terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Açores: Dez Mais 2008, por Carlos Melo Bento, in Açoriano Oriental.






2008 obriga a recordar os vencedores. Ferreira Moreno e Fagundes Duarte no jornalismo de investigação e opinião impuseram-se, aquele pelo labor infatigável, este pela coerência, incisividade e nua lucidez. Escritor é Cristóvão de Aguiar com um onanímico e belo e estranho e encantador “Cães letrados”. Político é, novamente, Ricardo Rodrigues, eficiente porta-voz do Povo Açoriano, conciliador da autonomia real com o interesse geral. Autarca, Berta Cabral, esmagadoramente imparável. Gestores Vasco Garcia, no fim da vida, dá generosamente a vida por vidas e Piedade Lalande com êxito no que parecia impossível num Rabo de Peixe irreconhecível. Nas artes Mário Jorge Garcia com o inimitável “Açores no Coração”, a par com “Corisco de Trabalho” de Nuno Brito agora de grande sucesso. Cientista foi Paulo Borges com a notável Biodiversidade dos Açores, demonstrativo que fazemos o melhor no que é nosso. No desporto, Victor Pereira que Cruz Marques bem alçou a treinador do Santa Clara, competente e digno, conduz a nau desportiva a bom porto. O acontecimento do ano foi a inauguração das Portas do Mar, nosso justo orgulho e vitória incontestável da eficiente equipa socialista, política e técnica. A grande figura do ano, Carlos César, vencedor absoluto da maior prova autonómica de sempre, obrigou a democracia a funcionar, derrotou todos os centralistas e guindou a Autonomia a alturas nunca antes atingidas na nossa História, onde entra por direito próprio.
Carlos Melo Bento
2008-12-23

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Um alerta google. In Tovi.

Neste Natal as minhas filhas ofereceram-me um magnífico livro de contos sobre cães: Cães Letrados de Cristóvão de Aguiar, com desenhos de André Caetano (nasceu em 1983 em Coimbra e é licenciado em Design da Comunicação pela Escola Universitária de Artes de Coimbra), uma publicação da Editora Calendário.
Este escritor açoriano, nascido em 1940 na freguesia do Pico da Pedra, ilha de S. Miguel, diz-nos na “Nota Prévia” desta obra: Os textos que compõem este livrinho, que ora vos apresento, foram extraídos, com ligeiras alterações, de vários livros meus onde essas histórias sobre cães e cadelas se encontram – os inseparáveis e afectuosos companheiros da minha infância e juventude.
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sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Cães Letrados, ou a fusão dos afectos, recensão crítica de Victor Rui Dores.

“Minha pobre Pantera, que tão cedo deste mundo cão te vais apartar.”
(pág. 138)

Em permanente desassossego criativo, Cristóvão de Aguiar andou, mais uma vez, pelo sótão da memória a mexer em penumbras empoeiradas…
Isto significa que, com mais um livro publicado, este autor continua a arrumar, nas páginas que escreve, os sonhos da infância.
Falar de Cristóvão de Aguiar é falar de uma reinvenção constante e de uma contínua e continuada necessidade de expressão literária. Ao (re)escrever os seus livros, ele carrega consigo a ilha perdida e mitificada, num diálogo que, partindo dos Açores, atravessa a história de Portugal da segunda metade do século XX até aos nossos dias, e busca espaços do universal.
Este açoriano escreve com mestria narrativa e imaginação verbal, num discurso literário que mergulha fundo no húmus da oralidade. De resto toda a sua obra é uma revisitação a lugares, pessoas, memórias, coisas e animais que povoam o seu imaginário.
Em Cães Letrados (2008, Calendário, geral@calendario.pt), Cristóvão de Aguiar lança olhares sobre cães e cadelas que foram “os inseparáveis e afectuosos companheiros da minha infância e juventude” (pág. 10). Os textos que compõem a obra foram extraídos, com ligeiras alterações, de vários livros seus onde as histórias sobre os referidos canídeos se encontram.
Com expressivos desenhos da autoria de André Caetano, Cães Letrados desperta em nós uma imediata adesão afectiva. E isto porque o autor humaniza os cães, emprestando-lhes sentimentos, emoções e estados de alma, dotando-os de grande lucidez e fascínio. Nesta matéria, aprendeu, e bem, a lição de Miguel Torga na referência incontornável que é esse clássico da literatura portuguesa que dá pelo título de Bichos (1940).
Mais do que cães e cadelas, mais do que companheiros fiéis, amigos e protectores, a Girafa, o Alex, a Monalisa, o Adónis, o Isquininho, a Tina, o Ligeiro, a Regina, o Schwarz, a Ísis, o Valente, a Pantera a Petruska, o Polícia, a Andorinha, entre outros, são personagens que sentem e agem como se de humanos se tratassem. Inevitavelmente o leitor tornar-se-á cúmplice deles e das suas aventuras e desventuras. Neste último caso, o atropelamento na via pública é um perigo que, a cada momento, espreita esses animais.
Os homens (pela voz e experiência do narrador) compartilham com os cães o grande valor da amizade – e a amizade é, aqui, a lição essencial da vida –, estando uns e outros irmanados na luta pela sobrevivência e a contas com as perplexidades, as inquietações, as vicissitudes e os dramas do dia a dia. A natureza instintiva de uns é a natureza instintiva de outros. E, para todos, o mistério da vida reside como a questão maior.
(Há também a considerar o papel simbólico do cão e, a propósito, convirá lembrar que uma das primeiras citações sobre cães na literatura nos remete para a Odisseia, de Homero, quando Ulisses, após longo exílio e diversas aventuras, regressa à ilha de Ítaca disfarçado de mendigo e é reconhecido apenas por Argos, o seu cão já velho e sem forças para qualquer acção além de abanar o rabo ao reencontrar o dono. Ulisses então chora…).
Tal como no mundo dos humanos, também na canidade há hierarquias e estratificações sociais. Os cães também são vítimas de injustiças, sejam eles dobermann, setter, pastor alemão, husky, ou um simples rafeiro. Há cães de “vocação aristocrática” (pág. 93) e que têm “casa, cama, mesa e pêlo esfregado” (pág. 61) e há “a cachorrada vadia e plebeia” (pág. 85); há os que são rafeiros e os que vivem “abarrotando de pedigree” (pág. 113); há os que recebem “a costumada ração de meiguice e afagos” (pág. 136) e os que fogem à rede da brigada camarária, ou pura e simplesmente são abatidos no canil municipal… Há o cão vadio da rua e há “o cãozinho pekinois de luxo de fidedigna linhagem” (pág. 160). Uns são órfãos, outros mimados…
Mas, em Cristóvão de Aguiar, os caninos nunca deixam de ter grandeza e verticalidade, possuem até comportamentos de gente… Como esquecer, por exemplo, a descrição (ia escrever cena) comovente e comovida em que o Alex, na véspera de morrer atropelado, se deita ao lado do dono, no sofá da sala, e o beija sofregamente como que a adivinhar a sua morte prematura?... E como não recordar, para sempre, a Andorinha a parir seis cachorros, em pleno palco de Guerra Colonial?
Por conseguinte, a força de Cães Letrados está precisamente nessa afeição canídea, isto é, na humanidade e na fraternidade partilhadas.
Mas há uma excepção que o autor, não inocentemente, reserva aos “Cães universitários”, numa das mais bem conseguidas narrativas do livro. Com efeito, os cães das Faculdades de Letras, Direito, Medicina e Ciências e Tecnologia não são amoráveis nem íntegros… A carga semântica de “canzoada” diz tudo. (“Cão que ladra não morde”. Enquanto ladra…).
Esta é uma das facetas mais aliciantes da arte verbal de Cristóvão de Aguiar: a perspicácia da ironia. Neste autor a ironia não é um dom – é um dado.
Numa prosa de afectos, rica de espessura evocativa e profundamente humana, e num registo que varia entre a narrativa, o conto e a crónica memorialista, Cães Letrados é um livro simples, honesto e sentido. Escrito com os olhos da memória.

Horta, 17 de Dezembro de 2008

Victor Rui Dores
Escritor

domingo, 21 de dezembro de 2008

Coimbra ilegal: Um caso com contornos semelhantes ao do Sand/Sucateira ilegal que confina com o IC2, em COIMBRA-B/ Estação Velha. ABERTO AO PÚBLICO


LUÍS MARTINS JN
Ex-director de estradas de Coimbra suspeito de peculato.
"O ex-director de Estradas de Coimbra diz-se de "consciência tranquila" face às acusações de peculato, participação económica em negócio, falsificação de documento, prevaricação e abuso de poder produzidas pelo DIAP.

O caso foi denunciado em 2007, numa carta anónima enviada ao Ministério Público (MP). Um ano depois, o Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) concluiu haver motivos para indiciar o engenheiro civil de vários crimes praticados, alegadamente, enquanto esteve na Direcção de Estradas de Coimbra.

O despacho de acusação, divulgado pelo 'Correio da Manhã', refere que, em 2002, quando estava à frente da Direcção de Estradas da Guarda, José Gomes terá contratado um amigo para coordenar o Centro de Limpeza de Neve, na Serra da Estrela. O problema é que não tinha habilitações para o cargo. "Fez-se passar por engenheiro topógrafo, embora nem tivesse o bacharelato", refere o DIAP.

O MP também encontrou indícios de crime no licenciamento de um muro construído por outro amigo em zona de estrada, sem que o dono da obra tivesse indemnizado a Direcção de Estradas em mais de 20 mil euros. Pelo contrário, o despacho adianta que só terão sido pagas taxas no valor de 172 euros. Por provar ficou o suposto recebimento de contrapartidas para José Gomes nos seis concursos de semaforização de vias ganhos pela mesma empresa, em função de um alegado acordo "pré-estabelecido com José Gomes". No entanto, o DIAP parece não ter dúvidas que, "em violação dos deveres inerentes ao cargo", o então director de Estradas de Coimbra beneficiou de "forma dolosa" diversas pessoas em adjudicações e licenciamentos.

Confrontado com estas acusações, o visado começa por destacar o facto do DIAP ter "provado que não houve corrupção, nem situações que resultassem em proveito pessoal". Na sua opinião, o despacho assenta em "questões meramente administrativas" cujo entendimento discorda e não está bem esclarecido, mas que vai "clarificar na fase do contraditório". E exemplifica, dizendo que o último contrato celebrado para o Centro de Limpeza de Neve foi aprovado "quando já estava em Coimbra e assinado pelo director da Direcção de Estradas da Guarda à data".

De resto, José Gomes sustenta que o seu trabalho consistiu em "pôr a Direcção de Estradas de Coimbra a funcionar, em valorizar a capacidade dos funcionários, em melhorar as vias de circulação no distrito e em resolver os problemas do cidadão, sempre dentro da legalidade".

Natural da Guarda, José Gomes é vereador na Câmara local, eleito pelo PSD, e, em Junho de 2003, transitou da Direcção de Estradas deste distrito para Coimbra, onde assumiu funções idênticas."

Fonte: Jornal de Notícias

O título do post não é do JN.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

A GIRAFA DE CRISTÓVÃO DE AGUIAR, POR ANDRÉ CAETANO, in Cães Letrados. 2008



« O episódio da Girafa é uma obra-prima. Ele bastaria para fazer um livro e afirmar um autor.»
Fernando Namora


"Textos como «A Girafa» nunca mais se esquecem, devido à sensibilidade e à carga afectiva que o autor nelas derrama."
Urbano Tavares Rodrigues

Keynes e Esopo, por Luís Aguiar-Conraria.


PÚBLICO Edição Impressa:SUP. ECONOMIA

Suplementos PÚBLICO: ECONOMIA,

Keynes e Esopo
Luís Aguiar-Conraria*

Nas duas últimas décadas, os governos têm sido recorrentemente acusados de se esquecerem de que há vida para além do défice. Apesar de tanta obsessão, a nossa Dívida Pública, que mais não é do que soma dos défices ao longo dos anos, representa cerca de 65% do nosso PIB. Compare-se com a Irlanda que, nos anos 90, chegou a ter uma Dívida superior a 100% do PIB, mas que, em 2007, não valia mais do que 25%. Aliás, na Europa, vários países há com dívidas inferiores a 40%. Em Portugal, ainda por cima, à dívida pública oficial, há que acrescentar 22% de dívida do Sector Empresarial do Estado e mais um valor desconhecido de dívida indirecta gerada pelas parcerias público-privadas.
À beira de uma grande recessão, fatalmente, a fábula de Esopo com a cigarra e a formiguinha vem à cabeça. Tivéssemos tido, verdadeiramente, governos obcecados com o défice e hoje, com uma dívida pública decente, teríamos margem para aumentar a despesa pública e cortar os impostos de forma determinada. Fazer como o Reino Unido, onde se prevê que o défice dispare para os 9% em 2010, ou como a Irlanda, que deve deixar a Dívida Pública quase duplicar. Sem essa margem de manobra, as políticas governamentais têm de ser certeiras, com impacto rápido e alargado e com custos orçamentais transitórios.
Benesses para os sectores mais reivindicativos são de excluir. Apesar de eleitoralmente proveitoso, distorcem-se regras básicas de concorrência, prejudicando as melhores empresas, que são as que não choram por apoios estatais. Políticas que impliquem um aumento da despesa pública a longo prazo proporcionam um alívio imediato mas deixam-nos mais indefesos no futuro. Cortes nos impostos sobre o rendimento, seja das empresas seja dos particulares, também têm efeitos reduzidos. Tal acontece porque as pessoas não são tolas e sabem que défices orçamentais presentes traduzem-se em impostos futuros. Assim, em vez de aumentarem o consumo, estimulando a procura, irão aumentar o aforro. Por outro lado, as empresas protegem-se da incerteza dos mercados adiando decisões de investimento. Ou seja, cortes nos impostos sobre os rendimentos não se vão traduzir em aumentos do investimento e do consumo, mas sim em entesouramento.
Para garantir a eficácia de um corte nos impostos sobre o rendimento, estes devem ser dirigidos aos mais pobres, que ganham tão pouco que nada poupam. Basta criar um escalão de IRS com taxa de imposto negativa. Para garantir que apenas os mais pobres são beneficiados, tal pode ser compensado com uma subida nos escalões mais altos do IRS. Com esta medida, o impacto é imediato e aliviam-se as dificuldades financeiras das famílias de baixos rendimentos. Outra hipótese a considerar será um corte provisório do IVA, para 15%, por exemplo. As famílias aumentariam o seu consumo, de forma a beneficiarem da redução temporária nos preços. Mesmo que a descida do IVA não se reflectisse totalmente numa descida dos preços, tal traduzir-se-ia num aumento das margens das empresas, que bem necessitadas estão de algum desafogo.
Concluindo, há quatro mensagens que gostaria de deixar. Primeiro, perante uma recessão tão forte como a que se adivinha não faz sentido subsidiar umas indústrias à custa de todas as outras. Qualquer acção do governo deverá ter um impacto global. Segundo, dado o valor da nossa Dívida Pública, não podemos investir em projectos públicos que se traduzem num aumento da despesa por muitos anos. Terceiro, cortes nos impostos sobre o rendimento devem ser dirigidos às famílias mais pobres. Cortes temporários de impostos devem incidir sobre o IVA. Finalmente, se no futuro quisermos estar mais bem preparados para enfrentar crises económicas, será bom que durante os anos de bonança a obsessão pelo défice seja levada a sério: sem a formiga de Esopo não há Keynes para salvar a cigarra.
*Professor de Economia na Universidade do Minho
lfaguiar@eeg.uminho.pt

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Da canidade. Ou sobre a forma de conceber a condição canina. 1.ª Crítica ao livro Cães Letrados, por Leocádia Regalo

<Como leitores constantes de Cristóvão de Aguiar, fomos lendo pági­nas exemplares, motivadas por esses animais intuitivos, que surgiram na sua obra, desde a primeira narrativa – os cães. Quem pôde esquecer a morte da Girafa, a cadela dócil, em Raiz Comovida, ou o parto da Andorinha, no abrigo do alferes e de um sargento, em plena Guerra Colonial, de Ciclone de Setembro? Agora, somos presenteados com Cães Letrados, uma obra em que o escritor reuniu “os textos extraídos, com ligeiras alterações, de vários livros, narrando histórias de cadelas ou de cães”. Os desenhos de André Caetano vieram retratar com sensibilidade e fidelidade à narrativa esses peculiares bichos que dão pelos nomes de Monalisa, Adónis, Ísis, Schwarz, Petruska, ou então, Isquininho, Ligeiro, Valente, Pantera, ou ainda, numa designação de classe, cães de esplanada, cães universitários, cães cantores… O título Cães Letrados, numa ambiguidade irónica, possibilita uma leitura que faz ascender estes canídeos ao estádio das “Belles Lettres”, como personagens que usufruem de pleno direito do seu estatuto, nas diversas narrativas, ou uma outra interpretação para a qual contribui a significação caricatural de “cães universitários”, aqueles que o autor concebe com a dose de humor, por vezes sarcástico, a que vota todos os exage­ros do academismo e seus tiques.

“A minha atracção pelos cães é muito antiga” – declara o autor ficcionado em Relação de Bordo, ao referir-se à Exposição Canina Interna­cional de Coimbra, em que assiste ao certame, manifestamente surpreendido com a classificação do júri. E diz-nos:


De qualquer modo, havia, na exposição, canzoada para todos os gostos. Só que muitas vezes assim não entendia o júri, que classificava exemplares que eu eliminaria. (…) O José Jacinto é que acertava quase sempre, poucas falhou, e mesmo, quando falhava, o que escolhia era sempre bem classificado. (p. 69).

Mas não é deste entendimento que se ocupa o escritor, sempre que pre­tende enveredar o leitor pelos meandros da personalidade, dos hábitos, dos instintos, dos traços inigualáveis da “canidade”. Como criador da língua, explica o seu neologismo: «…dez anos de canidade: equivale a cerca de setenta de humanidade.” (p.61).

A condição canina é, assim, a temática recorrente nas narrativas que dão corpo a este livro. Estabelecendo relações paradigmáticas entre as manifestações da canzoada e a actuação dos humanos, o narrador, ora protagonista ora participante, demonstra a sua afectividade, verdadeira predi­lecção, pelos vários exemplares que vão surgindo na efabulação.

Saboreie-se o paralelismo de condição e de expressão quando se lê: “Restam agora a Tina, a Monalisa, a Eunice, o Adónis e o Pitão, diminutivo de Capitão, já com onze anos de casa, cama, mesa e pêlo esfregado…”(p.61). Ou então a situação do cachorro leitor, um husky que viajando no Inter-Regional, ao lado de uma futura médica, “ ia partilhando a leitura com a fortuita companheira de viagem com muito entusiasmo e compenetração”(p. 55). A situação tão pitoresca é narrada com toda a convicção:

A estudante que se sentou ao lado do Alex abriu uma sebenta, Lições de Pediatria, pude ler na capa. Pouco depois, vi eu com estes olhos o cachorro passando as páginas ao livro com a patinha direita. Esperto como é, viu logo que se tratava de matéria médica que lhe interessava por se tratar da fase etária que atravessava. (…) Só visto. Quando ambos chegavam ao fim da página, o cachorrinho apressava-se a virá-la delicadamente, a fim de continuar a leitura da matéria pediátrica. (p.55).

Aliás, este cachorro é o Adónis, cujo nome original que constava na cédula de nascimento foi para o narrador motivo de preocupação.

Ficou Adónis, o nome do velho deus babilónico da fertilidade, depois adoptado pelos gregos que o colocaram na sua mitologia com ademanes efeminados, simbolizando a beleza juvenil. Apesar de aparentemente fortuita, esta circunstância tornou-me meio apreensivo. Estando ainda o infante naquela idade em que o sexo é indefinido, poderia acontecer que, no momento da aclaração, tanto pode cair para um lado como para aquele de onde nunca mais se logra sair. E, confesso, sem qualquer preconceito sobre a orientação sexual de cada um, que não gostaria de o ver mais tarde num programa televisivo, já adulto e homossexual assumido, ladrando contra a repressão exercida pelo espírito machista da maioria da canzoada… (p. 52).

É nesta cumplicidade entre o narrador, o autor ficcionado e os sujeitos da fábula que se estabelece, na matéria narrativa, a essência da “canidade”. Quantas vezes surpreendemos a simpatia manifestada pelos cães vadios de primeira geração, legítimos, “os mais idóneos”, a demonstrar a sua supremacia face aos humanos, pela inteligência e aceitação com que jogam contra a adversidade: «Ninguém melhor do que eles conhecia os sinuosos meandros da desfortuna… Garantia-lhes um sentido prático e tolerante da existência inçada de percalços.» (p. 93). A racionalidade, apanágio dos homens, evidencia-se como a qualidade mais surpreendente na condição canina, graças a esse olhar profundamente intuitivo e sensível com que Cristóvão de Aguiar perscruta os seres, aliando ao plano dos afectos um sentido transcendente que recria o mundo com novas significações.

Tornei-me leitora assídua deste escritor, ilhéu como eu, depois de ter lido páginas de rara beleza literária, que me foram comovendo intensamente, à medida que acompanhava o sentir do rapazinho a quem coube a nefasta incumbência de abandonar a adorada “cadela branca, atravessada de galgo” aos braços da Morte. Não sei se me rendi à súplica do olhar da Girafa, se me fixei na impotência das lágrimas que lhe responderam, o certo é que dei comigo arrepiada de emoção, por entre o marulhar das palavras daquele narrador já distanciado da infância gravada a fogo na sua alma. Parei - atitude impulsiva, sempre que se interroga a nossa consciência, ao sermos confrontados com a excepcionalidade. E até hoje, volvidos mais de quarenta anos, apesar de reconhecer qualquer página de Cristóvão de Aguiar pela sua prosa única e inconfundível, nunca mais me esqueci desse momento de sorte – a escrita tornada comunhão perfeita. Foi a descoberta de um grande escritor, que já começava no plano da genialidade, e que passou a contar comigo no universo dos seus leitores incondicionais. Não admira, pois, que Fernando Namora, numa carta que lhe enviou, agradecendo a oferta do volume de Raiz Comovida, comentasse: « O episódio da Girafa é uma obra-prima. Ele bastaria para fazer um livro e afirmar um autor.» Vejamos como é justa esta opinião.

Ao contrário de outros cães mais proletários, não tinha a Girafa por costume assistir à missa do padre João. Em matéria religiosa tornara-se no pior que se podia acoimar em Tronqueira, uma Adventista do Sétimo Dia… Consciente da sua heresia e não querendo assumir responsabilidades quanto ao destino da sua alma de cadela, fui um dia à nossa Igreja, a horas mortas, munido de uma garrafinha de pirolito. Enchi-a de água benta numa das pias laterais onde os fiéis molham as pontas dos dedos para se benzer e esconjurar do tinhoso tentador das almas. Trouxe-a para casa às escondidas e dirigi-me à casa-de-trás e aí baptizei a cachorra com o nome que ela de resto já tinha e dava por ele quando a chamavam. Ao chegar-lhe ao focinho umas areias de sal, segundo manda a liturgia baptismal, e ao despejar-lhe, em seguida, sobre a cabeça o conteúdo da garrafa, em cruz, senti no íntimo que a Girafa se tinha humanizado e que uma alma disponível, dessas que vagueiam pelos ares desde o princípio do começo, havia descido das Alturas e incorporado-se no corpo ainda tenro da cachorra, fazendo dela o que afinal sempre fora – a Girafa! E ela foi medrando sem sustos de monta, tirante a rabugem, prontamente sarada, e outros achaques ligeiros próprios da idade. (p. 25)

Num registo totalmente distinto, usando um humor picante cheio de insinuações e subentendidos, as páginas de Passageiro em Trânsito dedicadas a Petruska são também um excelente exemplo de versatilidade narrativa. A cadelinha pekinois, que viaja a bordo do Carvalho Araújo, acompanhada pela «excelentíssima dona. Situada no terrorismo da idade e da pujança física. E proprietária de um par de coxas de refrear o fôlego» (p.160), é retratada à imagem e semelhança da dona, qual bibelô que desperta a atenção dos apreciadores. Esta, em deliciosa conversa que proporciona ao futuro doutor Afrânio Gaudêncio, no deque de primeira,

De passagem, menciona o imenso gosto da cadelinha pelas viagens marí­timas. A sua profunda capacidade de estabelecer novas amizades com outros cães e cadelas, um pouco menos com estas. Têm idêntico ofício e andam em busca do mesmo. Independentemente da raça, cor ou pedigree… Claro, andava perdida de amores pelo comandante do navio. Não devia dizê-lo, mas até sentia uma pontinha de ciúme. Claro que estava a brincar. Muito gostava de se esgueirar para o camarote-suíte do senhor comandante. Cheira-lhe a farda perfumada em masculino. As cadelas sentem enorme prazer através do olfacto. Mete-se-lhe na cama, ah sua descaradona. E deixa-se ficar de barriga para o ar, recebendo carícias no baixo-ventre, sua doidinha. Não é verdade, Petruska? Sempre foste uma maluca por ternura e cócegas. Aprendeste com a dona. E ela ainda te há-de ensinar mais. (p.161).

Tão excelente simbiose entre a “canidade” e a humanidade só se torna possível graças a este cómico de situação e de linguagem, em que a animalidade e a sensualidade se confundem em idêntica essência fútil.

E o que dizer dessas páginas dedicadas aos “cães universitários”? Aqui a humanidade ultrapassa a “canidade”, nos seus intentos e expedientes. De humor pitoresco ou corrosivo, o autor ficcionado não poupa comentários irónicos a esta casta de canídeos que vagabundeia pelos pátios das faculdades.

Uma Universidade que se preza, seja ela clássica, privada ou nova, não pode dispensar os cães refastelados nos átrios das respectivas faculdades ou nos amplos passeios e largos fronteiros às entradas principais. (…) Se é certo que, após prolongada convivência, o cão toma as feições e os tiques do dono, não será menos verdadeiro que a canzoada universitária absorve as idiossincrasias das diferentes faculdades que frequentam. (p. 100).

Através da sátira impiedosa, põe-se a nu, com investidas certeiras e sarcásticas, os procedimentos e atitudes de caricatos intelectuais, vergados ao peso de um academismo bafiento. A crítica literária pretensamente hermética, espartilhada no formalismo oco das exegeses pseudocientíficas é posta a ridículo na sua verborreia absurda. Se esta afirmação pode parecer contundente, confronte-se o que diz o narrador, ao opinar sobre “os cães das Letras”:

Nos canídeos das filologias menos clássicas, notam-se certas reminis­cências estruturalistas no ladrar de alto, sobretudo se trasladado para a escrita, em grelha, grelhada sobre a mesma chapa da estratégia e problemática operatória formuladas no contexto semiológico das reflexões teóricas acerca da matéria ficta do volume – palavra que não enlouqueci – em direcção ascensional ao entrecruzamento da dissenção paródica, inter­rogativa, inconclusa do posicionamento diegético enquanto exame da obra com vistas à prática da análise crítica e em certa medida da taxonomia semiótica desde a reflexão produzida pelo Homo Sapiens até aos nossos dias de hoje em que o arquitexto transcende o texto e como tal faz apelo à teoria, constituindo-se, portanto, num pressuposto abstracto de formas conceptuais e categoriais de certo modo reguladoras da ordenação textual em termos de conjunto totalizante, na medida em que não se furta a um grafismo de incógnita.

“Ó senhor Figueiredo, traga-me já uma água natural Serra do Trigo; estou a sentir-me com a digestão a parar, mas tenho esperança de que, com a água mineral, acabe por arrotar, o arroto é a libertação, olha que nem me apetece contemplar aquele navio desatracando-se do paredão do molhe para tomar, depois, o rumo nas rotas do mar…" (p. 102)

Ao retratar os cães que circulam nas diversas faculdades, o escritor não faz concessões, não perdoa a vacuidade e vaidade da “mísera condição”, entregue a perversidades e ao tráfico de influências, numa actuação assumida e exibicionista. Servindo-se das potencialidades da língua com magistral à-vontade, não se inibindo de dizer o que pensa, nem que para isso tenha de recorrer à expressividade vicentina, Cristóvão de Aguiar tem o verbo recheado de intermitências agudas de polémica e lucidez que castigam a sociedade naquilo que ela poderia ter de mais resguardado – a inteligência.

O que me parece que fica claro em todas as narrativas deste livro é essa capacidade de transpor para a escrita o mundo dos afectos, numa dimensão íntima, de grande autenticidade, onde a alma se derrama em lembranças, evocações, sentimentos cúmplices e de angústia, imensa ternura e uma aversão declarada à hipocrisia mundana e à intelectualidade modernaça.

Merece a pena ler (ou reler) Cães Letrados. Por se tratar de uma obra de um escritor açoriano que sempre se afirmou, nas letras nacionais, como um exímio cultor da Língua Portuguesa, recriando-a na sua diversidade e tratando-a com uma correcção clássica, no seu riquíssimo léxico, que lhe permite usar o arcaísmo ou o neologismo com a plasticidade única que a construção semântica exige, tornando-se assim um virtuoso da língua. Porque esta antologia de textos nos faz reflectir especularmente sobre as atitudes, positivas e negativas, que nos levam à conclusão de que, na fronteira entre a racionalidade e a irracionalidade se encontram muitas vezes os homens, sendo estes animais dotados de grande intuição, discernimento, sensibilidade, dedicação, fidelidade, compaixão, solidariedade, bravura, meiguice e tantas outras qualidades amplamente manifestadas na narrativa dos seus comportamentos. E ainda, por causa da edição cuidada, realçada por uma ilustração sóbria e adequada, contida no traço expressivo de André Caetano, o jovem que nos ajuda a imaginar visualmente as personagens deste livro.

Coimbra, FNAC, 6 de Dezembro de 2008

Leocádia Regalo
Escritora.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Cães Letrados. Apresentação fnac: Hoje, 01.12. SEG 22H00 Mar Shopping; 04.12. QUI 18H30 Colombo; 06.12. SAB 17H00 Coimbra Fórum


Apresentação

CÃES LETRADOS




04.12. QUI 18H30 Colombo
06.12. SAB 17H00 Coimbra
08.12. SEG 22H00 Mar Shopping

SINOPSE:
Um magnífico livro de histórias sobre cães.
Histórias comoventes, onde aprendemos coisas extraordinárias destes nossos amigos.
Por exemplo: sempre que quisermos um cão idóneo devemos adoptá-lo entre a família dos vadios de primeira geração - só estes possuem capacidade para serem amigos de verdade e dar tudo pelo dono que o escolheu.
A apresentação de Cães Letrados, em Coimbra, conta com a presença do autor e de Leocádia Regalo.

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006