quarta-feira, 7 de julho de 2010

(2008) Cristóvão de Aguiar, Braço Tatuado. Lisboa, Dom Quixote. Crítica literária de Manuel Tomás. In Boletim do Núcleo Cultural da Horta. n.º 448

Braço Tatuado, é um “livro negro da guerra”, como vem afirmado na dedicatória com que o autor me honrou. “Retalhos da guerra colonial” é a expressão que surge inscrita como subtítulo ou complemento para
o entendimento do romance que vai ao mais profundo de uma guerra, injusta como todas elas são, ao âmago da profundidade psicológica de cada participante e à dimensão sociológica do grupo que luta em “comboio humano, agarrados uns aos outros pela cintura”.
Braço Tatuado é a recriação de uma dolorosa vivência pessoal de Cristóvão de Aguiar, durante a guerra colonial na Guiné. Essa experiência deu origem ao livro Ciclone de Setembro (1985), tendo uma das suas partes se autonomizado, posteriormente, com o título de Braço Tatuado (1990), saindo agora em uma nova versão (2008), para mostrar, de uma forma irónica e trágica, como se vivia a guerra, pois “só nos era permitido fazer manguitos por dentro ou roer as unhas de memória até ao sabugo; chorar não podíamos, nem, se calhar, teríamos lágrimas disponíveis no canto do saco– estávamos, exteriormente, em sentido e essa posição era sagrada”. Esta era a situação à partida, enquanto o capelão fazia o apelo ao patriotismo dos “bravos rapazes”. À saída do teatro de guerra, a ausência psicológica é ainda maior e ao discurso do governador militar, de copo na mão, só os “farrapos das palavras” são apanhados, cá-e-lá, e só são inteligíveis por quem esteja “animado de um profundo amor à pátria do copo”.
O livro escrito de rajada, como afirmou Carlos Ascenso André, in Jornal de Letras (23 de Abril de 2008), também é lido nesse mesmo impulso que não dá lugar a paragens e saltamos de página em página, ora procurando a emboscada, ora fugindo-lhe no matagal da angústia de algo que se faz para salvar a pele, mas o inesperado, maiorainda do que a emboscada do inimigo militar, de um caso pessoal pode virar tudo do avesso, onde já nada está às direitas, e esse inesperado vai causar o maior embaraço da missão, porque uma relação amorosa se perdeu na ausência de quem partiu para a guerra e se perdeu por completo na mistura de pânicos de guerra, com o pânico interior de um amor perdido. Na guerra, só se vive em pleno clímax de tudo e de todas as acções e recordações. Na guerra, “estamos cansados de tudo. Até de regressar. Tantas vezes foi este mágico verbo transitivo e intransitivo conjugado que se gastou tal qual um pataco…”, diz-nos o narrador que, às vezes, está a dar‑nos uma imagem visual e realista das operações em curso, obrigando-nos a visualizar toda a acção e a senti-la nos seus cheiros, sons e arrepios em momentos de vigoroso pânico derramado pelo ambiente onde se desenrolam as operações militares. Este forte e provocante realismo visualista revela-nos algumas atrocidades inimagináveis em seres humanos, mesmo em ambiente de guerra. O tenente Roberto, as suas atrocidades e o envolvimento educativo de seus filhos em uma autêntica barbárie evidenciam-nos, claramente, que aqueles são lugares de massacre tão violentos que o autor de tantas e malvadas acções criminosas actua de uma forma tão cruel que só no próprio enforcamento é que acha a solução para a previsível e desejável traição de sua mulher que, tempos mais tarde, há-de receber, como viúva, as insígnias dos grandes feitos de seu enforcado marido.
É de absurdos impostos, como dever, por um regime despótico e anacrónico, fazendo tantas vítimas, que Cristóvão de Aguiar nos dá conta, talvez com uma fidelidade sentida de tal modo que só mesmo a ficção nos poderia aproximar tanto da realidade e qualquer coincidência com essa realidade longínqua da Guiné-Bissau, mas ainda presente e não exorcizada totalmente na sociedade portuguesa, não será fruto de nenhum acaso.
Não fui à guerra colonial, mas não sou capaz de imaginar alguém a escrever ficção de esta maneira sobre ela sem por lá ter passado.

Manuel Tomás.

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Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006