pouco, durante o 4.º Encontro Açoriano da Lusofonia, em que, para regozijo meu, não encontrei os costumeiros intelectuais de pacotilha, que sabem tudo quanto no Universo se passa, com retrato de pose na galeria dos imortais há muito mumificados…Nem é sequer a mesma Ilha que foi, até há poucos anos, muito nublada, já não digo por um nevoeiro absoluto, mas por alguns resquícios aparentados a certas pesporrências de má memória. Temos, porém, de convir que, durante séculos, certas forças religiosas, conluiadas com todos os poderes, foram o sustentáculo da ignorância abençoada pela trilogia Deus, Pátria e Rei de outros tempos, e Deus, Pátria e Família, do tempo de muitos de nós. Direi como Mestre Gil Vicente: E assim se fazem as cousas. Levou tempo, mas o inevitável aconteceu. Acaba sempre. O medo e outras rançosas virtudes impostos ao espírito e nele lavrado em sulcos mais ou menos profundos (nem toda a terra consente a ignomínia), com relhas enferrujadas e passadistas, têm destes percalços - no ápice de um instante imprevisto esse terreno enfastiado de tanta aridez fementida e coerciva, súbito se devolve à sua límpida condição de húmus que favorece a estrutura do solo e do subsolo e do infra-subsolo: o consciente, o subconsciente e o inconsciente.

Cristóvão é um permanente “Passageiro em trânsito”, título do seu mais benquisto livro na rota do inconformismo. É a voz ininterrupta de uma consciência coletiva que não se asfixia. Granjeou o direito a chamar os bois pelo nome sem se deter nas finuras das convenções do parece bem. É crítico impiedoso do destino que alguns queriam eterno, da subserviência e submissão aos senhores das ilhas, descendentes diretos dos feudais opressores da gleba. Narrativas dissecantes que se assemelham a uma técnica de travelling em filmagem. Grandes planos, zooms, e paragens esmiuçadas nos rostos e mentes dos atores principais dos seus diários, intitulados Relação de Bordo (trilogia) e A Tabuada do Tempo. A câmara detém-se e escalpeliza a alma daqueles que filma com palavras aceradas. Dói e magoa como o vento mata-vacas que sopra do Nordeste. Psicanalisando as gentes e a terra que o viram nascer adotou uma nova ilha mátria, em 1996.

A Ilha do Pico faz-me as vezes de mulher amada. Desvenda-se aos poucos, em erótico vagar, para se lhe descobrir os recantos e sortilégios mais íntimos. E nunca se chega, nem se precisa, ao cerne do feitiço... Meio encoberta, meio desnudada, sempre ataviada de cheiros exóticos e eróticos, faz com que se abram as narinas de cio. Colhem os olhos as tonalidades indefiníveis de seus roxos e azuis, o cinza entorresmado de seus mistérios, seus verdes percorrendo toda a escala cromática, vertidos na paleta primigénia de que se serviu o Criador para matizar a tela da Natureza. Sempre que caem sobre o mar do canal, cavado e furioso ou espelho de Narciso, a Ilha de São Jorge, nua e arroxeada, a garantir mais mundo, os olhos coalham-se de espanto em face do mistério de assistirem ao primeiro dia da Criação...Não cabe no olhar a Montanha bíblica. Extravasa a humana retina. Bíblica. Acredito ter sido em seu cimo, que roça o Céu, que Moisés recebeu as Dez Tábuas da Lei. E de um penedo fez jorrar a água que saciou a sede do seu Povo.

Cristóvão de Aguiar não é um autor fácil nem facilita o léxico para leitores de pacotilha. Amaldiçoado mas nunca maldito, outros o forjaram malquisto. Acossado por tudo e por todos. Exige tanto dos seus leitores como de si. As suas palavras pungentes estão gravadas visceralmente num granito alheio às ilhas que se encontra na trilogia Relação de Bordo. No último volume, deparámos com uma interminável história de amor sem que os leitores enxerguem esses arroubos. Ele é o magma de que são feitas as gentes de bem. Terei encontrado o escritor neste amigo novo? Este autor que ora descobri como se o conhecesse há muito, como se tivesse sido irmão caçulo ou compagnon de route 66 à la Jack Kérouac, iluminando o túnel das ideias . Navego imerso na sua escrita tateando como um recém-nascido fora do ventre materno. Aprendo com este mestre contemporâneo da literatura de matriz açoriana. Muito apoucado me aquilato em tão ínclita companhia.

Nestas navegações literárias, uma pessoa não lê apenas Cristóvão de Aguiar, empreende uma viagem tridimensional repleta de sentidos. Confluem na escrita como lava “pahoe-hoe” (pron. pah hoi-hoi) de aparência viscosa mas fluida, prateada e entrançada como cordas de baleeiro. Outros autores aparentam lava tipo “A a” (ah ah), grossa e áspera, magma de rochas solidificadas impulsionadas. Em Cristóvão de Aguiar nada é impelido embora por vezes se assemelhe na sua descrição e nos contornos emocionais à pedra-pomes, piroclasto dominante das rochas traquíticas. A observação de qualquer pedaço de basalto revela-nos, quase sempre, a existência de vesículas disseminadas na rocha, de tal modo estanques, que esta pode flutuar na água por largos períodos. Resultam de gases separados do magma que, não tendo escapado para a atmosfera, ficaram aprisionados na rocha sob a forma de bolhas onde também ficam retidos ad eternum todos os leitores. A escrita lávica de Cristóvão fica a boiar no nosso espairecido imaginário. Foi ela que nos instigou a rabiscar esta lamentação com o frémito ciumento dos que não conseguem escrever da forma única e inimitável como só ele sabe e sente sobre os Açores. Essa a forma de amar e de ressarcir a terra que o viu nascer... As ilhas irão, um dia, desatar as grilhetas que as enjaulam no passado e Cristóvão ficará então desobrigado da tarefa hercúlea de acarrear a sua ilha como um fardo ou amor enjeitado, que nisto de ilharias há muitas paixões não correspondidas.

Dias de Melo e Daniel de Sá já foram traduzidos e “O Pastor das Casas Mortas” vai surgir em castelhano. Cristóvão não foi traduzido. Além dele há outros escritores e poetas que teremos de divulgar e traduzir. Isto sim é um crime de lesa literatura. Iremos concentrar os esforços dos Colóquios em editá-lo no Brasil e tê-lo traduzido na Bulgária, Roménia, Polónia e Eslovénia. Todos nós, meros mortais, teremos de ler os restantes e apreciar a sua universalidade, apesar da matriz açoriana que a todos permeia. Sei que incorremos numa grave omissão se não conseguirmos lançar em novos mercados e traduzir “A TABUADA DO TEMPO”, “TORGA LAVRADOR DAS LETRAS”, “MARILHA”, “RAIZ COMOVIDA”, “RELAÇÃO DE BORDO I, II, III”. Este o desafio que lanço, hoje, como um repto que ninguém recusará, estou certo.

Dr. Chrys Crystello.

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006