sábado, 17 de novembro de 2007

COMEÇA HOJE A PUBLICAÇÃO, NESTE BLOGUE, DO LIVRO "MIGUEL TORGA NA OBRA DE CRISTÓVÃO DE AGUIAR", DE JOSÉ MANUEL DE AGUIAR.

Coimbra, 15 de Novembro de 1973
Hoje conheci Miguel Torga em carne e osso. A meio da tarde, fui ao seu consultório de otorrino, no Largo da Portagem. Acompanharam-me o Álvaro Guerra, o António Campos e o António Arnaut. Ninguém estava doente. O assunto que nos levava ali era bem outro. De ordem político-cultural. Uma livraria que se há-de chamar “Encontro” e que se destina a actividades culturais e oposicionistas, cuja sede eu acabara de arrendar por cinco mil escudos mensais, na Rua Oliveira Matos, junto às escadas monumentais e à Associação Académica. Já há muito que ansiava por este encontro. Desde que vim para esta cidade, há mais de treze anos, que o via passar na Baixa, rumo à Coimbra Editora. Foi o primeiro grande escritor que vi de perto, na rua, entre o comum dos mortais. Fiquei impressionado. O primeiro livro que dele li, era ainda aluno do Liceu de Ponta Delgada, foi o Traço de União, exemplar que ainda conservo e me custou vinte e dois escudos e cinquenta centavos. Encomendei-o no Bureau de Turismo Terra Nostra ao senhor Silva Júnior. Para ser mais exacto, dirigi-me lá com o Viriato Madeira, que, por sua vez, pediu que lhe mandassem vir o romance Vindima. Três semanas mais tarde, chegaram os livros do Continente. Cada um leu o seu e depois trocámos os exemplares. Nessa altura, tanto eu como o Viriato líamos e relíamos Eça de Queirós, de maneira que nos fez bem o salto para uma literatura mais telúrica, um estilo mais enxuto, uma prosa precisa e muito pouco esparramada. Ficámos por aí em matéria de literatura torguiana. Só a partir de 1967, no regresso da guerra colonial, é que eu viria a entrar na obra de Torga. E nela ficar até hoje, encantado.
Não deixa de ser curioso o motivo por que me aproximei da obra desse grande escritor transmontano. As tertúlias que ao tempo assiduamente frequentava não se perdiam de amores pelo poeta de Orfeu Rebelde. Dele se dizia cobras e lagartos e contavam-se histórias em que ele saía sempre mal ferido. De tanto lhe baterem, tive vontade de lhe visitar a obra. Comecei pel’A Criação do Mundo. Depois foi a vez do Diário, e assim por diante. Deslumbrei-me. Fiquei visita íntima dos seus livros, que me não canso de reler. Hoje conheci-o pessoalmente. Chegou ao consultório um pouco mais tarde do que a hora combinada. Pediu desculpas e justificou o atraso com o facto de a sua perdigueira ter acabado de parir cinco cachorros e ele ter ficado a assisti-la. E contou com tal vivacidade e colorido os pormenores do parto, que parecia estarmos a ouvir ler um conto inédito de Bichos pela boca do próprio autor… Falou depois do Quinto Dia de A Criação do Mundo, anunciado há mais de trinta anos e ainda em original, que levantou da secretária apinhada para nos mostrar: “Já o reescrevi mais de trinta vezes”, disse, “e ainda não está como quero, sou muito lento na escrita”. Enclausurado no meu silêncio, bebia-lhe as palavras, gota a gota. A dada altura, olha para o relógio e exclama, aflito: “O comboio já chegou e eu que me tinha esquecido de ir buscar minha Mulher, que vem de Lisboa”. Despiu a bata, disse-nos que esperássemos um pouco, enquanto ia à Estação Nova, ali a dois passos. Saiu a correr como se fosse um adolescente que acaba de cometer uma falta e quer repará-la. Mal saiu do consultório, aproximei-me da secretária e folheei o original do Quinto Dia. Tive a mesma sensação que um dia, menino da catequese, experimentei, ao pegar no cálix das consagrações. Um dos meus companheiros chamou-me logo a atenção – ih, estás bem amanhado! – para o acto profanador que acabara de praticar, ao tocar num objecto sagrado, privilégio que pertencia aos iniciados e eleitos…
(Cristóvão de Aguiar)

Sem comentários:

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006