quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Coimbra, May 1, 1974.

Coimbra, May 1, 1974 ─ I have never seen a deluge of people of this nature in all my born life. Neither the procession of the Senhor Santo Cristo dos Milagres, the largest of all held, also in May, on one of the Islands of the Azores, might be compared with what I have seen today, with tears gushing out, willingly, from my full eyes. It was like a river Tagus overflowing of people from the Square of the Republic to the University Stadium, on the river Mondego left bank.
Miguel Torga followed close to me. I tried to read in his face what he would feel within his soul. I was not successful. However, his presence in the grand civic procession gave the event a guarantee of patriotic seriousness ─ the Poetry and the Revolution hand in hand down the Avenue. God grant that this Hymen might be lasting!
Even my eldest son, Zé Manuel, who is little more than seven years old, has had his first act of domestic emancipation ─ he got lost among the crowd and only came back home by nightfall! I saw him very happy, because, according to what he said, he did it on purpose ─ he knew the streets that could lead him back. He also wanted to enjoy his share of freedom…
Judging by the crowd that joined Coimbra procession and all the others I watched on television in the evening, it gave me the idea that everyone in this country was longing for democracy. Are there not too many democrats in so small a nation? It is high time to begin to doubt so much abundance…

(From the book: Miguel Torga ─ The ploughman of the Writing ─ A Shared Path)

sábado, 18 de dezembro de 2010

Professor Luís Aguiar-Conraria conquista prémio do PROGRAMA PARA A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS EM PORTUGAL

Concurso 2010: Incentivo à publicação em revistas internacionais de referência
Fundação Calouste Gulbenkian
Tendo como objectivo estimular a internacionalização das Ciências Sociais em Portugal, a Fundação Calouste Gulbenkian instituiu o Programa para a Internacionalização das Ciências Sociais, abrangendo as seguintes disciplinas: Antropologia, Ciências da Educação, Ciência Política, Demografia, Geografia Humana, História, Psicologia Social, Relações Internacionais e Sociologia.
Em 2010, são admitidos a concurso artigos publicados, ou aceites para publicação, em revistas internacionais de referência durante os anos de 2008 e 2009, da autoria de investigadores portugueses ou estrangeiros, com idade inferior a 40 anos (em 30 de Setembro de 2010) e que exerçam a sua actividade em instituições portuguesas.
Serão atribuídas duas distinções, no valor de 5.000€ cada, por um Júri constituído por três investigadores universitários nomeados pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Informação complementar:
Fundação Calouste Gulbenkian: http://www.gulbenkian.pt/section63artId1950langId1.html

Parece-me que o Centro Cirúrgico de Coimbra tratou o meu Pai com negligência grosseira. A ser verdade, isto não vai ficar assim...

4.O pior soube-o há pouco. Fiz uma ressonância magnética que acusou uma fractura no ilíaco, exactamente no osso do qual o douto médico, com especialidade tirada em França em cirurgia maxilo-facial,retirou um enxerto para o colocar no maxilar superior, a fim de reforçar o osso da gengiva para que possa haver implante. São as trafulhices da Medicina privada, onde os doentes são meras fichs do jogo da roleta de um casino chamado, pomposamente, Centro Cirúrgco de Coimbra, na estrada de Taveiro…

Comment by Cristóvão e Aguiar — December 18, 2010 @ 1:36 am in A Destreza das Dúvidas





sexta-feira, 26 de novembro de 2010

sábado, 20 de novembro de 2010

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Incrível: Câmara Municipal de Coimbra, mantém stand-sucateira ilegal aberto ao público e continua a encobrir o licenciamento da Cabovisão, dentro do stand e em zona de estrada, às autoridades judiciárias. Além de não encerrar, ainda permite que proprietários prevaricadores depositem mais viaturas e barcos.



1-Há mais de 4 anos que a Câmara Municipal finge querer actuar, ao mesmo tempo que vai encobrindo o licenciamento da Cabovisão dentro daquele Stand-sucateira ilegal numa das entradas principais de Coimbra.

2-As Águas de Coimbra ignoram e encobrem o vazamento de águas pluviais do IC2 directamente num posto de transformação de electricidade, fechando os olhos, protegendo desta forma os prevaricadores pondo em perigo interesse geral e a segurança da comunidade envolvente.

3-Estradas de Portugal perdoaram ilegalmente avultadas quantias aos prevaricadores por ocupação de zona de estrada, quer do stand, quer do seu alargamento ilegal.
(continua)

domingo, 17 de outubro de 2010

sábado, 9 de outubro de 2010

Professor Aníbal Pinto Castro, admirador da obra de Cristóvão de Aguiar, faleceu aos 72 anos de idade.

veja aqui: 1; 2,

"Provedor da Santa Casa da Misericórdia e presidente da Confraria da Rainha Santa Isabel, o docente era considerado uma das maiores referências das Letras e Humanidades, em Portugal e no estrangeiro Aníbal Pinto Castro, professor jubilado da Faculdade de Letras, faleceu ontem de madrugada, aos 72 anos, nos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde estava internado há cerca de um mês. Doente há algum tempo, o estado de saúde do provedor da Santa Casa da Misericórdia de Coimbra agravou-se nos últimos dias, adiantou ao Diário de Coimbra fonte da instituição.
Natural e residente em Cernache, onde nasceu a 17 de Janeiro de 1938, Aníbal Pinto Castro licenciou-se em Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em 1960, com a tese Balzac em Portugal. Considerada uma das maiores referências das Letras em Portugal e no estrangeiro, doutorou-se em Literatura Portuguesa na “sua” universidade e, em 2007, recebeu o doutoramento honoris causa pela Universidade Católica Portuguesa, na celebração dos 40 anos desta instituição.
Com uma vasta obra que ultrapassa os 200 títulos, Aníbal Pinto Castro debruçou-se sobre vários domínios e personalidades, com a Universidade de Coimbra a destacar a tese de doutoramento, “Retórica e teorização literária em Portugal: do Humanismo ao Classicismo”, estudos sobre a obra do padre António Vieira, Camões – foi fundador do Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos da Universidade de Coimbra -, António Ferreira, Camilo Castelo Branco ou Eça de Queirós, sem esquecer os textos sobre teorização e crítica literária, crítica textual e história da Cultura.
Na opinião de Carlos André, director da FLUC, Aníbal Pinto de Castro «deixa uma obra de valor inestimável» e deixa ainda uma «excelente memória» a todos aqueles que com ele conviveram no espaço universitário e não só.
A dedicação do docente foi bem para além das portas da faculdade. Na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra foi director, desde 1988 a 2004, devendo-se a ele a aquisição da Livraria de Oliveira Martins, dos epistolários de Eugénio de Castro, do 2.º Marquês de Alorna ou as bibliotecas de ciências musicais do tenente Manuel Joaquim e de Maria Augusta Barbosa. Foi também graças à sua insistência que foi adquirido o primeiro sistema integrado de gestão bibliográfica, instrumento que associou várias biblioteca da Universidade.
Ao longo da vida, Aníbal Pinto Castro dedicou-se também às causas sociais. Foi durante vários anos director da Casa de Infância Doutor Elísio de Moura, e, mais recentemente, provedor da Santa Casa da Misericórdia de Coimbra. Foi nessa qualidade que deu a sua última entrevista ao Diário de Coimbra, a 18 de Junho de 2010.
Na altura, congratulava-se com a abertura da nova valência – a creche -, deixando o desejo de construção de um campus social, na zona de Banhos Secos, para instalar os jovens e os idosos.
Pinto Castro era, também, há largos anos, presidente da Confraria da Rainha Santa Isabel e foi nessa qualidade que fez uma das suas últimas aparições públicas, na apresentação do programa das Festas da Cidade, no Convento de Santa Clara-a-Velha.
Entre as distinções, era comendador da Ordine al Mérito della Republica Italiana, comendador da Real Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa e Cavaleiro da Ordem Equestre do Santo Sepulcro.
O funeral de Aníbal Pinto Castro realiza-se hoje, às 11h00, da Igreja de Cernache para o cemitério local. As cerimónias fúnebres serão presididas pelo bispo de Coimbra, D. Albino Cleto."
In Diário de Coimbra de 9 de Outubro de 2010.

"Passageiro em Transito" de Cristóvão de Aguiar está a ser traduzido em ITALIANO, FRANCES, ROMENO, POLACO, , RUSSO, E BÚLGARO (e possivelmente Esloveno)


[...]A obra de escritores açorianos, CRISTÓVÃO DE AGUIAR, DIAS DE MELO, DANIEL DE SÁ, E VASCO PEREIRA DA COSTA, entre outros, está a ser estudada em mestrados e doutoramentos na Universidade de Constança (Constanz), na Roménia, e no Instituto de Estudos Ibéricos e Ibero-americanos da Faculdade de Novas Filologias da Universidade de Varsóvia, na Polónia, havendo já parcerias com tradutores colaboradores dos colóquios para a tradução da obra “O Passageiro em Transito de Cristóvão de Aguiar) ser traduzido em ITALIANO, FRANCES, ROMENO, POLACO, , RUSSO, E BÚLGARO (e possivelmente Esloveno). Espera-se que este trabalho esteja concluído dentro de dois anos, seguindo-se a tradução de Daniel de Sá (O Homem que queria ser Deus) e da poética de VASCO PEREIRA DA COSTA. Estas traduções serão, posteriormente, editadas naquelas línguas com o apoio do INSTITUTO CAMÕES (Portugal). [...]

Chrys Chrystello

Presidente da Comissão Executiva, Colóquios da Lusofonia, em artigo especial para o Mundo Lusíada.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Expresso das Nove 20.º aniversário: “Desafios dos Açores para o Século XXI”, publicados em livro, com um texto de Cristóvão de Aguiar.

Veja o texto aqui

Adicionar legenda
A edição, que reúne textos de 100 personalidades açorianas e comemora o 20º aniversário do Expresso das Nove, pode ser adquirida na Livraria Solmar.

O livro que assinala os 20 anos do Expresso das Nove já se encontra à venda na Livraria Solmar, em Ponta Delgada.

A publicação inclui a totalidade dos textos das 100 personalidades que participaram na edição especial do jornal, subordinada ao tema “Desafios dos Açores para o Século XXI”, que foi para as bancas no passado dia 26 de Março.

Da lista de personalidades que aceitaram pensar a Região e as suas potencialidades à luz de um mundo global nas décadas que se avizinham, constam nomes como os de Álvaro Monjardino, João Bosco Mota Amaral, José Medeiros Ferreira, José Manuel Monteiro da Silva, Mário Fortuna, Cristóvão de Aguiar, Gustavo Moura, entre muitos outros.

Todos os escritos estão agora disponíveis em livro de capa dura, que pode ser adquirido, em Ponta Delgada, pelo preço de 20 euros.

O Expresso das Nove foi fundado a 22 de Março de 1990, então com o nome de Jornal de Ponta Delgada.

Jornal Diario

2010-10-01 18:00:05

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

1. Pois eu li uma obra cujo autor merecia um Nobel! in Diário de Coimbra,31/08/2010 "A Tabuada do Tempo – A Lenta Narrativa dos Dias" de Cristóvão de Aguiar.

“(…) Ouço o Sol brincando em silêncio num retirado recanto do jardim. Por vezes sabe-me a som. Tanto desejava compartilhar este secreto sol que esbraseia o meu saboreá-la. Repouso o coração no sanguíneo desfecho da tarde relvado de memória. Andarinhocos empoleiram-se no telhado da casa enquanto retiro pétalas às palavras. Hão-de profetizar e matizar as cores pacificantes que molharam o seu corpo escorrido de verde-mar. Com os olhos acaricio-a ao longe e ao longo das linhas de água que de Ela se despenham coalhadas da luz salina que as ondas nele esculpiram. Gostava que o mapa de sal, que a cristalografia constrói no silêncio suturado de sol, entardecesse sobre a pele do seu corpo. (…)”
Cristóvão de Aguiar escreve num jeito de ilhéu, saudoso e melancólico. “Despenha-se-me em cascatas pelos sentidos abaixo. A Ilha.” A sua Ilha sempre presente “navegando nos mares que me habitam por dentro.”E o mar, eternamente o mar da sua Ela, em que “A Tabuada do Tempo” é o seu diário com sabor a sal, a maresia, um suceder de partilhas e vivências quotidianas, postas a nu, numa descrição intimista. Em muitas e deliciosas páginas o autor, “vestindo a recordação de palavras (…)” em que “ (…) a saudade é o desejo de desejar e não o desejo das coisas em si”,perpassa pela sua juventude na Ilha mas também, no seu dia-a-dia citadino em Coimbra. Ao longo das laudas o autor, põe em confronto permanente a guerra e paz no seu “parir “ a escrita, reconhecendo não conseguir ler outrem enquanto em “trabalho criativo”. Sempre rodeado de livros que lê ou escreve, Cristóvão de Aguiar confronta-se com a publicação duma sua obra em que a espera angustiante, o aguardar dos comentários por parte de quem lê o original, a ansiedade no “sim” do editor o trazem “curioso e expectante”. Existe no escritor o narrar dos dias. As trivialidades de que se compõem a nossa vida sobretudo o “tempo” que sempre nos gere e nos mata; o clima ensolarado que nos enche a alma ou nos corrói de calor; a chuva e o nevoeiro que nos tolhem os passos estugados. “Esta tarde a noite lembrou-se de cair mais cedo. Ainda não são quatro e meia e lá fora já há ameaças de escuridão. Tanto e tão grosso nevoeiro (…) Tenho frio (…) O frio deve ser outro e provir de outro quadrante. Só assim se compreende”. É com estas palavras que o autor pressagia um “não” de “Ela”. Depois tudo se resume a uma tulipa “que Ela me deixou no solitário sobre a secretária” e nos fantasmas que deambulam pela casa.
“A Tabuada do Tempo A Lenta Narrativa dos Dias” é uma apresentação de vida através duma lógica talvez matemática, talvez filosófica … mas sobretudo através da lógica do amar, do sentir e da espera: “Nem tão-pouco te prestas a analisar ou a sentir isto: que nem tu nem eu merecemos ser torpedeados por esta maneira tão absoluta de contracenar (…) Vais deleitar-te com o dano que a missiva te provocará e tu a leres de afogadilho. O que tu fazes para te provar que me amas ou te amas! Depois de amanhã à noitinha vais zarpar ao meu encontro. Tomarás a lancha para me ires sentindo em cada sorvo de vaga. Ao longo do mar revolto sobre o qual, em vagalhão, ainda te espero. Sempre te esperei!”

sábado, 11 de setembro de 2010

Fado do Estudante por Vasco Santana. Letra e vídeo.


Que negra sina ver-me assim
Que sorte e vil degradante
Ai que saudades eu sinto em mim
Do meu viver de estudante

Nesse fugaz tempo de Amor
Que de um rapaz é o melhor
Era um audaz conquistador das raparigas
De capa ao ar cabeça ao léu
Sem me ralar vivia eu
A vadiar e tudo mais eram cantigas

Nenhuma delas me prendeu
Deixa-las eu era canja
Até ao dia que apareceu
Essa traidora de franja

Sempre a tinir sem um tostão
Batina a abrir por um rasgão
Botas a rir num bengalão e ar descarado
A malandrar com outros tais
E a dançar para os arraiais
Para namorar beber, folgar cantar o fado

Recordo agora com saudade
Os calhamaços que eu lia
Os professores da faculdade
E a mesa da anatomia

Invoco em mim recordações
Que não têm fim dessas lições
Frente ao jardim do velho campo de Santana
Aulas que eu dava se eu estudasse
Onde ainda estava nessa classe
A que eu faltava sete dias por semana

O Fado é toda a minha fé
Embala, encanta e inebria
Dá gosto à gente ouvi-lo até
Na radio - telefonia

Quando é cantado e a rigor
Bem afinado e com fulgor
É belo o Fado, ninguém há quem lhe resista
É a canção mais popular, toda a emoção faz-nos vibrar
Eis a razão de ser Doutor e ser Fadista

terça-feira, 31 de agosto de 2010

“Naufrágio”, de Cristóvão Aguiar, foi cantado por Duarte e Ciríaco com a música popular terceirense Charamba


Naufrágio

A história que eu vou contar
ouvi-a na minha aldeia
onde à noite a voz do mar
murmura canções na areia.

História de pescadores
do cais negro da Pontinha
onde há grandes senhores
que bocejam à noitinha.

Foi o barco do Zé Tordo
partiu na noite para o mar
e na madrugada ao porto
o seu barco sem chegar.

Encheu-se a praia de gritos
de gente da minha aldeia
ao ver o corpo do Zé
trazido na maré cheia.

Ouvem-se vozes, coitado
cinco filhos e mulher
sem uma côdea de pão
sem um abrigo sequer.

E no enterro à viuva,
levando ao Zé muitas flores,
prometeram-lhe a sua ajuda
o povo e os grandes senhores.

Mas dois anos já são passados
e na praia da minha aldeia
vêem-se cinco crianças
brincando nuas na areia.

E da moral desta história
tirem vossas conclusões
uma família não vive
só de boas intenções.

(Cristóvão de Aguiar)

sábado, 28 de agosto de 2010

PELA ILHARGA ESQUERDA – SOBRE A ESCRITA DE CRISTÓVÃO DE AGUIAR, A PROPÓSITO DE CÃES LETRADOS, por Carlos Alberto Machado

PELA ILHARGA ESQUERDA – SOBRE A ESCRITA DE CRISTÓVÃO DE AGUIAR,

A PROPÓSITO DE CÃES LETRADOS1

por Carlos Alberto Machado

AS PALAVRAS

As palavras armazenam-se como ladrões maduros

São flexíveis à memória são marinheiros em terra

Acontece dizer: levantem-se e caminhem

Mas quem somos e que hábito envergamos?

As palavras entontecem

Quando dispersas levantam rumos vários.

Zeca Afonso, Poemas e Canções

I shall never get you put together entirely,

Pieced, glued, and properly jointed.

(Nunca conseguirei juntar-te todo,

compor-te, colar-te e unir-te devidamente.)

Sylvia Plath, The Colossus (trad. Maria de Lourdes Guimarães)

[embaraço]

Falar de alguém. Falar sobre o que alguém escreveu. Em público. “Sempre que alguém me faz essa intimação fico sem saber aonde pôr as palavras. (…) Não sei onde as pôr. Rodo-as, camponesamente, entre as mãos, como o aldeão ao chapéu em casa de gente de cerimónia.2” Mas avanço. Fecho os olhos e avanço com uma voz inventada, “em punhal, de encontro ao lugar comum do peito, a ilharga esquerda.3” Nossas debilidades – ou fortalezas.

[inquirição]

Não irei “inquirir acerca das [suas] origens, das raízes que [o] fascicularam pela vida fora. De como foi possível arrancá-las e carregá-las depois na carroça de outro destino. Se houve ou não uma raiz literária que [lhe] deslavou a vida com metáforas…4”

1 Editora Calendário, 2008.

2 M/CS: 168-169.

Aconselho já os leitores a não se preocuparem em seguir as origens das chamadas para notas de rodapé, pois apenas distraem a leitura, que se quer proveitosa – a esmagadora maioria delas são, como se explicará, de Cristóvão de Aguiar.

3 M/CS: 164.

4 PT: 171.

Não. Escolhi o fascínio de viajar pelas palavras de Cristóvão de Aguiar – e é esse fascínio que desde logo afasta qualquer intento bisbilhoteiro. Empreendo a viagem, humildemente, com a esperança de poder sentir o que de outro modo seria impossível sentir: os encontrões inadvertidos das suas palavras, as suas lâminas ainda demasiado afiadas e a sua dureza rude – as suas palavras ainda antes de serem matéria narrativa, as palavras antes de (aparentemente) estabilizarem no devir das linhas paralelas de um texto.

[ideias]

Sinto que neste preciso momento devo partilhar convosco umas poucas ideias que hão-de evoluir por aí abaixo e, a modos de jangada, nos manterem à tona do entendimento: – a escrita não é encarada como “distracção”, divertimento” ou “habilidade circense”, para isso, procure-se na Internet um qualquer “professor Marcelo”; – “Por trás de cada linha ou verso escrito, muita dor sublimada se encontra latente. E sacrifício. E sofrimento.5” A escrita de Cristóvão de Aguiar exige dele, então, dor e sacrifício – mas não necessariamente do leitor, pergunto? “Quem escreve, disse alguém, escreve-se. (…) Recria-se a partir do intimamente vivido. Ou do revivido, ainda com mais intensidade, na arena de desforço onde a memória aguça e esgrime as suas armas de ataque e de defesa…6”; a memória, ainda: mesmo para haver algo de novo a dizer, é preciso “que se desça aos infernos do íntimo e se escarafunche o que lá possa haver (e há) de original, no sentido de que é só nosso.7”; - e, tão importante, o esforço persistente à procura da perfeição inalcançável, demanda sem descanso, polindo “cada palavra ou frase que consert[a] na bigorna da perseverança. E da paciência.8”

5 T: 15.
6 T: 15.
7 T: 15.
8 TT: 97.

[a procura da perfeição]

Retomo: Cristóvão de Aguiar diz-nos quase até à exaustão: a escrita é coisa de causar “instantes de um prazer rasante à dor”9. Não se trata aqui, obviamente, de querer elevar o acto criativo a coisa divina, de considerar a escrita como matéria exclusiva de eleitos ou de iluminados. Não. Cristóvão de Aguiar sabe, como poucos, do que se trata: de uma procura daquilo que sabemos, tragicamente, não se poder alcançar – é o que nos diz, por palavras semelhantes, Eduardo Lourenço, a propósito de uma possível definição de poesia e da sua inevitável tragicidade. Cristóvão de Aguiar, artesão honesto e honrado do dizer escrito, não pode deixar de o saber e de o sentir, e de o dizer descarnadamente: “Penélope desfazia para enganar os pretendentes. Eu para iludir o tempo e procurar uma perfeição que nunca se deixa apanhar. Situa-se sempre um pouco mais além.”10. Marca maior da sua escrita é a que releva da sua consciência aguda de ser uma nova “Penélope de pacotilha11”, nesse interminável fazer e desfazer os fios da vida e da escrita, em “constante dobadoira a remendar e a estraçoar os livros que componho com muito trabalho e suor” – palavras suas12. Uma luta “agónica para atingir a perfeição da escrita”, como acentua Eloísa Alvarez, na apresentação de A Tabuada do Tempo.

[afectos]

É agora o momento de dizer que Cristóvão de Aguiar, ao mesmo tempo que expõe e se expõe no labor miudinho de entrelaçar vida e literatura, demarca-se com clareza dos “marajás da crítica13”: “só eu é quem sabe as linhas com que coso ou cozo a minha escrita…”14. Por vezes é preciso dizer as coisas com os nomes certos: “Os escritores passam a vida, por via da inspiração, a roer em público o plástico traseiro da esferográfica. Os críticos fazem os seus biscates semióticos, e acabam por publicar autênticas peças sinfónicas em si maior – a chamada crítica em si.15”

9 TT: 318.
10 TT: 97-98.
11 CL, Nota Prévia: 9.
12 CL, Nota Prévia: 9.
13 Eduardo Lourenço, “Ficção e realidade da crítica literária”, in Eduardo Lourenço, O canto do signo. Existência e
literatura (1957-1993), Lisboa, Presença, 1994: 15 [A situação do crítico pareceu-se durante séculos à do marajá caçando o tigre real do alto da torre confortável e segura de um elefante.]
14 CL, Nota Prévia: 9.
15 PT: 162.
Num pequeno texto da década de cinquenta, Maurice Blanchot16 reflecte sobre a necessária impureza da crítica e em como nessa impureza se revela justamente a sua razão de ser. Se as obras são de uma infinita solidão, como dizia Rilke, nada há de pior para elas do que a crítica ao chamar a atenção sobre as obras, ao fazê-las sair desse ponto de fascinante discrição onde elas se formaram e onde gostariam de se fechar, ao abrigo de toda a curiosidade pública. Mas a crítica é uma força que passa rápida e na força da sua soberania introduz, sem precauções, as obras nas mãos do mundo. A essência do crítico moderno é ele estar ligado ao instante, à acção, ao quotidiano fugitivo, à instantaneidade. O crítico não deve ter arte própria nem talento pessoal, ele não deve ser o centro. É certamente um olhar, mas um olhar anónimo, impessoal, vagabundo. A obra, na sua intimidade fechada, é ciumenta, desejosa de negar o exterior: a tarefa da crítica não pode deixar de ser a de seu antagonista. Mas para contrariar a obra de arte, a crítica deve ao mesmo tempo aproximar-se dela, de a compreender, de a trair, não porque não a compreenda, mas exactamente porque ela é um esforço muito grande de compreensão. Mas a interpretação mais fiel é também a mais infiel, porque ele expõe completamente a obra à verdade do dia banal quando a natureza da obra é a de escapar à verdade.17 No fundo, aquilo que é a verdade da obra é inalcançável ou não existe. Como sublinha Eduardo Lourenço, o “(…) discurso dos outros só se aproximará da verdade da obra se tomar consciência da sua impossível formulação da verdade, ou da sua nãoverdade essencial”.18
Isto ajuda-me a dizer que nesta “apresentação”, como já se deverá ter percebido, não assumo o papel do crítico todo-poderoso, do crítico dono-da-verdade. Contudo, falar de alguém ou de uma obra é sempre um falar-sobre. Ora, este falarsobre assume também ele o risco da interpretação, o risco de dizer, mesmo sem o dizer: isto quer dizer aquilo. Como a ultrapassagem ou a fuga a este estigma será improvável, há quem escolha, como eu, dizer claramente duas coisas: a primeira, é a 16 Maurice Blanchot, «La condition critique», in Trafic, Revue de Cinéma, Paris, nº 2, Printemps 1992: 140-142. O texto foi originalmente publicado em L’Observateur, nº 6, de 18 de Maio de 1950. 17 Extracto do meu livro Teatro da Cornucópia. As Regras do Jogo, Prefácio de Alexandre Melo, Lisboa, frenesi, 1999.
18 José Gil, “O ensaísmo trágico”, in José Gil e Fernando Catroga, O ensaísmo trágico de Eduardo Lourenço, Lisboa,Relógio D’Água, 1996: 14. de que se está a falar de uma obra ou de um autor de quem se gosta – o que desde logo afasta qualquer máscara de “imparcialidade”; portanto, já fui, e serei, “parcial”,
é, pois, uma questão de afecto; a segunda, é que este falar, mesmo a “favor” do autor e da obra, é sempre um falar de um indivíduo que, como defende António Pinto Ribeiro, está historicamente situado, porque “toda a escrita sobre arte (…) é sempre determinada pelo local e pela época precisos em que é produzida, ou seja, deriva do ‘estado do sítio’ em que historicamente aconteceu.”19. «O que transportará consigo (…) o escritor que escreve sobre objectos ou situações de arte? Tudo o que ele próprio é e tudo o que sabe. Transporta consigo um conjunto de dados, determinados pontos de vista, um número limitado de preconceitos, algumas estratégias de análise o sexo, a sua sexualidade, algumas crenças (…).”20; portanto, este escriba que aqui hoje vos fala da obra de Cristóvão de Aguiar é um ser, como todos nós, sujeito às mesmas boas e más consequências de estar vivo e estar vivo num determinado local e numa determinada época. Por isso… Então, o que para trás ficou dito e o que se seguirá é, tão só, um testemunho de leitura – valha isto o que valer – e um desafio de partilha: muito de que aqui vos digo é dito através das palavras concretas de Cristóvão de Aguiar. Como alguém disse, a melhor crítica de um texto é o mesmo texto dito em voz alta.

[maravilhamento]

Os obras de Cristóvão de Aguiar são de uma enorme riqueza vocabular – que não se restringe ou deixa armadilhar em regionalismos, tenham eles deitado raízes atrás dos séculos ou não –, de muito variadas fontes, e passadas pelo filtro finíssimo do homem que sempre considerou “a escrita [como] a única maneira válida de [s]e apresentar documentado na vida.21” Mas este rico e variado universo vocabular nunca por si só faria literatura. O que seguramente aí nos atrai e maravilha é a desconcertante variedade de danças com que esse mundo imenso de palavras nos brinda, um aluvião de combinatórias que têm também o condão de evitar mostrar-nos os seus modos de fazer, 19 António Pinto Ribeiro, «Novas lógicas, novos sentidos», in Maria de Lourdes Lima dos Santos (coord.), Cultura e economia - Actas do Colóquio realizado em Lisboa, 9-11 de Novembro de 1994, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, col. Estudos e Investigações, nº 4, 1995: 91-96.

20 Idem, pg. 91.
21 RL-I: 304.

os seus esqueletos ou ossaturas – mas não evita, para nosso prazer, de mostrar a sua presença como distanciamento irónico, como por exemplo naquele que é para mim uma obra notável de inventividade, Passageiro em Trânsito: “(…) Afrânio (…) esgueira-se com certeza para as linhas desta escrita.” (33); “(…) tenciono ainda apanhá-lo no alto mar, se o tempo e a prosa estiverem de ficção.” (102). “(…) Agora vou puxar o senhor Afrânio padrinho para dentro do rego desta história.” (103) Resistindo, então, à vaidade de nos mostrar as suas habilidades construtivas, Cristóvão de Aguiar dá-nos em oferenda fluxos de palavras sem sobressaltos, dorsos nem sempre dóceis de sons e sentidos que nos impelem a viajar para espaços de ser até aí sequer imaginados. Mas surge sempre uma ocasião em que um pequeno escolho interrompe a marcha e então voltamos atrás para refazer caminho – que nunca se repete. E a cada regresso os trilhos aparentemente conhecidos fazem-se outros. E depois de muito caminhar cada palavra torna-se uma pedra em que nos refazemos e refazemos o mundo. E depois ainda deixamos de saber afinal que “história” ele estava a contar-nos e é então quando se dá em toda a sua magnificência o “alumbramento” da palavra, quando ela tem o atrevimento de querer ser, na qual e pela qual a vida se dá a partilhar.

[a construção de si]

Cristóvão de Aguiar desce “aos seus infernos do íntimo” e lá “escarafuncha o que lá é mais original”, no sentido do que possa ser apenas seu. Tal como Dom Quixote desce à caverna de Montesinos e de lá sai, vitorioso, com uma “história” que é só sua, assim faz Cristóvão de Aguiar quando desce ao seu “inferno íntimo”22. Embora aos olhos dos incrédulos “sanchos” estas “histórias” possam ser alucinações ou mentiras, o que é certo é que as “histórias” de ambos são na verdade absolutamente verdadeiras. E são-no porque pertencem a um outro patamar, a outra natureza, aquela que advém de uma paciente, e tantas vezes dolorosa, fabricação de si mesmo. Um homem – Miguel de Cervantes ou Cristóvão de Aguiar – elabora milhares de páginas escritas que mais não são que um processo de criação e de união de pontos que apenas no fim da obra justificam um nome. Cervantes no Dom Quixote não criou a figura, “Dom Quixote”, 22 Creio que Cristóvão de Aguiar é, aliás, leitor assíduo de Cervantes e do seu Quixote: ver por exemplo: TT: 73. mas sim a figura “Miguel de Cervantes”, tal como Cristóvão de Aguiar faz desde a primeira Relação de Bordo até a A Tabuada do Tempo – apenas para referir a sua escrita diarística, mas que a ela não se restringe. Com todos os livros que escreveu, não é apenas o trabalho laborioso da escrita em busca de uma impossível perfeição – de escrita e de literatura. O que sempre demandou, e ainda demanda, creio, é a sua própria (impossível) perfeição como ser humano, como homem. Mas isto não no sentido de algum dia vir a descobrir quem (na verdade) é, como se se tratasse de um tesouro ciosamente escondido por Deus, não. Não é um “procura-te e encontra-te”, ou um encantatório jogo infantil de “escondidas”, não. Trata-se, pelo contrário, de um processo de construção, no qual são usadas matérias bem à mão de semear: as palavras e a memória, mas uma memória que não se limita a rondar escaninhos mais ou menos obscuros do passado e a reavivá-los, mas uma memória que opera processos recombinatórios do vivido, os escolhe e monta e remonta sob um prisma que não é apenas devedor de uma hipotética verdade pessoal (e, no caso de Cristóvão de Aguiar, familiar). Imaginemos que a nossa vida certo dia se fragmentava em milhares de minúsculos pedaços e que nos era oferecida uma derradeira possibilidade de voltar a fazer deles um ser – de preferência cada um de nós mesmos em “versão aperfeiçoada”... – isto é, algo que de alguma forma voltasse de novo a fazer sentido. Sem livro de instruções – apenas Deus tem o seu e usou-o para fazer o mundo – que ou quem nos guiaria nesse empreendimento? Juntar às cegas os pedaços? Ao acaso? Cristóvão de Aguiar resolveu seguir outra “instrução”: a cada pedaço colou um nome, uma palavra; depois, foi experimentando juntar cada destes pedaços uns a seguir a outros, experimentou sequências curtas e longas; repetições; retornos; alguns pedaços foram abandonados ou desperdiçados, outros alcandorados a chaves-mestras das sequências de nomes e palavras, algumas delas novas, outras com novos usos que as posições relativas lhes ofereciam. Muito tempo demorou ele a fazer nova configuração dos fragmentos estilhaçados da sua vida – provavelmente ainda e sempre incompleta. Ou com tantas faces quantas lhe pode oferecer cada volta completa da roda de oleiro.

[obsessões]

Não gostaria de lhe chamar obsessões, mas por vezes parecem-se com isso. Algumas delas foram já afloradas, tais como a busca da perfeição, a busca da sua própria construção (ou a sua identidade, se se quiser), e a sua relação com a crítica. Acrescento à digressão uma espécie de montagem com as palavras do autor – as suas obsessões ou inquietações –, extraídas daquela espécie de oficina de escrita que é toda a sua produção diarística: o escrever-se com a plasmação da sua memória (de elefante); o incansável labor sobre a matéria palavra (rigor, precisão, esforço, dor, angústia, depressão, júbilo…).
Permitam-me chamar aqui uma voz que o próprio Cristóvão de Aguiar convoca para o seu primeiro Relação de Bordo: o poeta Joaquim Manuel Magalhães. É, para mim, este belíssimo poeta que, de tudo o que li sobre o nosso autor, aquele que, precisamente como poeta, isto é, como cúmplice da escrita, mais luz nos oferece para ler Cristóvão de Aguiar ainda com mais prazer. Diz ele – e desculpem-me a citação longa: “Um romance que parta da ligação entre um local de comportamentos e um contínuo fluxo verbal, desenfreado de memória, enternecido de situações e carregado de um ritmo transbordante não podia deixar de agradar mesmo a quem não lê um romance a não ser com uma certa distância. Fascinou-me muito mais o seu romance que Casas Pardas da Velho da Costa ou Directa de Nuno Bragança. A sua “istora” (termo sedutor) de reminiscências é muito importante. Deixe-me acentuar três pontos: – lembrou-me o António Manuel Pires Cabral a sua “matança” açoriana. Lembrou-me porque gostei muito de ambas; a emigração, dada sem demagogia nem complacências, antes como ir-se embora, com a consciência dos limites económicos duma colectividade; – a poesia narrativa dos corpos, dos desejos, das células familiares. – O processo: um encadeamento, menos narrativo que designativo da situação; quero dizer, o que conduz a istora não é um enredo, mas impulsos organizados a partir de momentos da memória, ligado sempre a situações sociais e comportamentais.”23 “Sinto pavor à morte.24”, diz Cristóvão de Aguiar. E quando a sua avó Hermínia ainda em vida se despede dele como se estivesse morta, ele fica “sem saber onde pôr as
23 RL-I: ???.
24 RL: 310.
palavras (…).25” Toda a sua escrita está marcada desde muito cedo, aliás, por este pavor, como ele próprio regista em nota de diário datada de 7 de Abril de 1965, quando escreve sobre a sua intenção de publicar o seu primeiro livro, de poemas: “(…) se morrer na guerra fico com descendência.26” (o livro, entenda-se). “Sempre tiveste um medo pânico da morte.27”, diz, mais tarde, de si para si.
O sofrimento de Cristóvão de Aguiar não é, seguramente, motivo de autocomiseração ou de exibição gratuita, mas não pode nunca deixar de gritar quando a dor lhe dói, e, quando alguma vez deixou de a passar a escrito, vem o inevitável queixume: “(…) talvez tivesse ficado com menos agrafos no corpo e decerto menos agravos na alma.28”
Para Cristóvão de Aguiar, escrever é na verdade um modo de se resolver,29 e é deste modo que ele o exprime: “(…) o modo de te resolveres por escrito (…)”. Que é como quem diz, uma espécie de renascimento. Como creio que já vos disse, em Cristóvão de Aguiar trata-se sempre, ou quase sempre (é preciso ter cuidado com as certezas), de uma eterna renovação: “É urgente reconstruíres-te. Trasfegares-te como teu avô fazia ao vinho novo. Desentulha-te dos montes de destroços e ruínas que te impedem o acesso à unidade original, à clarividência dos gestos, à limpidez da entrega. O melhor é escreveres-te. Necessitas de palavras. De muitas palavras em brasa, amadurecidas, capazes de te limpar de uma vida que se te azedou. Colhe o fruto sazonado que o tempo põe todos os dias ao teu alcance…30” O seu ofício é um “ofício de trevas31” E a divisa de Goethe poderia ser a sua: “Se tens um monstro, escreve-o.32” Para ele, “Escrever é um acto solitário, de introspecção profunda (…) não se compadece com o sol brilhante da chamada felicidade. Exige, sim,25 RL-I: 38. 26RL-I: 39. 27 T: 17. 28 TT: 195, sobre dever ter escrito há mais tempo sobre a sua dor da ausência do filho mais moço. 29 RL-I: 308. 30 T: 23-24. 31 RL-II: 110. 32 RL-II: 150. um estado psíquico de penumbra, situado entre a saúde e a doença, entre a mágoa e uma alegria meio triste. Era este o estado tranquilo que eu gostava de alcançar.33”, um “(…) estado de doce tensão interior (…)34” Apesar da sua persistência, não são poucos os momentos de desânimo, na sua procura incessante de perfeição: “O que tenho andado escrevinhando neste caderno mete-me nojo. Aliás, tudo quanto tenho feito ultimamente em matéria de escrita me desgosta.35” E nos piores momentos “Cresce-[lh]e a alma de um só lado.36” “Já não tenho que escrever. Fui esgotando o que julgava haver em mim depositado, à espera de uma inteligência que lhe desse uma ordem, um rumo, um vazão. Mas, também ela, me tem sido curta e madrasta – não lhe soube dar o uso e o óleo que ela requereria. E as coisas, como se sabe, embotam e embrutam por falta de serventia.”37 E desabafa: “(…) nunca acerto com a justa medida.38” “O ofício da palavra rende pouco e dá suores de aflição. Trabalhar. Trabalhar.39”
Não será estranho ouvir dizer a alguém tão perfeccionista: “(…) tenho pavor às palavras. Não sei se sabes que elas têm o condão de transfigurar coisas e criaturas. Bafeja-as de um sopro de vida verdadeira, transformando-as em seres de um outro mundo mais real e plausível do que este. Só de íntimo lavado e de ânimo aquecido consigo abeirar-me da palavra, quer para lhe rasgar o ventre, arredondar-lhe o corpo, afiar-lhe os gumes e os cumes, quer ainda para com ela travar uma luta, a que, não raro, só os alvores da madrugada vêm pôr ponto final. Nunca para adulá-la, porque, se o silêncio é de ouro, de mais valioso ouro será ainda a palavra gerada, amadurecida e parida na maternidade do verbo.”40

33 TT: 88.

34 TT: 78.

35 RL-I: 325.

36 RL-II: 106.

37 RL-II: 72-73.

38 TT: 37.

39 TT: 304.

40 RL-I: 340.

Cristóvão de Aguiar sabe que “(…) não po[de] negar que, por vezes, encontr[a] na escrita uma certa paz interina. Mas dá-[lhe]e também muita guerra…41” “Por trás de cada linha ou verso escrito, muita dor sublimada se encontra latente. E sacrifício. E sofrimento. Claro que já sofreste. E a maduridade e a distanciação? Quem escreve, disse alguém, escreve-se. (…) Recria-se a partir do intimamente vivido. Ou do revivido, ainda com mais intensidade, na arena de desforço onde a memória aguça e esgrime as suas armas de ataque e de defesa… (…) Exageras… Há sempre alguma coisa nova a dizer. É mister que se desça aos infernos do íntimo e se escarafunche o que lá possa haver (e há) de original, no sentido de que é só nosso. Tudo isto leva tempo, muito tempo. Tens de atravessar vastos desertos, sofrer muitas angústias, derramar suor em abundância. (…) Nada te detém quando galopas à garupa da imaginação e da fantasia.
Desde que te fervilha um poema ou uma história, pedindo forja, grosa e o demais ferramental com que a escrita se afeiçoa (…).42” Mas é “Caprichosa, a escrita. Deleita-se em vingar-se de quem dela se abeira de coração inseguro e de mãos limpas.43” Pacientemente, embora às vezes se sinta “(…) enjoado do mar encapelado em que a escrita se transforma (…)44”, Cristóvão de Aguiar persiste no seu trabalho interminável “de coligir, podar e limar centenas de páginas (…)45”, de as “ir colocando, obedientes, dentro do sistema nervoso da frase.46”, labor que noutras ocasiões parece descoroçoante: “(…) seis magras páginas em sete horas e picos de severa aplicação (…)47”; “Aqui em frente do ecrã do computador há não sei quanto tempo e sem conseguir pescar uma palavra das muitas que sinto correr pela ribeira que nasce e desagua em mim.48”; “[um dia em que] (…) só escutei as minhas vozes de dentro, quase sempre muito exigentes e duras comigo, não têm a mínima condescendência nem transigem um cisquinho no que diz respeito ao trabalho de escrita e a outros pontos da gramática de viver.49”

41 TT: 195.
42 T: 15.
43 TT: 17.
44 M/CS: 171.
45 TT: 74.
46 RL-I: 262
47 TT: 111.
48 TT: 72.
49 TT: 96.

[este livrinho]

“Os textos que compõem este livrinho, que ora vos apresento, foram extraídos, com ligeiras alterações, de vários livros meus [boa parte deles, por exemplo, d’A Tabuada do Tempo e de Ciclone de Setembro] onde essas histórias sobre cães e cadelas se encontram — os inseparáveis e afectuosos companheiros da minha infância e juventude.”50. Esta pequena declaração de Cristóvão de Aguiar pode servir-nos como guia de leitura de toda a sua obra. Em poucas palavras direi que se trata do complexo entrelaçar, quase promiscuidade, entre a escrita dita diarística e a escrita de ficção. É sempre Cristóvão de Aguiar homem/escritor que nesses dois registos se encontra e desencontra. De tal maneira e tão radicalmente o faz que diria que, com essa atitude, é a própria fronteira de géneros que se esbate, ou, num certo sentido, se clarifica e aprofunda aquela que para muitos é a mais forte possibilidade (ou validade) da narrativa ficcional: a implicação autobiográfica como derradeira possibilidade. Esta perspectiva, sobreleva e arrasta outra questão, que é a da tendencial anulação de fronteiras entre o real e o ficcional, isto é, de fazer derivar a diferença para outro patamar, onde são bem distintos os valores em causa, como seja, por exemplo, a possibilidade de considerar igualmente o real sensível como algo que se constrói autoralmente, e, assim, ser possível modelar o experienciado e o imaginado com as mesmas regras que a ficção utiliza.
Isto que parece apenas teoria é absolutamente claro na prosa de Cristóvão de Aguiar. Hei-de dar-vos um exemplo no final destas notas quando vos ler um trecho de um dos seus livros e vos convidar a reflectir a que tipo de obra do autor ele pertence. E acrescento ainda isto, que é claro e público: o primeiro Relação de Bordo, livro em jeito de diário que relata os anos 1964-1988, foi pacientemente escrito nos finais da década de 1990, com o auxílio da sua prodigiosa memória, de notas de época, cartas e, acrescento eu como óbvio corolário, do uso da mesma oficina em que se fabrica toda e qualquer ficção. “A minha escrita tem de ser coada pela memória afectiva.51” “Tenho de facto facilidade em me transportar a outras épocas da minha vida
50 CL, Nota Prévia: 10.
51 RL-II: 42.

e revivê-las quase com a mesma intensidade com que as vivi. Basta-me um incentivo que incendeie a memória.52”, diz-nos o autor com toda esta clareza. Os diários ou quasediários Relação de Bordo I e II, Nova Relação de Bordo e A Tabuada do Tempo são exemplares e eloquentes. Tal como as ficções Passageiro em Trânsito, Trasfega e Ciclone em Setembro. Podemos talvez dizer isto: Cristóvão de Aguiar é tão verdadeiro nuns como noutros livros. E a literatura ficcional é tão excelente tanto nuns como noutros. Ele sabe que as suas razões são “(…) razões que, por serem imaginadas, correm o risco de se tornar verídicas…53”
Os contos de Cães Letrados são, como disse, extraídos de vários livros do autor: e não errarei muito se afirmar que mais de metade destas pequenas ficções pertencem…aos seus livros ditos não ficcionais – os diários. Quem leu os livros anteriores só tem a ganhar em ler esta sequência – como nova. Aos leitores que só agora chegam ao mundo de Cristóvão de Aguiar, Cães Letrados é um saboroso aperitivo, recheado de bons sabores e bem nutrientes! Os contos podem agrupar-se em dois latos conjuntos: um, integra as estórias que o autor nos diz que vivenciou (mas só ele saberá a verdade – ou não…); outros, em que os cães são vestidos com um pêlo mais alegórico e por aí ironizam com figuras (supostamente não caninas) – cães polícias e polícias cães, cães universitários… – que todos podemos facilmente reconhecer no nosso quotidiano. Para Cristóvão de Aguiar, os cães têm sido “(…) povoadores de solidões acumuladas.54” Boa companhia, portanto. E agora, peço a vossa atenção para o trecho de que vos falei.

[prazer rasante à dor]

“A vontade de escrever sentida não me é bissexta como a escrita; só quando, nos anos do rei, executa a dança do ventre me caem todas as defesas: deixo então de lhe resistir e fico nela enleado como aranhiço em sua própria teia; nesses instantes de um prazer rasante à dor, sinto-me mais rente a mim e acareado por ela (…), atraindo-me
52 TT: 74-75.
53 T: 77.
54 NRL: 211.
para jogos preliminares do banquete dos sentidos que se vai seguir; não sei deslindar qual deles será o mais cativante, talvez ambos, assim como se torna impossível delimitar as fronteiras dos moldes em que será vazada a massa ígnea com que vou lavourando as palavras para se transfigurarem em magma e escrita, ou escrita de magma, cada extrema crescendo para a vizinha, invadindo-se reciprocamente, derriçando-se ou eriçando-se, acasalando-se por amor raramente espúrio, rumo a uma  nebulosa cada vez mais espapaçada de sombra na qual só cabe a morte total de todas as balizas entre suas terras comarcãs. Cuidado, porém: a morte traz no peito uma carta de alforria, no sítio exacto da cicatriz ficada do recontro; nessa sintonia vai originar-se uma ressurreição seguida de outro aniquilamento, e assim por diante, até a nebulosa se tornar no cerne de toda a escrita, sem castas nem marcos, sem sentinelas nem espias.55”

Lajes do Pico, 17 de Dezembro de 2008

ABREVIATURAS DA OBRAS DE CRISTÓVÃO DE AGUIAR UTILIZADAS:
CL = Cães Letrados, s/ l., Calendário, 2008
M/CS = Marilha (Ciclone de Setembro), Lisboa, Dom Quixote, 2003
NRB = Nova Relação de Bordo, Lisboa, Dom Quixote, 2004
PT = Passageiro em Trânsito, Lisboa, Salamandra, 1994
RB I = Relação de Bordo (1964-1988), Porto, Campo das Letras, 1999
RB II = Relação de Bordo II (1989-1992), Porto, Campo das Letras, 2000
T = Trasfega, Lisboa, Dom Quixote, 2005
TT = Tabuada do Tempo, Coimbra, Almedina, 2007
55 TT: 318.

CARLOS ALBERTO MACHADO, poeta, dramaturgo e ensaísta

sexta-feira, 23 de julho de 2010

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Aldeia Velha Sabugal: a rainha das festas Arraianas, Capeia 2010.

Estado da Nação: Famílias e empresas já sentem o efeito das medidas de austeridade. Autor: Margarida Peixoto

Fonte: Diário Económico

Data: 15-07-2010
Tema: Economia

Há um ano a economia também estava em crise, mas tirando isso, tudo o resto é diferente. As famílias pagam mais impostos, têm menos apoios e os preços começam a subir.
"Entretanto, o mundo mudou", disse José Sócrates, há cerca de dois meses. Que o digam as famílias: em apenas um ano, os impostos subiram, há quase 100 mil novos desempregados e o rendimento disponível entrou em queda. Passados um ano e 12 dias desde o último debate do Estado da Nação, a crise mantém-se, mas a economia nem parece a mesma.

"A alteração mais importante foi termos passado de uma política expansionista para uma contraccionista, tanto a nível europeu, como em Portugal", diz Pedro Laíns, economista e investigador na Universidade de Lisboa. Os termos técnicos escondem uma realidade bem palpável para as famílias e para as empresas: em vez da aposta no crescimento e no emprego - com a introdução de apoios e subsídios -, a prioridade passou a ser a correcção do défice orçamental.

Ao contrário do que se esperava em Julho do ano passado, o défice orçamental não ficou nem perto da previsão de 5,9%. As contas finais revelaram um desequilíbrio de 9,3% do PIB e uma dívida pública crescente, que levou os mercados a desconfiar da capacidade de resposta do Estado português no momento de pagar as dívidas. "As ameaças são diferentes. Em 2009, havia o medo de se cair numa brutal recessão; agora há a ameaça de os Estados entrarem em incumprimento", nota Luís Aguiar-Conraria, economista e professor na Universidade do Minho.

O resultado foi a passagem abrupta da política de apoio à economia - com investimentos públicos na renovação do parque escolar, por exemplo, ou com a promessa de um TGV que ligue Portugal à Europa - para uma estratégia de aumento de impostos e corte a direito nas despesas.

"A segunda grande alteração foi na política de obras públicas", acrescenta Laíns, referindo-se ao congelamento das linhas de alta-velocidade Lisboa-Porto e Porto-Vigo, mais uma inevitabilidade ditada pela obrigação de poupar.
Mas não é só o Estado que será obrigado a fechar os cordões à bolsa. As famílias e as empresas também não terão outra alternativa. Os impostos, tanto sobre os rendimentos do trabalho, como nos lucros das empresas estão mais altos; os juros já começaram a subir, inflacionando as prestações dos empréstimos à habitação; e os preços dão sinais de aumento, com a subida do IVA e a valorização do petróleo.

Perante este aperto, os salários mantiveram-se, na grande maioria dos casos, inalterados. A Função Pública teve aumento zero e muitas empresas seguiram o exemplo do Estado. Feitas as contas, o rendimento disponível já está em queda e o Banco de Portugal antecipa que o corte no dinheiro que os consumidores têm disponível todos os meses seja de 1,3% este ano.

A juntar a estas dificuldades, o medo do desemprego mantém-se, com a agravante de os apoios sociais serem agora mais restritos. "Muitas medidas de combate à crise foram revertidas. Mas o que é mais grave é que, neste momento, o desemprego não é uma escolha pessoal e por isso estamos a negar apoio a quem mais precisa", critica Luís Aguiar-Conraria.

As expectativas para 2011 não são melhores. É que se é certo que a economia saiu do vermelho no primeiro trimestre deste ano, com um crescimento de 1,8% face ao período homólogo, nada garante que o crescimento se vai manter na segunda metade do ano e durante 2011.

A razão é simples: a economia funciona como uma espécie de bola de neve. Se as famílias têm os rendimentos reduzidos e estão ameaçadas pelo desemprego, diminuem os níveis de consumo - a previsão é que em 2011 haja uma retracção de 0,9% do consumo privado, o pior valor desde o 25 de Abril, diz o Banco de Portugal. E se não consomem, as empresas não vendem, tornando muito difícil colocar a economia a crescer. Um argumento a favor poderia ser o bom comportamento das exportações na primeira metade do ano (cresceram 9,8%), mas também os principais parceiros comerciais portugueses estão a colocar no terreno medidas de austeridade, pelo que tudo indica que também aqui tenha sido sol de pouca dura.

10/07/15 11:14

terça-feira, 13 de julho de 2010

CAPEIA ARRAIANA: "há tourada na aldeia", filme/documentário do realizador Pedro Sena Nunes foi apresentado ontem em Coimbra, no âmbito do Seminário Internacional "SABEReseArtes" como investigação, uma iniciativa do Núcleo de Estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

Todos os anos, na Beira Alta, a província com maior índice de desrtificação, treze aldeias da Raia Sabugalense rejuvenescem para uma tourada com características únicas no mundo. a CAPEIA ARRAIANA. Os mordomos preparam as festas e contribuem para o património etnográfico, iniciando um ritual de emancipação onde se vêem confrontados com a força do toiro.
Vários homens envergam o forcão, objecto rudimentar feito de madeira, e lidam os touros que são trazidos, muitas vezes, de Espanha. As aldeias competem entre si à procura da melhor Capeia do ano.
Beira Alta, Raia Sabugalense.

_Gostei do filme, mas o Soito não está tão representado como se exigia neste tema.

Ideia original e realização de Pedro Sena Nunes; Direcção de produção Ana Rita Barata; Imagem Pedro Sena Nunes, Fábio M. Martins, David La Rua, Pedro Pinho; Som Ricardo Sequeira; Música- Criação Gravação e Mistura Fernando Mota; Produção Geral VOARTE

quarta-feira, 7 de julho de 2010

(2008) Cristóvão de Aguiar, Braço Tatuado. Lisboa, Dom Quixote. Crítica literária de Manuel Tomás. In Boletim do Núcleo Cultural da Horta. n.º 448

Braço Tatuado, é um “livro negro da guerra”, como vem afirmado na dedicatória com que o autor me honrou. “Retalhos da guerra colonial” é a expressão que surge inscrita como subtítulo ou complemento para
o entendimento do romance que vai ao mais profundo de uma guerra, injusta como todas elas são, ao âmago da profundidade psicológica de cada participante e à dimensão sociológica do grupo que luta em “comboio humano, agarrados uns aos outros pela cintura”.
Braço Tatuado é a recriação de uma dolorosa vivência pessoal de Cristóvão de Aguiar, durante a guerra colonial na Guiné. Essa experiência deu origem ao livro Ciclone de Setembro (1985), tendo uma das suas partes se autonomizado, posteriormente, com o título de Braço Tatuado (1990), saindo agora em uma nova versão (2008), para mostrar, de uma forma irónica e trágica, como se vivia a guerra, pois “só nos era permitido fazer manguitos por dentro ou roer as unhas de memória até ao sabugo; chorar não podíamos, nem, se calhar, teríamos lágrimas disponíveis no canto do saco– estávamos, exteriormente, em sentido e essa posição era sagrada”. Esta era a situação à partida, enquanto o capelão fazia o apelo ao patriotismo dos “bravos rapazes”. À saída do teatro de guerra, a ausência psicológica é ainda maior e ao discurso do governador militar, de copo na mão, só os “farrapos das palavras” são apanhados, cá-e-lá, e só são inteligíveis por quem esteja “animado de um profundo amor à pátria do copo”.
O livro escrito de rajada, como afirmou Carlos Ascenso André, in Jornal de Letras (23 de Abril de 2008), também é lido nesse mesmo impulso que não dá lugar a paragens e saltamos de página em página, ora procurando a emboscada, ora fugindo-lhe no matagal da angústia de algo que se faz para salvar a pele, mas o inesperado, maiorainda do que a emboscada do inimigo militar, de um caso pessoal pode virar tudo do avesso, onde já nada está às direitas, e esse inesperado vai causar o maior embaraço da missão, porque uma relação amorosa se perdeu na ausência de quem partiu para a guerra e se perdeu por completo na mistura de pânicos de guerra, com o pânico interior de um amor perdido. Na guerra, só se vive em pleno clímax de tudo e de todas as acções e recordações. Na guerra, “estamos cansados de tudo. Até de regressar. Tantas vezes foi este mágico verbo transitivo e intransitivo conjugado que se gastou tal qual um pataco…”, diz-nos o narrador que, às vezes, está a dar‑nos uma imagem visual e realista das operações em curso, obrigando-nos a visualizar toda a acção e a senti-la nos seus cheiros, sons e arrepios em momentos de vigoroso pânico derramado pelo ambiente onde se desenrolam as operações militares. Este forte e provocante realismo visualista revela-nos algumas atrocidades inimagináveis em seres humanos, mesmo em ambiente de guerra. O tenente Roberto, as suas atrocidades e o envolvimento educativo de seus filhos em uma autêntica barbárie evidenciam-nos, claramente, que aqueles são lugares de massacre tão violentos que o autor de tantas e malvadas acções criminosas actua de uma forma tão cruel que só no próprio enforcamento é que acha a solução para a previsível e desejável traição de sua mulher que, tempos mais tarde, há-de receber, como viúva, as insígnias dos grandes feitos de seu enforcado marido.
É de absurdos impostos, como dever, por um regime despótico e anacrónico, fazendo tantas vítimas, que Cristóvão de Aguiar nos dá conta, talvez com uma fidelidade sentida de tal modo que só mesmo a ficção nos poderia aproximar tanto da realidade e qualquer coincidência com essa realidade longínqua da Guiné-Bissau, mas ainda presente e não exorcizada totalmente na sociedade portuguesa, não será fruto de nenhum acaso.
Não fui à guerra colonial, mas não sou capaz de imaginar alguém a escrever ficção de esta maneira sobre ela sem por lá ter passado.

Manuel Tomás.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Cristóvão de Aguiar, justamente referenciado pelo escritor João Luís de Medeiros, numa entrevista que deu ao jornal Correio dos Açores.

Tertúlia Açoriana - João Luís de Medeiros, poeta escritor: As minhas cartas de amor eram copiadas na tropa

02 Julho 2010 [Cultura]
“Como estamos na alvorada do século XXI, numa época em que as religiões, o futebol, as drogas ilícitas, a glorificação hedonista são alguns dos capitais mais negociáveis na esfera do globalismo, o escritor (operário da escrita) tanto pode ser um cúmplice do negócio vigente ou sujeitar-se à missão de ‘subversivo’ da alternativa...”, afirma o poeta e escritor João Luis de Medeiros.
Correio dos Açores: Nome, naturalidade, cidade e país onde reside?
João Luís de Medeiros – Em Janeiro de 1942, fui baptizado na igreja micaelense de São Roque com o nome que continuo a usar: João Luís Tavares de Medeiros.
Em finais de 1980, emigrei com a família para os Estados Unidos, mais precisamente para Fall River (Massachusetts) onde vivi até finais do século XX. No ano 2000, resolvi experimentar a rota do “sonho americano”, rumo ao sudoeste da Califórnia, onde continuo a viver como aprendiz da vida, numa pequena cidade do Coachella Valley, chamada Rancho Mirage.
O Primeiro livro que leu?
Faço parte das gerações que certamente ainda guardam recordações (embora amarelecidas) de que o famoso livro das primeiras classes da instrução primária terá sido o livro do pedagogo Virgílio Couto, hoje porventura imerecidamente esquecido...
Quando sentiu o chamamento para a escrita?
Creio que “assentei praça” na escrita devido a circunstâncias meramente casuais. Com cerca de 10 anos de idade, já tinha a incumbência de escrever as cartas que a saudosa avó ditava para serem enviadas ao filho que, por volta de 1946, embarcara para Angola integrado no corpo expedicionário açoriano para substituir o batalhão continental número 13 (Nova Lisboa, Angola).
Mais tarde, já com a adolescência a rondar as ameias da juventude, divertia-me imenso a escrever bilhetes românticos àquelas raparigas conhecidas que tinham autorização familiar para dar banho à beleza, no ambiente outrora meigo e calmo dos areais da área. Anos mais tarde, durante o “cruzeiro colonial”, em Moçambique (1963-66) aceitei o cativante desafio de redigir as “cartas-de-amor”, que eram depois copiadas (secretamente) pelos meus companheiros mais avessos à escrita...
Qual o seu género literário?
Desde muito moço fiquei cativo voluntário da Poesia. O conto e a crónica são dois géneros que continuo a espreitar como janelas criativas. Todavia, se tiver vida e não me sentir órfão de talento, gostaria de enveredar com sensatez criativa pelo estilo da Prosopopeia...
Na escola primária era habitual ter boas qualificações nas redacções?
Sinceramente, não tenho memórias gratificantes desse período. Apenas me lembro de ter escrito duas ou três linhas para ler junto à campa do antigo professor Almeida Pavão (pai), na peregrinacão anual dos miúdos do ensino primário ao cemitério de são Roque...
Há algum livro dos seus que gostaria de reescrever?
Reconheço a benignidade da pergunta, mas devo esclarecer que não nunca perdi a noção do meu tamanho como operário da escrita. Até hoje, tive a boa sorte de não ter publicado livros de que poderia estar agora arrependido. No universo das ideias, a mensagem vale muito mais do que o mensageiro...
Quais os livros que publicou e o mais recente?
Parabéns pela clarividente pergunta. Não tenho habilidade para esgrimir segredos comerciais, porque não gozo do estatuto para escrever para o mercado livreiro. Dito isto, meu caro, abro a confidência: dentro em breve aparecerá ao público da diáspora lusófona o livro “Canteiro da Memória” (colectânea alusiva a 10% das minhas crónicas publicadas entre 1979-2009, sob o pálio da coluna memorandum).
Recordo que no Outono de 2007 veio a público a minha presença poética com o livro “(Re)verso da Palavra”, cujos poemas (1957-2007) fazem parte da (minha) fase “poesia-de-combate” que, obviamente, continua alérgica ao fervor encomiástico da confraria da literatagem oficiosa da nossa praça psico-literária...
Em 1993, apareci como co-autor do livro “Em Louvor do Divino”, cuja edição está esgotada...
Indique-me um livro de um escritor açoriano de que gostaria de ter sido autor?
Ó deuses! ... sinto-me agora atraído pela categoria psico-literária da resposta do nosso conterrâneo Cristóvão de Aguiar, quando há semanas admitiu, com sincera angústia, que gostaria ter sido o autor dos SONETOS anterianos. Depois dessa resposta, só me resta dizer que vou morrer sem ter tentado escrever algo semelhante à sua “RAIZ COMOVIDA”... Todavia, no calendário da eternidade, espero (re)encontrar ambos Antero & Cristóvão no pavilhão dos vencidos mas nunca convencidos...
Como se relaciona com os escritores?
Para confirmar os meus dizeres, seria preciso contactar alguns deles... (alguns já estão à nossa espera na quinta da eternidade); Mas arrisco sem temor nomear os amigos Cristóvão de Aguiar, Fernando Aires, Onésimo Almeida, Urbano Bettencourt, Rui-Galvão de Carvalho, Mayone Dias, Daniel de Sá, Francisco Fagundes, Dias de Melo, Mário Mesquita, Álamo Oliveira...
Pensa enriquecer como escritor?
Bem sei que a pergunta não é maliciosa – é apenas pedagógica. Como operário da escrita sou porventura (em segredo) um abastado milionário! Embora ausente da confraria do turismo académico que tirou (inteligentemente) partido da mal-disfarçada subalternidade académica da açorianidade nascente (1985-2005), tenho procurado cultivar a prudência de não usar as conexões político-emocionais ao meu dispor... para facilitar o meu percurso de “missionário da escrita”...
Nesse aspecto, limito-me a imaginar a banda passar! Enfim, são feitios...
Que livro nunca recomendaria a um amigo?
... não desejo ser endossado de tal autoridade...
Que livro gostaria de deixar e que ainda não escreveu...?
Como estamos na alvorada do século XXI, numa época em que as religiões, o futebol, as drogas ilícitas, a glorificação hedonista são alguns dos capitais mais negociáveis na esfera do globalismo, o escritor (operário da escrita) tanto pode ser um cúmplice do negócio vigente ou sujeitar-se à missão de “subversivo” da alternativa...
Antes de sucumbir, involuntariamente, à febre global da trivialidade, talvez seja contemplado com o carimbo “subversivo” na última página do meu ignorado passaporte da alternativa...



Autor: Afonso Quental

terça-feira, 29 de junho de 2010

Abri o Diário de Coimbra e na necrologia noticiam a morte de um dos maiores poetas que conheci pessoalmente: João Damasceno (Albuquerque) 55 anos, professor de história. Ainda ontem o tinha recitado. Espero que Coimbra lhe preste a devida e justa homenagem. "Em terra de cegos/ quem tem um olho é rei/ e quem tem dois/ é frequentemente abatido... ".

O Poeta João Damasceno, 1955 - 2010, publicou, pelo menos: Corpo Cru, 1983; Alma Fria, Sketches Policiários, 1985; Cinco Suicídios, 1986, 300 exemplares; Retrato do Artista Quando Jovem aos Pés da Rainha Santa Isabel; 1989. Fenda Edições.


domingo, 13 de junho de 2010

Um Livro por Semana LXXVIII. Relação de bordo, de Cristóvão de Aguiar. Faial Online, por Victor Rui Dores.


Um Livro por Semana LXXVIII

13 de Junho de 2010

Relação de bordo, de Cristóvão de Aguiar

ou a memória vasculhada
“Viajo por dentro de mim e chego sempre à Ilha onde Ela ficou.”

Homem inquieto e irrequieto, escritor telúrico e intempestivo, observador infatigável e dotado de discernimento crítico, Cristóvão de Aguiar escreve com os olhos da memória.

A sua trilogia romanesca Raiz Comovida – A semente e a seiva (1978), Vindima de Fogo (1979) e O fruto e o sonho (1981) – é a prova disso mesmo: ali se dá conta da memória da infância açoriana, no microcosmo da Tronqueira, com gente de grande riqueza psicológica e funda expressão humana, de que são exemplos a avó Luzia, o avô José dos Reis, o Ti José Pascoal entre muitas outras personagens que falam com sotaque micaelense, sendo o(s) livro(s) servido(s) por uma escrita que mergulha fundo no húmus do discurso popular e vernáculo. (Recorde-se a propósito que, em 1987, Raiz Comovida foi publicado pela Editorial Caminho, em edição revista e remodelada num só volume).

Todas as obras de Cristóvão de Aguiar são atravessadas pela memória do vivido e do sentido. Há efectivamente uma memória que escreve este autor, quer na sua poesia – Mãos vazias (1965), O Pão da palavra (1977), Sonetos de Amor Ilhéu (1992) –, quer na ficção narrativa, sendo nesta última que este escritor tem dado melhor conta de si.

Cristóvão de Aguiar é, acima de tudo, um romancista. Para além da já referida Raiz Comovida (sem dúvida a sua obra emblemática), escreveu outros livros, cujos géneros literários ele vai classificando de forma criativa e da seguinte maneira: Ciclone de Setembro (1985), “romance ou o que lhe queiram chamar”; Passageiro em trânsito (edições de 1988 e 1994), “novela em espiral ou o romance de um ponto a que se vai acrescentando sempre mais um conto”; O braço tatuado (1990), “narrativa militar aplicada”; Um grito em chamas (1995), “polifonia romanesca”; e, agora, Relação de bordo (1999), “diário ou nem tanto ou talvez muito mais”.
Há três grandes vectores que atravessam toda a obra de Cristóvão de Aguiar: a memória insular, a emigração e a guerra colonial.

Para melhor conhecer este autor e a sua escrita, convirá aqui avançar com alguns dados biográficos.

Luís Cristóvão Dias de Aguiar nasceu no dia 8 de Setembro de 1940, na freguesia do Pico da Pedra, ilha de S. Miguel, e aí viveu até aos 20 anos de idade. Cresceu num ambiente familiar completo de avós, tios, primos e vizinhos. Deles ouviu histórias que lhe regalavam a imaginação nos serões de Inverno. A oralidade exerceu sobre ele uma influência decisiva: neto e sobrinho de poetas repentistas, o avô era tanoeiro, o pai serralheiro e a mãe era dada às poesias – com todo este “pecúlio afectivo e humano” estava destinado a ser escritor.

Concluídos os estudos liceais em Ponta Delgada, no Liceu Antero de Quental (onde foi aluno de Armando Côrtes-Rodrigues e Ruy Galvão de Carvalho), Cristóvão de Aguiar embarcou para o continente, em Outubro de 1960, “com duas malas cheias de roupa e de muitas ilusões”, conforme nos relata em Relação de bordo.
“A ilha foi comigo e comigo permaneceu até hoje, como companheira fiel. Foi então que a compreendi! A distância traz-nos a nitidez das coisas e das pessoas”. (p.

Estudante em Coimbra, sofre “fortes abalos sísmicos afectivos”, anda transviado pelos caminhos da vida e da literatura e vive a agitação cultural que eclode nos anos 60. Interrompe os estudos por causa da tropa. Faz a recruta em Mafra e, depois, parte para a Guiné, onde viverá, durante quase dois anos, a “patriótica estopada”, isto é, a dolorosa experiência da Guerra Colonial. Dessa guerra e dos retroactivos da sua memória, dão conta os livros Ciclone de Setembro e O braço tatuado.

Regressado da Guiné, fixa residência em Coimbra, em cuja Faculdade de Letras conclui a licenciatura em Germânicas, desenvolvendo depois actividade como professor e tradutor. Pai de três filhos, entrega-se à “lavoura das palavras” e vive a dúvida e a inquietação da escrita. Escreve ele na sua Relação de bordo:
“E quanto mais leio o que escrevi, mais insegurança sinto”. (p. )
Em 1978 dá à estampa Raiz Comovida, que viria a receber, nesse mesmo ano, o Prémio Ricardo Malheiros e a merecer, três anos mais tarde, uma crítica elogiosa do temível e temido João Gaspar Simões, no jornal “Diário de Notícias” (2 de Abril de 1981), que ficou deslumbrado com o “pitoresco léxico” da obra.

Aquele exigente crítico, referindo-se à originalidade linguística e à técnica narrativa de Raiz Comovida, nomeadamente à assimilação de uma linguagem estritamente popular, ambientada no espaço geo-social micaelense, escreve que Cristóvão de Aguiar “é ágil e forte na linguagem” e considera-o “mestre na invenção de ambientes”.
Outros reputados críticos e escritores acolhem Raiz Comovida da melhor forma, entre os quais se destaca Urbano Tavares Rodrigues, Fernando Namora, José Manuel Mendes, João de Melo e Vasco Pereira da Costa.
É chegada agora a altura de lançar alguns olhares ao livro Relação de bordo (Campo das Letras, 1999), dário que Cristóvão de Aguiar escreveu entre os anos de 1964 e 1988. O autor deixa aqui a marca do seu indiscutível talento literário, demonstrando (à semelhança de Samuel Pepys, Jonathan Swift, William Byrd, ou, no caso português, de um Miguel Torga, ou de um Fernando Aires) que a escrita diarística não é um género menor.
Relação de bordo é uma obra importante, por três razões maiores. Em primeiro lugar, porque nos informa sobre as ideias, as opiniões e as reacções de Cristóvão de Aguiar sobre as coisas, os acontecimentos e as pessoas de um tempo e de um lugar. Em segundo lugar, porque espalha alguma luz sobre aspectos relacionados com alguns eventos que marcaram este país, contribuindo, assim, para que fiquemos a fazer uma ideia mais pormenorizada e, por isso mesmo, mais rica e mais perfeita do período em apreço. Em terceiro lugar, porque nos pôe em contacto com o estilo do autor, levando-nos a surpreendê-lo em estado puro e nascente, tal e qual ele surge no movimento despreocupado de quem não pensa na futura publicação.

Por conseguinte, este livro vem contribuir para que o nosso conhecimento de Cristóvão de Aguiar – do homem, do seu estilo e de uma época específica – seja mais amplo e mais completo.

De resto, o diário é um dos meios privilegiados de revelação das personalidades. A obra destinada à publicação e à publicidade rodeia-se de precauções para que não se corra o risco de se dizer mais do que se deseja. No diário (registo íntimo de pensamentos, atitudes, observações e experiências do escritor) é-se mais verdadeiro, no sentido de que se é mais natural e mais sincero.

Em Relação de bordo, autor e narrador são entidades coincidentes. Cristóvão de Aguiar deixa neste diário olhares inesperados e originais sobre os homens, as coisas e os acontecimentos, fazendo um ajuste de contas consigo próprio (por vezes o eu do texto dá lugar a um tu judicioso e imperativo – a voz da sua consciência ?), com os outros e com o mundo. “Escrever é escrever-se”, disse Julia Kristeva. O escritor fala abundantemente de si e dos seus familiares: os que com ele vivem, os que ficaram na Ilha (a qual se lhe “reverteu em pedra alojada na vesícula”) e os que se encontram emigrados.

Aliás, a (numerosa) família de Cristóvão Aguiar possui uma “tradição embarcadiça”, movimentando-se por espaços dos Açores, do Continente português e das Américas. Ao lermos este diário, estamos condenados a entrar na intimidade não só do autor, mas também dos seus familiares – de tal maneira eles se expôem e nos são expostos. Isto faz com que o autor circule num apetecível triângulo amoroso: a Ilha, Coimbra e a América. Vivendo na sua encantada e romântica Coimbra, ele recorda a Ilha namorada (e a “namorada da Ilha”) e escuta as vozes da avó Luz, do avô Anselmo, da mãe (que lhe escreve bonitas cartas) do pai (com quem mantém uma relação nada pacífica), do irmão Francisco e de muitas tias e primas. No dia 9 de Julho de 1979, referindo-se á sua herança sócio-cultural, escreve:

“O romance Raiz Comovida (…) não nasceu do pé para a mão: teve uma longa gestação, praticamente desde que saí da Ilha e comecei a compreendê-la com mais profundidade. Não é em vão que se nasce numa Ilha e se vive nela até aos vinte anos, para depois a deixar para sempre, na pele de um emigrante que sou, filho e neto de embarcadiços. Entre a parca bagagem de estudante, vinha também a minha Ilha, que, a pouco e pouco, se foi entornando para dentro de mim, transfigurando-se. Tinha sido nela que dera os primeiros passos, com muitas topadas (no verdadeiro sentido do termo), fora nela que aprendera, por dentro, o gosto amargo dos dias sujeitos e sem futuro, onde apenas floria a flor da esperança numa mítica América, paraíso atado na bolsa da imaginação e agarrado ao desejo, sempre à mão para qualquer eventualidade.

No início da década de sessenta, Coimbra teve em mim o efeito de um tremor de terra dos mais elevados da escala de Richter. Foi um deslumbramento e uma bebedeira constantes, que me deixaram os miolos em calda de pimenta. O ilhéu-bicho-de-conta que era (e ainda sou) passou num repente a viver num mundo explosivo de sensações novas, que, de tão intensas e variadas, mal conseguiam assento no rústico universo que me deixaram em herança” (… p. )

Relação de bordo vale também pelos ecos que nos dá da génese dos livros do seu autor, à medida que vão sendo escritos. Ei-lo a questionar o seu próprio acto de escrita (que lhe causa angústia), a registar o “feed back” dos seus romances junto dos críticos e dos leitores. De resto, ele deixa-nos, neste diário, um perfil que se casa perfeitamente com o que se surpreende nos seus romances.

Por outro lado, este livro é um animado filme mostrando cenas da vida vivida entre 1964 e 1988. Surpreendemos o autor (com o seu “feitio eriçado”) enredado em frustrações, amores mal sucedidos e súbitas paixões impossíveis… Aluno da Faculdade de Letras de Coimbra, vive atormentado com os estudos e alimenta a vaga ideia de vir a ser escritor. O seu primeiro livro de poesia, Mãos Vazias, não é bem recebido pela crítica… A tropa chama-o. Feita a recruta, parte para a Guiné. Temendo a morte em combate, pede à mulher que venha ter com ele – para lhe fazer um filho e, assim, deixar descendência… E é na qualidade de combatente da Guerra Colonial que escreve páginas magistrais dando conta dos angustiados e angustiantes dias de guerra:
“… E eis-me aqui, diante de mim, nu, andrajoso, suplicante, a alma enregelada e crucificada na cruz destes dias sem nome. Nos olhos, uma fornalha de fúria e uma fome antiga não sei em que víscera, essa fome de séculos que é já grito milenário de todas as bocas em mim. Eis-me, pois, aqui, disparando bombas de palavras ao concentrado silêncio da noite. Eis-me aqui, tentando pescar estrelas no poço aberto do firmamento. Eis-me aqui, indefeso e nu, interrogando não sei que morto que vive numa parte de mim… Em frente de mim, nu e com o frio de todos os pólos, interrogo-me como se fosse réu e juiz ao mesmo tempo. E as palavras que ouço vêm da minha voz antiga, saída do mais fundo de mim, carregada de pedras e de cardos, que grita e se contorce, morre e ressuscita, e continuo, indefeso e nu, aqui em frente de mim…” (p. )

Este autor é mais prosador que poeta. No entanto, em Relação de bordo, exprime-se, aqui e ali, em poesia: de realçar os admiráveis sonetos O visionário e Alma dolente, bem como esse notável poema que dá pelo nome de Sentimento de um ilhéu encalhado na praia.

Numa prosa nervosa e viva, Cristóvão de Aguiar comenta livremente e sem rebuços acontecimentos que marcaram os anos 60: dá conta da morte de Nikita Krutschov, manifesta-se contra as guerras do Vietname e do Ultramar; testemunha o impacto causado pela publicação do livro Praça da Canção, de Manuel Alegre; critica a apreensão, levada a cabo pela PIDE, da Antologia da Poesia Erótica e Satírica, de Natália Correia; entusiasma-se com o primeiro homem a caminhar sobre a lua; assiste, com sentido crítico e irónico, à queda de Salazar; desconfia de Marcelo Caetano; denuncia o regime, os vícios e os ridículos da sociedade.
Depois vem o 25 de Abril de 1974, em que a revolução e a poesia andaram de mãos dadas na rua… Cristóvão de Aguiar descreve, com grande perspicácia, o impacto dessa revolução por todo o país, o derrube do antigo regime, a rendição da PIDE, os primeiros vagidos da democracia, a celebração do 1º de Maio…Atento e vigilante, reage criticamente à imprensa reaccionária (a do Continente, a das ilhas e a da diáspora), denuncia os movimentos separatistas dos Açores e da Madeira e lança golpes certeiros à “insular bazófia”… Aos microfones do Emissor Regional de Coimbra, vai relatando cenas da vida social, política e familiar. Ainda e sempre, vai reagindo, pela escrita, a um quotidiano cheio de “tão belas contradições”…

Regressa frequentemente à ilha (há em Cristóvão de Aguiar um permanente desejo de a ela voltar), onde reencontra as raizes e revisita toda a geografia sentimental e humana ligada à memória da infância, seu paraíso perdido. Impressiona-se com a riqueza vocabular das suas gentes e regista: alpardusco (lusco-fusco), garetos (biscates), batacum (escorregadela), fiminha (fêmea), etc. Delicia-se a ouvir o Ti José da Costa a dizer, em Coimbra: “Estou-me consolando a apreciar lindeza tamanha”.
O escritor efectua várias viagens aos Estados Unidos da América e fica impressionado com as contradições americanas. Ali vai encontrar “a mais requintada libertinagem” a par do “mais conservador puritanismo”. Desperta-o o “imigrês” e a aculturação dos emigrantes (tema que viria a desenvolver em Passageiro em trânsito). E é assaltado por preocupações de cariz universal.
“E se mudássemos de planeta ? O nosso já deu o que tinha a dar” (p. )
Neste autor está vivo o interesse vital da experiência humana, tanto como o interesse intelectual pelas criações do espírito.

Prossigamos a nossa viagem pelo diário. Cristóvão de Aguiar é agora pai de três filhos (José Manuel, Artur João e Luís Francisco), marido afectuoso e cidadão responsável. Fala apaixonadamente do seu grande mestre Paulo Quintela, com quem privou de perto e de quem nos traça um retrato admirável. Aliás, convirá recordar que Cristóvão de Aguiar é autor de um trabalho (de “nótulas biográficas”) de referência intitulado Com Paulo Quintela à Mesa da Tertúlia (1986).

Recorda também outras grandes referências na sua vida: Miguel Torga, Joaquim Namorado, Fernando Namora, Luís Albuquerque e Mário Braga. Com igual paixão fala dos seus amigos do Liceu e dos seus “companheiros de República e da Guerra”: Antero Dias, Medeiros Ferreira, Viriato Madeira, Jorge Ormonde de Aguiar, Weber Mendonça, José Noronha Bretão (de quem nos dá inesquecível testemunho), entre outros. E dá conta de pessoas com quem convive(u) e que se lhe atravessaram na vida: Vitorino Nemésio, Aurélio Quintanilha, Natália Correia, Fernando Assis Pacheco, Baptista Bastos, Almeida Pavão, Dias de Melo, Manuel Ferreira, Pedro da Silveira, Rui Alarcão, Jaime Gralheiro, Louzã Henriques, Linhares Furtado, Fernandes Martins, Carlos Moreira, Zeferino Coelho, Vital Ferrão, Teixeira Ribeiro, Álamo Oliveira, João Afonso, João de Melo, Luís Fagundes Duarte, Marcolino Candeias, Vasco Pereira da Costa, Onésimo Teotónio de Almeida, Duarte e Ciríaco (o duo que popularizou o poema de Cristóvão de Aguiar intitulado Naufrágio, escrito a partir da melodia da canção tradicional terceirense Charamba), etc.
Enfim, ao longo desta Relação de bordo – “o caderno das minhas contas correntes” –, Cristóvão de Aguiar vai (d)escrevendo acontecimentos que marcaram uma época (a par do interesse literário, há, nesta obra, uma importância sociológica que convirá não perder de vista). Por outro lado, através de uma escrita acutilante, contemplativa, impressionista, terna e rebarbativa, o autor vai exercendo alguma catarse relativamente às minudências da vida: as arrelias domésticas, as preocupações quotidianas, familiares e sociais e as muitas dúvidas que o assaltam. E tudo isto nos é dado de forma sincera e sentida, com mágoa e alegria, com amargura e esperança. Mas sempre com uma visão crítica e muito lúcida.
Em Relação de bordo, Cristóvão de Aguiar escreve a falar. Com grande poder evocativo e boa capacidade expressiva. E lançando sobre as coisas do mundo um olhar profundamente humano e universal, ele que encontrou a salvação nas palavras e através da escrita.

Victor Rui Dores

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006