quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Bristol Rhode Island. O Senhor Mestre Artur, Pai de Cristóvão de Aguiar, num cemitério de Bristol R. I.


UM "ATÉ LOGO" COALHADO DE ETERNIDADE

Bristol Rhode Island, 26 de Janeiro de 1992.
De novo aqui me encontro, meu Pai, cada vez mais acolhido ao calor que a tua forja foi em mim demorando e estanciando. Nenhum frio de neve semelhante a este, que sopra de um quadrante de outro mundo, ou mesmo mais intenso, estaria apto a fazê-lo esmorecer e amuar em morno e tranquilo rescaldo. Disseste até logo e presto voltaste atrás, como quem se esquece da boina, e acrescentaste: “Se Deus quiser, Conceição”... Estarias porventura pressagiando fumo de tragédia ou cheiro dela erguendo-se do ventre da manhã de horas minúsculas, irrevogáveis, integralmente nuas e tuas, abastecidas daquela solidão que precede a planura da ausência? E Ele, meu Pai, não quis. Tu, que havia pouco, a Ele te encomendaras em íntimo e recolhido diálogo contigo, como o fazias todas as manhãs para aquecê-las e oleá-las de princípio! Não quis. Bem gostava eu agora de deslindar tão misteriosos desígnios. Aqui, a teus pés, no teu leito de terra, suavemente reclinado para o Sol-poente, coberto de um lençol de relva, ainda crestada destes frios desalmados da Nova Inglaterra. Não consigo. Sempre pediste a tua morte assim subitânea, um aniquilamento à tua altura... E ela foi-te concedida. E assim abalaste da vida que te magoou desde a madrugada dos anos até ao crepúsculo. Zarpaste sem incomodar ninguém. Sem tocares com tuas mãos sábias no fantasma sempre tão contigo de poderes um dia vir a ser despejado na lixeira humana de uma qualquer instituição eufeministicamente denominada lar de terceira idade... Não lhe tocaste. Mas constituiu a tua sombra nos últimos anos que viveste no sobressalto dessa suposição. Não consigo deslindar, Pai. São tão misteriosos os desígnios! E por que disseste até logo e ainda não regressaste desse poente para onde te sumiste, vou continuar esperando dentro em mim, aqui sentado nesta banqueta de pedra despolida que a vida me arrumou. Foste sempre um homem de palavra. Às vezes mais rija que o aço da ferramenta que temperavas. Outras, terna como criança embebida a fabricar seu próprio brinquedo. E tu construíste tanto, meu Pai. Desde a manhã dos tenros anos até ao alpardusco da existência! Homem de palavra. Não posso, nem razões me assistem para pôr em dúvida a tua derradeira frase "até logo". E vieste atrás e ajuntaste "se Deus quiser". Ainda conservo, por isso, o fio da lamparina aceso. Um pavio entrançado de muitos fios de esperança. a que nunca soube morrer. Sei de um saber que não se pode explicar, mas de fonte segura - a que jorra do coração-, sei que, onde quer que estejas, Pai, ou a vir do nascente ou enfronhado no ocaso, tenho a certeza que me vais ler, ou me estás já escutando enquanto, ajeito estas palavras numa bigorna, quem sabe se uma extensão da tua, todavia menos concreta, mas igualmente suada, que isto de querer ser serralheiro da palavra, como foste do ferro e do aço, não é ofício a que qualquer um se possa alcandorar, pelo menos com a perfeição que atingiste no teu. Empresta-me as tuas mãos, Pai, e tudo se tornará mais claro deste lado da vida em que me encontro. Faz hoje exactamente um ano. Saíste de casa. Até logo. E vieste atrás para emendar a secura da frase. Se Deus quiser. Não quis. Como o tempo corre sem freio, esse cavalo sem tino e de tiro puxando o arado que nos vai lavrando a leira dos sonhos com relhas de alguma ilusão, necessária. Diferente daquelas que forjaste para charruas verdadeiras de desventrar a terra, desvendando-lhe os segredos e a intimidade. Já não sentes o tempo, Pai! Despiste-te do casacão do tempo, que, por vezes, incomoda. Estás agora nu dentro de outras horas que não pesam e são leves como a eternidade. E aqui estou, meu Pai, ainda vestido do meu corpo e do tempo que o vai arruinando. No Verão passado, plantei-te flores exactamente por cima da tua cabeça. E elas medraram e floriram. Olho o céu e vejo garças. Não sei se as mesmas que te acompanharam há um ano à tua mansão ungida de silêncio e de paz. As garças não te esqueceram. Ias todos os dias alimentá-las ao Colt State Park. Conheciam-te já. Não são ingratas como certos filhos dos homens. Não te esqueceram. E acompanharam-te. Emitiram seus pios de pesar.
Trago-te este braçado de lágrimas para regar a lembrança que de ti guardo.
Até sempre, Pai!

Cristóvão de Aguiar

("O Serralheiro da Escrita", in Relação de Bordo II, Campo das Letras, 2000, pp. 188, 189 e 190, et in Emigração e Outros Temas Ilhéus, in fine. Óleo sobre tela, por Bárbara Borges)

Segundo o Prof. Doutor José Carlos Seabra Pereira, professor de Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, este é um dos melhores textos da Literatura Portuguesa sobre o Pai.

A eterna saudade do Seu neto José Manuel.

18 comentários:

Miosótis disse...

Olá!
Em primeiro lugar quero agradecer a visita e o comentário deixado no meu cantinho.
Com esse pequeno gesto, abriram-se as portas para conhecer este blog que me parece, num relance, de excelente qualidade. Para já, apenas me posso pronunciar sobre o texto, que adorei.
Excelente homenagem que aqui se faz.
Vou bisbilhotar um pouco mais, se me é permitido.
Volta sempre que quiseres, pois o caminho já o conheces e as portas estão sempre abertas a quem vier por bem.
Até lá, deixo um beijo embrulhado em pétalas de miosótis.

Anónimo disse...

EXCELENTE!

Um leitor agradecido.

S. disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Laura disse...

Coisa bela, belissima e de uma beleza palpável ao tacto, pode sentir-se ali o diálogo como se estivéssemos a fazer parte deles, lindo. Arranjas sempre coisas belas. Parabéns. jinho da laura.

Anónimo disse...

There are three kinds of men:

the nice ones

the ugly ones

the ones that believe they are smart...

SAM disse...

O texto que se lê e se absorve as melhores lições de amor é por demais admirável e de qualidade singular. Agradeço esta oportunidade de ler tão belo texto, tanto na forma como no mais profundo histórico de sentimentos. Obrigada pela visita. Por mim, aqui estarei sempre para adquirir conhecimentos literários e o prazer da boa leitura.


Beijos

jawaa disse...

Grata por sua visita e pela oportunidade de conhecer escrita excelente.
Voltarei com mais tempo.

Téméraire disse...

No, There are four kinds of women:
the pretty ones
the ugly ones
the blondes
And MY WIFE ::))

Lúcia disse...

um texto comovente de admiração e saudade.
nada que não se esperasse de alguém que usa as palavras de maneira exemplar.

Mateso disse...

Simplesmente genial. O mundo do coração e o submundo da mente. Binómio nem sempre racional de sentido coerente.
Abraço.

Pepe Soriano disse...

Obrigado por la visita a Mandíbula Afilada

Un saludo.

Su disse...

There are three kinds of men:

the pretty ones

the ugly ones

and the ones that believe they are smart... New literary blog.

Lapa disse...

Su:
Pretty é para as mulheres

Handsome para os homens.

Além disso a boca já é repetida.

Lamento a falta de originalidade...

Agradeço a participação, anyway...

sombra e luz disse...

Zé Manel, esqueci-me de dizer, naquele anterior comentário... que o texto que nos dava a conhecer é magnífico... e que me emocionei ao lê-lo porque sei o que é perder um pai...

Você não quer voltar, ao meu blog e substituir aquele comentário que apagou por outro, em português, para ver se eu percebo melhor?!...

Repito... boa cepa costuma dar bom vinho...
Abraço

Lapa disse...

Sombra e luz:
Obrigado pelo seu comentário.
Voltarei ao seu blogue para comentar, devidamente, uma próxima publicação sua.
Abraço.

P.S. De facto chamo-me José Manuel mas agradecia ser tratado por lapa neste blogue.

sombra e luz disse...

ok,lapa :)

Su disse...

lapa..não houve originalidade..nem era para haver.............foi um colar do seu coment.....esse sim uma boca..não entendida......e ops........resvalei

Su disse...

neste post só quem não fosse atento não saberia quem era o avo..logo quem seria o pai....de imediato quem é lapa..........

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006