terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Publicação do prefácio do livro "Miguel Torga o Lavrador das Letras", por Cristóvão de Aguiar

[…] É um duro ofício, o do poeta. Começa por ser uma vocação irreprimível e acaba por ser uma penitência assumida. A fatalidade e a voluntariedade inexoravelmente conjugadas no mesmo destino carismático e aziago que só encontra sentido na fidelidade com que se cumpre […].
Miguel Torga, in Prefácio à Antologia Poética.

"O PORQUÊ DESTE LIVRO

Os laços afectivos e literários que me enleiam à obra do poeta e escritor Miguel Torga datam de há mais de quarenta anos. Na Ilha de onde zarpei em 1960 só havia lido, e mal, dois livros de sua autoria: Traço de União e Vindima. Pensei na altura que tinha sido uma estreia muito pouco auspiciosa (mais tarde corrigi a minha impressão), não pelos livros em si, mas por culpa minha. A leitura não se me revelara tão aliciante
ao ponto de me aguçar a curiosidade de ir em cata de outras obras do corpus literário do autor de Bichos. É que, nesse tempo, só lia Eça de Queirós, e de tal sorte me encontrava imbuído do seu estilo e da sua fina e elegante ironia, que se me tornava difícil ler outro escritor sem sentir um certo vazio no íntimo. Pelo pouco que havia lido, notara logo que o estilo de Miguel Torga era totalmente distinto do cinzelado nas obras do pobre homem da Póvoa de Varzim – mais enxuto, descarnado e de uma seriedade granítica. Ali não se vislumbrava pingo de ironia!
No entanto, mesmo que desejasse prosseguir na leitura do demiurgo de A Criação do Mundo, não o poderia fazer. Em nenhuma livraria /papelaria da cidade de Ponta Delgada, havia qualquer obra torguiana à venda, nem tão-pouco na biblioteca do Liceu, bem apetrechada de obras de escritores portugueses do século XIX, dos quais só nos era autorizado ler alguns, por motivos morais e outras balelas... Os que adquirira de Miguel Torga encomendara-os numa “livraria” que, por sua vez, os mandara vir, à cobrança, do Continente. A demora converteu-se em cerca de três semanas de espera…
Só em Coimbra, após a guerra colonial, e já numa idade mais amadurecida, me encafuei de tal forma na obra torguiana, que ainda hoje, passados todos estes anos, continuo a frequentá-la com uma assiduidade de devoto que ainda não esfriou a sua fé. Esta paixão deve ter tido origem não só na prosa apurada com que o escritor lavra cada página de cada livro e me fascina pela simplicidade trabalhada até à placenta da palavra, mas também no facto de a ambiência espelhada nos Contos e sobretudo em A Criação do Mundo ser idêntica ou muito semelhante ao pequeno grande mundo da Ilha onde fui nado e criado.
Fui também aquele rapaz do primeiro dia de A Criação do Mundo. Só não embarquei para o Brasil no navio Arlanza, nem sofri as agruras da emigração real, embora tivesse amargado outra(s) não menos verdadeira(s). Até me reconheci em muito do léxico transmontano contido na obra! O vocabulário micaelense tinha parecenças ou as mesmas raízes do transmontano e alentejano, o que não surpreende, porque a Ilha foi povoada por gentes das províncias portuguesas e, nesse tempo, a lonjura e a falta de comunicação entre o reino e as Ilhas ou mesmo entre as províncias do Continente conservavam, como peixe em salgadeira, o português arcaico e castiço, que já quase se perdeu nas engrenagens comunicacionais desta era cada vez mais tecnológica.
A (re) leitura dos livros de Miguel Torga invade-me de uma paz rústica, genuíno oásis neste mundo barulhento, e transmuda-se num conchego caldeado de uma ansiedade mansa – Torga é uma personalidade rebelde e inquieta e reflecte-a como poucos em toda a sua vasta obra.
Um dia, falando com o Poeta no seu consultório, no Largo da Portagem, e após lhe ter contado alguns lances da minha vida, ele, que me ouvia atentamente com seus olhos pontiagudos que me atravessavam de lado a lado, saiu-se-me com esta que me deixou aterrado:
“Escreva um livro do género de A Criação do Mundo, que pressinto que Você tem dentro de si matéria bastante para a transformar em prosa; trabalhe, só com persistência e muito suor conseguirá alguma coisa; desconfie da facilidade...”
Os vates não se enganam e, de facto, três anos mais tarde, escrevi e publiquei o primeiro volume de Raiz Comovida, a minha criação do mundo, salvaguardadas as devidas proporções com a do Mestre da prosa e da poesia que é e será sempre Miguel Torga. Soube, depois, por um amigo comum, que ele havia gostado de me ler – foi a mais importante bênção literária que alguma vez me botaram... Ia subindo ao ar como um balão!
Que teria sentido o Poeta na minha pessoa para me sugerir um empreendimento de tal responsabilidade?
Alguns poetas são verdadeiros vates e Miguel Torga era-o até à medula.
Anos mais tarde, após o desaparecimento físico do Poeta, iniciei a publicação da literatura diarística, que já conta com quatro volumes, tendo dois deles obtido prémios: a Relação de Bordo I, o da APE /CMP da Literatura Biográfica (1999) e o último, A Tabuada do Tempo – a lenta narrativa dos dias, o Prémio Miguel Torga /Cidade de Coimbra (2006).
Era natural que, no registo nem sempre diário da minha conta-corrente, falasse de Miguel Torga, da sua obra, do intercâmbio que com ele mantive durante mais de um ano. Não me vou alargar em explanações porque o leitor ao ler este livro compreenderá o que ora afirmo.
Devo ao meu filho José Manuel, incansável leitor da minha obra, a ideia e iniciativa de extrair, não só dos diários mas também do livrinho Com Paulo Quintela À Mesa da Tertúlia, todos ou quase todos os excertos em que há referências a Miguel Torga e reunir esses passos num volume. Diz-me o meu filho que sente, por vezes, que existe um diálogo em certas entradas entre os diários de ambos. Perdoo-lhe a imodéstia pela intensidade e calor que põe em tudo quanto diz respeito à obra do Pai, que quase sabe de cor. A ele devo também o trabalho paciente que despendeu, com prejuízo das suas férias, de coligir tudo quanto adiante se publica.
A Livraria Almedina, nas pessoas de Carlos Pinto e de Paula Valente, acolheram bem a ideia e vestiram-na com um corpo que ora vo-lo apresento com o mesmo receio e insegurança que me acompanham sempre que publico um livro. Com ele pretendo, à minha maneira, prestar uma modestíssima homenagem ao Poeta de Orfeu Rebelde, cujo 1.° centenário de nascimento ocorre no dia em que escrevo estas notas, neste ano da era de Jesus Cristo de 2007."

Cristóvão de Aguiar

Ilha do Pico, 12 de Agosto de 2007

P. S.
A leitura deste livro não dispensa a obra integral.

3 comentários:

Keshi disse...

heyya Lapa! :)

Keshi.

Lúcia disse...

gostei, Zé Manel :)

Lúcia disse...

e já abandonaste a aprovação de comentários.
gostei, também

Cyrano de Bergerac

Cyrano de Bergerac
Eugénio Macedo - 1995

TANTO MAR

A Cristóvão de Aguiar, junto
do qual este poema começou a nascer.

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
e flores.
Não há palavra
com tanto mar
como a palavra Açores.

Manuel Alegre
Pico 27.07.2006