segunda-feira, 29 de abril de 2013

In Relação de Bordo 1964-1988 de Cristóvão de Aguiar


Coimbra, 29 de Abril de 1974 ¾ Este ainda arremedo de democracia em que co­me­çámos a balbuciar os primeiros vagidos dá por vezes a ideia de se ter transfor­mado numa navalha de dois gumes. Principia a cultivar-se o berro pelo berro, pelo que, por vezes, o berreiro torna-se ensurdecedor. É que os cravos de Abril só me­drarão nos canteiros de Maio se estes estiverem de antemão mondados de certas er­vas daninhas. Não é bonito que a democracia sirva de pretexto para consolidar os seus próprios inimigos, à pala de que, num regime dessa natureza, há liberdade para todos, até a que basta para que ainda possa servir de trampolim para muitos daqueles, que neste último meio século português, fizeram dela letra morta e que agora, para se tornarem visíveis, procuram a qualquer preço apregoar aos quatro ventos as suas virtudes democráticas.

domingo, 14 de abril de 2013

Coimbra, 14 de Abril de 1976 
Estreia da peça A Arraia Miúda, no Teatro de Gil Vicente. Casa cheia. E muitos convidados de honra, entre os quais o próprio autor da peça, Jaime Gralheiro. Paulo Quintela lá estava, na primeira fila do balcão, seu lugar predilecto, porque dali vê o palco de cima, o que lhe dá outra perspectiva crítica da encenação, com os aleijões sobres-saindo-se mais. Muitas vezes lhe ouvi que, antes de entrar em cena, obrigava os seus pupilos do TEUC a tomar um bom cálice de vinho do Porto, que tem o condão de excitar e acalmar ao mesmo tempo, isto é, desinibe os tímidos e aquieta os exaltados. Segui-lhe o exemplo e não estou nada arrependido. Levei comigo um frasco cheio do bom e genuíno vinho fino, metade do qual bebi antes de entrar no palco e a outra metade no intervalo da mudança de acto. Quando entrei, logo após as três pancadas de Molière, parecia que caminhava num sobrado de algodão em rama, leve como uma penugem, e as palavras depois iam-me fluindo tão naturalmente, que até ia ficando nervoso de não ter ficado nervoso. A folhas tantas, estilhaçando o silêncio que caíra sobre o teatro, uma voz de criança: "Mamã, mamã, aquele ali é o papá." Era a voz do meu filho Artur, que se não conteve quando me reconheceu no meu traje impecável de Bispo de Lisboa, com mitra, bastão e saial branco com alamares e outros adornos dourados. Fomos muito aplaudidos. Depois do espectáculo, Joaquim Namorado vira-se para minha Mulher e pergunta-lhe: "Não te sentes em pecado mortal por dormires com um bispo?." Estou contente comigo. Meu Pai afinal não tinha razão, mas o pior é que o medo ficou fazendo parte de mim, nunca mais poderei expulsá-lo para sempre de minha casa.

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006